Duas
notícias bem diversas, de natureza muito alheia aos temas de piedade,
servirão de ponto de partida para nosso artigo de Semana Santa. A primeira
diz respeito ao "rock and roll" na Suécia. E outra é sobre uma Pastoral
Coletiva do Episcopado Suíço, relativa ao alto teor a que chegou a
prosperidade na República helvética.
* * *
A
revista francesa "La Vie Catholique Illustrée" publicou em sua edição de
20 de janeiro p.p., a seguinte nota, sujeita ao título de "Mocidade em
blusão de couro":
"A
Suécia - paraíso do bem-estar e do conforto - está inquieta. Sua mocidade
lhe causa preocupação. Uma mocidade em blusão de couro,
posta em delírio pelo ‘Rock and roll’, pronta para o motim, a destruição,
e a crueldade gratuitas. De que se queixa esta mocidade? Que lhe
falta? Precisamente no plano material nada lhe falta. Mas, por isto mesmo,
ela não tem diante de si nenhuma expectativa, nenhuma esperança, nada
mais, enfim, por que combater.
"E,
principalmente, no plano espiritual isto é o vácuo: não há mais fé, nem
esperança. É sobretudo em sua alma que a mocidade sueca está
atingida".
Esta
nota faz pensar. Muitos sociólogos procuram explicar a crise religiosa
e moral de nossos dias pela miséria, pela insegurança, pelas
repercussões psíquicas profundas de toda esta situação caótica, em
personalidades depauperadas pelo excesso de trabalho e minadas por
sofrimento de toda espécie.
Agora
nos vem a notícia desconcertante de que a crise moral da mocidade
sueca - que em nada de essencial difere da de outros países neste nosso
mundo padronizado, estandardizado, homogeneificado - tem por causa, não
a penúria, mas a fartura. Onde, então, estamos?
* * *
O Prof.
José de Azeredo Santos comentou em seu rodapé do último número de
"Catolicismo", uma Pastoral do Episcopado Suíço, publicada por ocasião da
Festa Federal de Ação de Graças de 16 de setembro p.p., e reproduzida pela
excelente revista francesa "Marchons", dos RR.PP. Cooperadores Paroquiais
de Cristo-Rei (outubro de 1956). É sobre este importantíssimo documento
que também nós gostaríamos de tecer algumas considerações.
Como o
"Dia de Ação de Graças" se destina a exprimir a Deus nosso reconhecimento
por todos os benefícios recebidos, é compreensível que ele atraia nossa
atenção principalmente para os aspectos favoráveis da situação em que nos
encontramos.
O
Episcopado Suíço deu mostra de uma seriedade de espírito edificante,
não se detendo apenas em agradecer à Providência as muitas mercês com que
cumulou aquela nação, mas tratando com rara coragem dos perigos que
dessa mesma prosperidade podem advir, e estão advindo, para seus
fiéis.
E nada
mais lógico. A manifestação autêntica de nosso reconhecimento para com
Deus consiste precisamente em fazer um uso reto de seus dons.
Agradecer os seus favores, sem cuidar de servir-se destes para a sua maior
glória, seria farisaísmo típico e assinalado!
A
situação florescente da Suíça é descrita pelos Prelados nestes
termos: "Em nosso país, tudo corre de bem a melhor; a prosperidade se
desenvolve constantemente graças à alta conjuntura que parece haver se
instalado a título permanente entre nós; a ordem reina por toda parte, e
não estamos longe de crer que nosso Estado é dos mais sábios e dos mais
bem governados do mundo; as festas e as manifestações de regozijo, que se
sucedem em ritmo quase ininterrupto, refletem um bem-estar mais ou menos
geral, são índice indiscutível de um standard de vida relativamente
elevado". Certamente um quadro que nenhum de nós ousaria afirmar que
se aplica também à realidade brasileira!
Deixemos entretanto o Brasil, e continuemos com os olhos postos na Suíça.
Nesta
mesma Pastoral, o Venerando Episcopado Helvético afirma: "Há um pensamento
que volta muitas vezes nos discursos e escritos do Santo Padre: a situação
trágica do mundo moderno! Ainda recentemente, em começos de julho,
dirigindo-se a um auditório de 25.000 peregrinos reunidos na Basílica de
São Pedro, reafirmou ele com vigor: Advertimos várias vezes ao mundo, que
se detenha à beira do abismo. É preciso que este perigo seja
particularmente grave para que o Santo Padre fale com tanta força. Não nos
é permitido ver neste brado de alarme uma simples figura de retórica".
Confrontando estas palavras do augusto Vigário de Jesus Cristo com a
situação da Suíça, os Prelados perguntam: "No seio da comunidade
helvética, o Santo Padre, com suas advertências severas, não seria senão
um desmancha-prazeres?"
Eis um
problema enunciado de frente, com força e coragem...
* * *
A
solução proposta é igualmente lúcida e forte. Os Bispos helvéticos começam
por reconhecer que a situação de sua pátria é excepcionalmente próspera, e
vêem nisto um dom de Deus, já que a prosperidade material não é, em si
mesma, e necessariamente, uma armadilha do demônio. Entretanto,
lembram eles que haveria algumas reservas a fazer, especialmente no
tocante à concentração das riquezas. Porém, este tema em que tantos se
engolfam, se perdem e se põem a delirar, não lhes tolda a visão de "algo
de muito mais importante". E é o seguinte: "o bem-estar nos aproxima de
Deus?"
Assim,
de uma questão nasce outra, e estamos no âmago do assunto.
* * *
Não
podemos, infelizmente, acompanhar a Hierarquia Suíça em todo o magnífico
desenvolvimento que dá ao tema. Fixemos, entretanto, alguns dos fatos e
princípios que ela lembra:
1) -
"Enquanto certa largueza deveria concorrer para que vivêssemos
virtuosamente, na realidade o bem-estar de que gozamos nos conduz
diretamente ao materialismo. Eis o perigo! Não o reconhecer importaria
para nós em adormecer em uma falsa segurança, e assim correr ao abismo".
2) -
"Entre nós ninguém ousaria negar abertamente Deus, e afirmar como
realidade única a existência da matéria". Mas "a crença em um Deus
remunerador, juiz dos vivos e dos mortos, continua a ser o alicerce de
nossa vida, a mola propulsora de nossa atividade?" O temor de Deus
"inspira ainda nossa vida pública e privada?" O Episcopado, com
manifesto pesar, o põe em dúvida.
3) - "O
pensamento máximo do homem moderno é o de se estabelecer tão
confortavelmente quanto possível, em sua morada terrena; ele a
desejaria abundantemente provida, não só do necessário, mas
também do supérfluo, de tudo quanto faz o encanto e o prazer da
vida".
4) - É
de se "condenar vigorosamente esta tendência moderna, nitidamente
materialista, que leva o homem a procurar os bens terrenos com
exclusão dos bens eternos. Esta tendência está na raiz da desordem
profunda de que padece nossa geração sem norte e infeliz".
5) - O
Episcopado, com estas palavras, "pensa especialmente na corrida em pós
do dinheiro, que se transformou para muitos no fim supremo da vida, o
deus a que tudo se sacrifica e que, por si só, justifica tudo".
6) - Os
Bispos se referem igualmente "à sede de prazeres e deleites, que cega
literalmente tantos infelizes", "a tantas transgressões dos
Mandamentos de Deus", tão numerosas "que se seria por vezes tentado a
crer que, a despeito de aparências brilhantes, a vida cristã estará
em breve reduzida a mera fachada".
Infelizmente, repetimos, não podemos reproduzir todo o magnífico
documento, e nem sequer a parte esplêndida em que indica os
Exercícios Espirituais, e os outros meios para resolver o problema.
Detenhamo-nos no quadro que o Episcopado Suíço pinta. Uma crise moral
gerada precisamente de uma prosperidade da qual os homens abusaram,
voltando seus olhos para a terra, e ficando, em conseqüência, com um
terrível vazio na alma. É bem o caso sueco... e está sendo cada vez mais o
caso brasileiro.
Pois
este nosso pobre país, cheio de misérias, mazelas e crises,
padece espiritualmente do mal dos prósperos! Não somos ricos, mas
nosso perigo moral é exatamente o da Suíça e da Suécia. Pusemos - feitas
as exceções raras, honrosas, etc. - o dinheiro como nosso deus. Só nos
preocupamos com prazeres e deleites. Vivemos como se a terra fosse nossa
única morada. E por isto estamos prontos para o "rock and roll" e todas as
desordens psíquicas ou morais de que ele é símbolo. Ou, por outra, o
"rock and roll" é para nós um pouco atrasado. Por isto, nem sequer
encontrou ele no Brasil a explosão de entusiasmo de mil instintos
perversos postos em estado de desabafo, que suscitou em outros países. É
que de há muito foi ele precedido pelo frevo, pelo candomblé, pela
macumba.
* * *
O que
tem isto que ver com a Semana Santa? Tudo. Vamos ao fato concreto. O
homem contemporâneo se encontra diante do quadro de uma civilização
material que o deslumbra. Os arranha-céus, as grandes avenidas
asfaltadas, os anúncios luminosos cintilantes, as vitrinas, os grandes
cinemas, as salas de baile, as boites, os automóveis, os aviões, tudo o
fascina, o atrai, e lota inteiramente suas apetências.
É certo
que, dentro de todo este esplendor, há misérias sem conta, fervem
desesperos, espumam revoltas. Mas tudo isto fica na linha da chamada
marginalidade. São situações excepcionais, numerosas é certo, mas que de
nenhum modo representam a atitude mental da maioria. Mal nutridos, mal
dormidos, mal agasalhados, imperfeitamente medicados, os habitantes das
grandes cidades insistem em ficar nelas, para viver no esplendor
quotidiano de sua existência brilhante. A prova disto é o
desgosto com que aceitam qualquer transferência para o interior,
onde entretanto o ritmo de vida é tão mais tranqüilo e saudável. De outro
lado, os do interior em geral deploram sua situação, e invejam
os das megalópolis. E os moradores do campo migram em quantidade
para a cidade.
Em uma
palavra, o esplendor material de nossa civilização desperta no homem
moderno um tal desejo de gozar a vida, que qualquer esforço para o
desapegar desta atitude parece vão.
Ora,
trata-se precisamente de o desapegar. E isto, não só porque
esse tipo de felicidade terrena para a grande maioria dos povos é
inatingível, mas porque, se realizado, gera bárbaros.
A dor é necessária no panorama mental do homem, e isto sob todos os
aspectos. Dor moral, dor física, insegurança, pobreza, morte, tudo
enfim que faça o homem gemer ou chorar. Não é que achemos que
a vida é só dor. Mas sem ela a vida não é vida. É vulgaridade, é
egoísmo, é baixeza de alma, é infâmia.
Não se
trata, pois, na organização de uma sociedade, exclusivamente de
criar condições de existência benignas e suportáveis. Trata-se,
principalmente, de fazer ver aos homens que apesar de tudo a dor existirá.
Que ela tem em nossa vida um papel central. E que nossa vida não vale
pelo muito que tenhamos gozado, mas pelo muito que tenhamos sofrido. Pelo
alto teor moral inerente ao modo pelo qual tenhamos sofrido.
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SEM A
GRAÇA TORNA-SE INCOMPREENSÍVEL A UTILIDADE DO SOFRIMENTO
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Descendimento da Cruz - ROGIER VAN DER WEYDEN - Museu do
Prado - Madrid |
Tudo
isto posto, se de uma parte temos a persuasão de ter dito coisas de maior
importância, de outro lado não podemos fugir à sensação de que tudo é
palavreado oco, uma coleção de lugares comuns mais do que sabidos, mas que
não arrastam, não convencem, não servem para coisa alguma.
E é bem
exato. Nunca a humanidade, por si mesma, abraçará estas verdades. E a
de nossa época menos do que outra qualquer.
Como
sem esta verdade a nossa geração se perde, e se perde mesmo no plano
temporal, não se vê para ela remédio nem salvação. O círculo de ferro está
fechado. A civilização gera o desejo do gozo, e este, satisfazendo-se,
produz a barbárie. Logo, ou o homem fica na barbárie, ou sai dela.
Se sai, é para civilizar-se. E se se civiliza, volta à barbárie. E que
barbárie! A do "rock and roll" e da bomba de hidrogênio!
Como
fugir disto?
* * *
Senhor Jesus, todas estas considerações me levam aos pés de vossa Cruz.
Homem das dores, em vossa Alma e em vosso Corpo sofrestes tudo quanto é
dado a um homem sofrer.
Contemplo vosso cadáver descido do patíbulo, vossa humanidade como que
aniquilada, e vosso Sangue infinitamente precioso derramado ao longo da
Paixão.
Enquanto o mundo for mundo, representareis a dor no horizonte de nossas
almas.
A dor, com tudo quanto ela tem de nobre, de forte, de
grave, de doce e de sublime. A dor elevada do
simples âmbito das considerações filosóficas para o firmamento infinito
da Fé. A dor compreendida em sua significação teológica, como
expiação necessária, e como meio indispensável de santificação.
Pelo
mérito infinito de vosso preciosíssimo Sangue, dai à nossa inteligência
a clareza necessária para compreender o papel da dor, e à nossa
vontade a força necessária para amá-la com todas as veras.
É só
pela compreensão do papel da dor e do mistério da Cruz que a humanidade
pode salvar-se da crise tremenda em que está
afundando, e das penas eternas que aguardam os que até o último
momento permaneceram fechados ao vosso convite para trilharmos convosco
a via dolorosa.
Maria Santíssima, Mãe das Dores, multiplicai sobre a terra as almas que
amam a Cruz.
É a
graça de valor incalculável, que Vos pedimos, no crepúsculo de
nossa civilização, nesta Semana Santa.
Nota:
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