"Catolicismo" Nº 79 - Julho de 1957
Concluamos hoje nossos artigos sobre a tolerância. (1). Admitindo que seja o caso de praticar, em situação dada, esta difícil e arriscada virtude, pergunta-se: como praticá-la? Em outros termos, a tolerância, ainda quando necessária, traz consigo perigos peculiares. Como evitá-los? E, antes de tudo, quais são estes perigos? Demos a este respeito uma noção teórica, seguida de um exemplo histórico frisante. Tolerar um mal é consentir em que ele exista. Ora, assim como o bem produz, de si, efeitos bons, assim também o mal produz maus resultados. De onde, quando se é obrigado a tolerar algo, deve-se circunscrever quanto possível os maus efeitos dessa tolerância, e preparar com toda a diligência uma situação em que se torne ela supérflua, e o mal possa ser extirpado.
Em medicina, isto é elementar. Se alguém sofre de um tumor incurável que, por motivos clínicos, não pode ser logo operado, o cuidado do médico consiste em circunscrever de todos os modos os maus efeitos da presença do tumor no organismo. E, não contente com isto, prepara ele com diligência o doente, para que possa suportar a futura operação. O mais tolerante dos homens não toleraria que seu médico agisse com ele de outra forma. Não consigo compreender como este modo de proceder, tão claro, tão lógico, tão sábio, possa não ser aplaudido quando, em vez de um tumor físico, se trata de um câncer moral, como a heresia por exemplo. Com efeito, se em um lugar se introduz o erro, deve-se remediar a situação com os meios clínicos suaves e lentos da apologética ou da caridade. Quando estes meios não dão resultado, ou porque o mal é de propagação fulminante e não comporta tratamentos em câmara lenta, ou porque é renitente e não há argumento nem ato de caridade que o extirpe, cumpre recorrer à cirurgia. E se esta não pode ser usada logo, é necessário lutar renhidamente contra a propagação do mal, preparando ao mesmo tempo o dia auspicioso da operação. Assim - para exemplificar - numa associação religiosa entra um mau elemento. Ele difunde em torno de si um espírito de mundanismo, de sensualidade, de relativismo doutrinário. Se a associação está em condições de resistência excelentes, é o caso de não expulsar imediatamente este membro, para tentar reformar-lhe o espírito. Nesta hipótese, porém, o presidente do sodalício, durante todo o tempo do "tratamento", terá um olhar particularmente atento sobre esse associado, suas relações, seu âmbito de ação, etc. Ao menor sintoma, empregará todas as medidas para que o contágio cesse. Mais ainda, preventivamente, exercerá uma ação contínua sobre os outros membros, a fim de os vacinar contra o perigo. Procedendo assim, tal presidente terá usado de uma tolerância verdadeiramente virtuosa, pois terá feito bem ao mau, sem que daí decorresse mal para os bons. Isto tudo dá trabalho, requer providências, toma tempo. Suponhamos que o mesmo elemento mau da associação seja uma pessoa de rara sedução, que imediatamente vai influenciando a todos. Como é muito mais fácil influenciar para o mal do que para o bem, o presidente vê que dentro em breve diversos associados terão sido inteiramente deformados, sem que nada se possa ter feito em sentido contrário. Põe-se diante dele uma alternativa: ou consente na permanência do membro mau, e neste caso corre o risco de perder vários bons; ou expulsa o membro mau, este muito provavelmente se perde, e os bons se salvam, voltando à associação a ordem, o bom espírito e a paz de outrora. Qual o seu dever? O caminho só pode ser um. O bem de vários vale mais do que o bem de um. O bem do inocente vale mais do que o bem do culpado. É preciso expulsar quanto antes o lobo com pele de ovelha. Se não proceder assim, o presidente terá traído seu dever, e terá que prestar contas a Deus pelas almas que poderia e deveria ter salvo, e que entretanto se perderam. Suponhamos por fim outra situação. O indivíduo mau entra na associação e começa a exercer sua ação envolvente e rápida. No fim de pouco tempo, tal foi seu êxito que, se o expulsarem, mesmo os melhores não compreenderão. Sua expulsão determinará no sodalício uma crise na qual este se dissolverá. E, o que é grave, dissolvida a associação, seus membros, privados de todo amparo, correrão o risco de se perder. O que fazer? Evidentemente, contemporizar. Mas contemporizar com solércia, inteligência, decisão. Ser-lhe-á, ao presidente, necessário empregar todos os meios diretos ou indiretos para melhorar as disposições da ovelha negra, e também para coibir-lhe a ação, e, ao mesmo tempo, preparar os espíritos para compreenderem a necessidade urgente de uma expulsão. Logo que os espíritos estejam preparados, cumpre proceder à indispensável amputação. Ainda aí, a tolerância terá sido virtuosa, pois terá salvo a sociedade, enquanto uma ação precipitada a teria perdido. Em contraposição a esses exemplos, poderíamos mencionar alguns de tolerância defeituosa. O presidente da associação não tem princípios nem convicções firmes. É superficial, sensível, vaidoso, tímido. Por isto, quando o mau elemento entra, ele é o primeiro a sentir em certa medida a sedução das atitudes e dos princípios que este último jeitosamente insinua. Superficial, nem sequer é ele capaz de entender o que há de implícito em tudo quanto o membro mau faz ou diz. Vaidoso, julga-se o ídolo de seus pares, e por isto não concebe a possibilidade de alguém lhe contrastar a influência. Sensível, está perfeitamente contente com a associação, desde que seus membros lhe façam agrados e lhe prestem homenagens: princípios, doutrinas, polêmicas, lhe parecem trambolhos na doçura da vida cotidiana. Tímido, tem medo de todas as reações. Se tomar alguma providência, chamá-lo-ão, dentro e fora do círculo social, de intolerante. Ora, isto é muito incômodo. Pois o intolerante não é tolerado em nenhum lugar. Vivemos na era da tolerância. Todas as opiniões são permitidas. Não se pode suportar que alguém sustente que há opiniões que não podem ser permitidas. Quem o sustenta é objeto de perseguições, antipatias, sarcasmos. Como expor-se alguém a isto? Sob a carga de tantos fatores conjugados, o presidente acha melhor tolerar. E isto significa, para ele, fechar os olhos ao problema, e permitir que o mal se alastre às escâncaras, ou pelo menos larvadamente. Quando algum dia a associação estiver inteiramente minada, e uma crise tremenda explodir, será a hora de resignar-se com um fatalismo islâmico: "a vida é assim". Ou de aderir ao mal, para não ser derrubado por ele. É a tática de fazer a revolução de cima, antes que outros a façam de baixo. Tal tolerância, evidentemente, não poderia ser mais viciosa.
Destes princípios genéricos, passemos a um grande exemplo histórico. É a questão da separação entre a Igreja e o Estado. Como se sabe, antes da Revolução Francesa a união era o regime vigente em todos os países católicos da Europa. E, nos países protestantes, eram as seitas mais poderosas que estavam unidas à Coroa. Em conseqüência dos princípios laicistas da Revolução, a separação se veio introduzindo gradualmente ao longo do século XIX e do século XX. Hoje em dia, na maior parte das nações ocidentais, o Estado é laico. E, onde não o é, os privilégios da igreja oficial são quase insignificantes. Esta imensa transformação foi altamente prejudicial para a Santa Igreja pelo que exprime em si mesma. Pois é o fruto natural e típico de uma tendência à laicização, que se fazia sentir progressivamente em vários setores da cultura, da sociedade, e da própria vida no Ocidente. Ora, a laicização é o oposto da Fé. A Fé é a raiz de todas as virtudes. E a virtude é condição essencial para a salvação das almas. Assim, pode-se facilmente imaginar quanto risco para estas existe na atmosfera laicista em que vivemos. Se o fim da Igreja é salvar as almas, é fácil ver quanto Ela é oposta a toda forma de laicismo. Dizemos estas coisas elementares com tanto pormenor e clareza, pois hoje em dia até as coisas mais elementares estão completamente esquecidas. Ou correm o risco de o ficar dentro em breve. O contrário do Catolicismo não é apenas o materialismo ateu, mas também o laicismo liberal. Por misteriosos desígnios da Providência, e sobretudo por deplorável culpa dos homens, a reação católica não teve força suficiente par impedir a laicização das nações ocidentais. Posto o fato lamentável da separação entre a Igreja e o Estado, o que fazer? Se não tivemos força para evitar a separação, menos ainda a teríamos par impor sua imediata revogação. Só havia um caminho: tolerar. Há males muito graves, que trazem consigo vantagens que, secundárias embora, não deixam de ser preciosas. Pode-se dizer isto da separação. No regime da união, a vida da Igreja estava tolhida por numerosas intervenções dos governos, cada qual mais perigosa e irritante. Com a separação, estas intervenções cessaram legalmente. Dado o valor inestimável que tem a liberdade da Igreja, bem se compreende quanto proveito podia trazer, debaixo deste ponto de vista, a nova situação. Convinha aproveitá-lo integralmente. De outro lado, a separação trazia inconvenientes. O mais grave deles era a afirmação explícita, solene, provocante, de que a Religião é assunto de mero foro interno, pelo que o Estado e todos os domínios da vida pública são e devem ser leigos. Das instituições, este princípio influenciaria facilmente todas as esferas da vida mental da nação: caso típico de um fruto que reforça o efeito da própria causa. E com isto viria uma debilitação do sensus Ecclesiae, capaz de falsear em sua raiz e de combalir em seus frutos a vida religiosa do país. Era mister tolerar o inevitável, mas empregar todos os meios para obviar uma tão desastrosa conseqüência. Sem isto, a tolerância, em lugar de ser reta e sábia, importaria num desastre tão grande, que não há palavras para o qualificar suficientemente. Como reagir? O Magistério Eclesiástico cumpriu cabalmente seu dever de dotar os fiéis de um admirável corpo de doutrinas a respeito das relações entre a Igreja e o Estado. Cabia aos intelectuais católicos comentar e difundir estes princípios com uma amplitude, uma insistência, uma capacidade de atração proporcionada à imensa gravidade do mal. Cabia aos dirigentes de obras católicas chamar constantemente a atenção dos membros destas, para a laicização crescente da vida, operada pela laicização do Estado, para a injúria que daí vem a Deus, para o dano das almas, etc. Cabia à imprensa católica difundir até os últimos rincões o zelo pelos princípios que a separação punha em risco. Cabia, por fim, a todos os filhos da Igreja preparar, longa mas infatigavelmente, uma reação que chegasse à supressão do mal terrível, que é a separação. Neste sentido, muito se realizou. Não somos dos que fazem consistir a história do século XIX ou do século XX na mera narração dos erros e das falhas dos católicos: é claro que nessa visão entra uma deformação inaceitável. Mas é preciso reconhecer que, se muito se fez entre nós, católicos, muito também se deixou de fazer. De que modo? Ninguém se dispensou de professar, nas fileiras católicas, que em tese a Igreja deve ser unida ao Estado. Desde a Revolução para cá, os maritainismos, pré-maritainismos ou pós-maritainismos de todos os tipos tiveram de exprimir em termos muito cautelosos e velados sua preferência nada cautelosa e nada velada pela neutralidade religiosa do Estado inter-confessional. Mas, à luz da distinção muito legítima entre a tese e a hipótese, criou-se um regime de perigosa coexistência entre esta e aquela. Em outros termos, a tese, todo o mundo continuava a professá-la: a separação é um mal. Mas, na hipótese presente ela é um mal menor. É o que todos também aceitavam. Em conseqüência, cumpria tolerar a separação... modorrentamente, pachorrentamente, preguiçosamente. Enunciada a tese, falava-se da hipótese com uma resignação que dava a entender que a separação estava destinada a perdurar séculos, sem dano mais profundo para a Igreja. Em conseqüência, pouco ou nada se fez para incutir uma noção clara dos riscos desse regime, da gravidade destes riscos, da ação contínua que se tornava indispensável para que estes riscos não se convertessem em realidade. Do lado anticatólico, os meios mais eficientes, mais possantes, mais requintados, para formar a opinião pública, eram empregados no sentido de laicizar até suas últimas fibras as nações do Ocidente. O resultado, enunciou-o em afirmação impressionante e profundamente sábia - que já tivemos ocasião de citar em outro artigo (2) - o Exmo. Revmo. Mons. Angelo Dell’Acqua, Substituto da Secretaria de Estado de Sua Santidade, numa carta a Sua Eminência o Sr. Cardeal-Arcebispo de São Paulo, D. Carlos Carmelo de Vasconcellos Motta, a propósito do Dia Nacional de Ação de Graças: "em conseqüência do agnosticismo religioso dos Estados" ficou "amortecido ou quase perdido na sociedade moderna o sentir da Igreja". Para quem sabem o que é a Fé, e qual o seu papel na salvação, como se afigura trágica esta afirmação, feita com uma franqueza e um desassombro a que é mister prestar homenagem. É possível que nossos meios, muito inferiores aos do adversário, não tivessem logrado resultado no plano humano, se empregados cabalmente. Mas Deus não falta a quem faz todo o possível. Pelo contrário, Ele castiga os que, não confiando principalmente na Providência, negligenciam empregar os poucos recursos que têm em mãos. Uma funda era insuficiente, mas David com ela abateu Golias. Se tivéssemos rezado... se tivéssemos agido... se tivéssemos lutado...
Enfim, o passado é o passado. Para que exumá-lo? É que está diante do presente, diante de nós, o problema da tolerância. Trata-se de saber, em mil ocasiões, até que ponto e de que modo se pode ou se deve tolerar. Como "cesteiro que faz um cesto faz um cento", temos todos os motivos para recear que o homem contemporâneo, além de tolerar o intolerável, muitas vezes tolere com preguiça e apatia o que deveria ser tolerado com vigilância, firmeza e solércia. Para evitar tão grande mal, aqui ficam estas reflexões, escritas num espírito de simpatia ardente, franqueza fraterna, e leal cooperação. NOTAS (1) Os dois artigos anteriores desta série foram publicados nos nos 75 e 78, de março e junho p. passados. (2) "Indulgentes para com o erro, severos para com a Igreja", - nº 72, de dezembro de 1956.
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