Catolicismo Nº 85 - Janeiro de 1958
"O coração do sábio está onde há tristeza"
Quando Nosso Senhor nasceu, uma luz brilhou no céu, despertando os pastores adormecidos, nas cercanias de Belém. Foi por uma estrela, que os Magos encontraram o caminho que os conduziu ao berço do Menino-Deus. E, desde então, por ocasião das festas de Natal, de Ano Bom e Reis, a piedade dos fiéis, ao evocar comovida os primeiros acontecimentos da existência terrena do Senhor, se detém sempre na consideração daquele firmamento noturno do Oriente, esplendidamente iluminado por uma claridade providencial.
Infelizmente, nestes dias sombrios, a palavra Oriente desperta com obstinação, em nossa mente preocupada e exausta, uma deplorável associação de imagens. E pensamos na Rússia e nos países de além cortina de ferro, cheios de prisões em que gemem nossos irmãos na Fé, de arsenais e casernas prontos a se abrirem para a próxima guerra mundial. Daí, passamos a divagar sobre os "sputniks", e vemos em espírito um firmamento no qual se divisam, em lugar da estrela de Belém, dois satélites que proclamam orgulhosamente o poderio do moderno anti-Cristo.
Bem sabemos - e ai de nós se não tivéssemos a consolação de o saber - que as claridades espirituais do Natal e da Epifania jamais serão obnubiladas pelos triunfos vistosos, mas falsos e efêmeros, dos homens ou do demônio. Não resta dúvida de que, meditando aos pés do Presépio, encontraremos alento para todas as fadigas e força para todas as lutas. Por isto mesmo, comecemos este primeiro artigo do ano ajoelhando-nos em espírito, ante Nossa Senhora e São José, e a ambos implorando sua inapreciável intercessão junto ao Esperado das Nações. Peçamos que Ele nos dê aquele coração contrito e humilhado, que Deus não rejeita ( Sl. 50, 19 ). Peçamos que nos conceda o espírito de oração e penitência dos anacoretas, a coragem dos cruzados e dos missionários, a argúcia e a santa pertinácia dos confessores, para servir a causa da Igreja. Peçamos que nos favoreça com um senso católico inquebrantável, agudo, puríssimo, para considerar à luz da doutrina da Igreja os fatos que ocorrem em nossos dias. E, isto posto, passemos à análise da situação em que o mundo se encontra, neste voltar de página, entre 1957 e 1958.
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Alguém - Joseph de Maistre, se não me engano - disse com muito espírito que a Áustria, a França, a Inglaterra, a Espanha eram nações que tinham exércitos. A Prússia, pelo contrário, era um exército que tinha uma nação.
Parafraseando, poder-se-ia dizer que os países do Ocidente tem partidos políticos. A Rússia de hoje não é um país que tem partidos: é um partido que tem um país.
Em outros termos, um grupo de sectários absolutamente fanáticos se apoderou de um imenso Estado, sujeitou-o, pelo terror, a uma escravidão horrível, e em seguida passou a sugar todos os seus recursos, para montar uma máquina científica, de subversão e agressão, voltada contra todo o universo. Não é de maravilhar que, aplicando todos os seus recursos nestes dois únicos pontos, a Rússia soviética neles obtenha resultados superiores aos de outros povos, que empregam seus meios em mil outros campos: arte, cultura, saúde publica, etc.
Assim, só papalvos - a trivialidade da coisa exige a trivialidade do vocábulo - podem inferir dos sucessos russos que o regime comunista é mais eficiente que o nosso.
Isto dito, acrescentemos que os sucessos soviéticos são imensos: quase todo o mundo amarelo, quase todo o mundo árabe está em seu raio de ação. É inútil fechar os olhos a esta realidade. Nas vastidões africanas que vão do Congo ao Cabo, notam-se movimentos estranhos, que revelam que também ali a hipnose soviética já começou. Claro está que a serpente não se apresenta desde logo a esses povos da Ásia e da África com a fronte marcada pela estrela vermelha. Ela disfarça seus propósitos cantando loas ao crescente do Islã, à cultura milenar da raça amarela, ou apiedando-se do infortúnio, de imemorial origem, da raça negra. Neste cântico - e não fosse serpente! - ela também põe algo de verdadeiro e bom. O mal, na primeira fase, não está tanto na letra como na música. Nos tons e entretons desta campanha, ela sabe despertar tendências, ressentimentos, sonhos loucos que depois não se deterão mais, e cujo dinamismo próprio e natural leva ao comunismo. O pérfido réptil aparenta não querer senão empurrar um pouco o rochedo. Este, por si, rolará em seguida montanha abaixo.
Esta situação política macabra é agravada pelos progressos técnicos de evidente interesse militar, como os "sputniks".
Os pontos de resistência — Estados Unidos, Europa, América Latina — podem ser alvejados a qualquer momento. O que valem os meios de agressão russos? Não se sabe ao certo, mas há razões para suspeitar que valham muito. E, em contraposição, os meios de defesa do Ocidente também se revelam de uma eficácia incerta. Incerta, quanto aos Estados Unidos. Certamente insuficiente quanto à velha e fatigada Europa, ou quanto a esta nossa desditosa América Latina.
Portanto, de pé na liça só há por enquanto dois contendores essenciais: os Estados Unidos e a União Soviética. Ora, destes dois contendores, um está alcançando triunfo após triunfo. O outro, insucesso sobre insucesso. Se fizermos o cômputo de tudo quanto o comunismo ganhou desde o fim da segunda conflagração mundial, teremos idéia do que é nossa imensa derrota na guerra fria. Quanto às perspectivas de guerra quente, o universo inteiro se sente preocupado e até angustiado com elas.
Em resumo, temos face a face uma imensa e poderosa malta de malfeitores e um povo que ama até o frenesi as delícias grandes e pequenas que a prosperidade material pode dar. Um povo que ama as geladeiras, as televisões, as camas ultramacias, as poltronas superacolhedoras, os automóveis de marcha suave e célere que devoram as distâncias nas estradas esplendidamente asfaltadas, os "night-clubs", as praias, as viagens, a tepidez da vida de família aconchegada e as surpresas excitantes dos casamentos consecutivos. Nesta grande festa, o trabalho também tem de ser alegre e suave. Os escritórios e até as fábricas com vidros "ray-ban", silenciosos, alegres, cômodos, em que se trabalha com a fisionomia esportiva e otimista que no Brasil é privilégio profissional dos aeromoços. A doença é tratada com remédios bonitos e bem embalados, como se fossem bombons, vendidos em farmácias alegres e convidativas que são também confeitarias. Os hospitais têm ares eufóricos de hotéis de vilegiatura, e os próprios funerais têm a nota de uma despedida suave e romântica, em que os cadáveres, enfeitados e maquilados, são levados para lindos cemitérios, onde os esperam sepulturas ao redor das quais cantarão os passarinhos e brincarão as crianças. E a fealdade da terra será disfarçada, na hora da inumação, por um belo pano verde pistache. Para esse povo, a preocupação é um tormento, e a guerra um "intermezzo" perigoso e sem graça, nas delícias da vida.
Ora, é esse povo, como dissemos, que um bando de malfeitores, o maior da história, mantém num sobressalto constante, dele exigindo uma preocupação constante, e uma preparação febril, extenuante, heróica, para a guerra.
Diante desta situação, como tem reagido, como reagirá, essa nação?
É o mais palpitante dos problemas destes dias em que 1957 morre velho e chagado, e 1958 nasce mal-encarado e nervoso.
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Mas afinal, dirá algum leitor, o que é isto? Um libelo contra o povo norte-americano?
Não. Uma apologia. Mais do que isto, uma defesa.
Em primeiro lugar, há que fazer - para que bem se compreenda nosso pensamento - as ressalvas de estilo, que no caso concreto não são simples formalidade. Sabemos de numerosos e valiosos elementos, nos Estados Unidos, que reagem contra esta situação moral. São muito bons americanos, excelentes patriotas, e por isto são ao mesmo tempo valorosos antiamericanistas. Eles vêem, com toda a razão, no americanismo a desgraça de seu país. E lutam com todo o afã para o libertarem dele. Precisamente como nós, brasileiros, vemos um inimigo nacional no brasileirismo de praia, samba, jogo de bicho e macumba.
Neste sentido muito particular, o que é o americanismo? Um estado de espírito subconsciente, com aflorações conscientes, que erige o gozo da vida em supremo valor do homem, e procura ver o universo e organizar a existência de modo propriamente delicioso.
Um inquérito Gallup pouco anterior ao lançamento dos "sputniks" revelava que o tema principal sobre o qual pensava o americano era: - evitar a guerra: 34% das respostas; - custo de vida e inflação: 22%; - problema negro: 10%; - testes e controle atômico: 6%; - delinqüência juvenil: 4%; - auxílio ao estrangeiro: 3%; - necessidade de religião: 2%; - questões sindicais e de corrupção sindical: 2%. Como se vê, os problemas ligados ao espírito vinham em proporção mínima, segundo o americaníssimo Gallup. A religião, em último lugar.
Ora, ao mesmo tempo, a decadência psíquica, moral e cultural avultava de tal forma, que produzia resultados alarmantes.
O próprio excesso de conforto material ia amolecendo a fibra do povo e debilitando seu físico.
Recentemente, o Dr. Hans Kraus, professor assistente de medicina e reeducação física na Universidade de Nova York, e a Sra. Bronnie Prudden, diretora do Instituto de Educação Física de White Plains, na mesma cidade, submeteram 4264 alunos de boa saúde, entre 6 e 16 anos, a um teste muscular, que foi objeto de um relatório entregue ao Presidente Eisenhower, e preocupou a fundo as altas esferas oficiais americanas.
Entre os indivíduos testados, 60% não tinham um nível de força muscular suficiente. Em 2.879 crianças européias, os insuficientes eram só 8%.
De outro lado, o conselho de revisão médica das Forças Armadas estabeleceu que em cada três americanos, um é incapaz para o serviço militar. - Entre 1º de julho de 1950 e o começo de 1957, 4.700.000 casos foram examinados. Deles, 1.600.000 foram declarados inaptos. Dos jovens recrutas, 13,6% foram reformados por incapacidade mental, 15,7% por deficiência física, principalmente por irregularidades cardiovasculares.
Qual a razão? Evidentemente o excesso de excitação, a ausência de esforço, de uma vida feita sobretudo para a moleza e o prazer.
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Alarmado com o atraso belo-técnico de seu país em relação à Rússia, o Senado dos Estados Unidos constituiu uma comissão de investigação das causas deste fato.
A comissão, por sua vez, ouviu o famoso cientista húngaro Edward Teller, o "pai da bomba de hidrogênio". Este indicou como causa fundamental, em última análise, a tendência norte-americana de idolatrar os jogadores de futebol e as "estrelas" de Hollywood, ao invés de respeitar os cientistas. E apontou como remédio um reajustamento da base, e a longo prazo, dos valores nacionais.
Terminado seu depoimento, Teller foi cumprimentado por todos os Senadores, que afirmaram ter sido, a sua, "a mais perfeita explicação que a comissão ouvira até então". E a Imprensa comentou que eram essas as palavras de orientação franca e severa que os americanos precisavam ter ouvido de Eisenhower.
Há muita gente que pensa que atacar o americanismo é ser antiamericano, é tornar-se impopular na república do norte.
Erro. Se alguém teve nos Estados Unidos, antes do "sputnik", esta linguagem franca, estará agora cheio de prestígio. Enquanto a opinião pública se distancia, desiludida e magoada dos que até hoje só souberam sorrir para seus defeitos, e tentar corrigi-los com meias verdades. E os Senadores reservaram seus aplausos para os que sabem descer até a raiz do mal.
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Neste sentido, o satélite artificial russo foi para a América do Norte uma graça imensa. Alertou-a, de modo espetacular, contra uma situação na qual ela se atolava inteira.
A partir deste momento, pôde cada americano compreender que o caminho consiste em revalorizar as coisas do espírito, e através destas elevar-se à verdadeira Fé, à austeridade e ao amor à Cruz, que ela nos ensina. Não falta nos Estados Unidos quem clame neste sentido. Que neste ano consagrado à Virgem milagrosa de Lourdes estas vozes sejam ouvidas.
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Mas a lição não é só para americanistas norte-americanos, senão também para os do mundo todo, inclusive os que existem, tão numerosos, em nosso Brasil.
Há um estilo de vida neopagão a que devem renunciar. Do contrário, para nós também, estará perdida a partida...