Plinio Corrêa de Oliveira
Lutar varonilmente, e lutar até o fim
Catolicismo Nº 67 - Julho de 1956 |
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Santo Inácio genuflexo ante o Papa Paulo III, o qual confirmou sua Ordem religiosa com a bula pontifícia Regimini militantis ecclesiae (27-9-1540) A passagem, no dia 31 deste mês, do quarto centenário da morte de Santo Inácio de Loyola dá-nos ocasião de escrever algo sobre o grande Santo. Fazemo-lo com certa hesitação. Pois tanto teríamos a dizer sobre sua vida, sua espiritualidade, sua obra, que não nos bastariam as dimensões, ainda que alentadas, de um artigo de jornal. Consola-nos que parte do que teríamos a afirmar em louvor de Santo Inácio, já o publicamos no livro "Em Defesa da Ação Católica", em momento em que tão insistentes eram certos ataques à sua espiritualidade. Desse livro, colhemos frutos tipicamente inacianos: dissabores, inimizades, um prefácio orientador desse grande Núncio, hoje Cardeal Masella, e uma carta de louvor enviada em nome do augusto Pontífice Pio XII. Tribulações de um lado, louvor do Santo Padre do outro. Parece-nos que Santo Inácio jamais desejou para si outra coisa... Mas o "Em Defesa da Ação Católica" foi publicado há tempo, há perto de quinze anos. Hoje, sobre este tema, o que dizer? Mudaram as circunstâncias. Terá mudado a aplicação que lhes pode ser feita, dos princípios da espiritualidade inaciana? Mudaram-se os tempos, sim, e mudaram-se as circunstâncias. Mas "plus ça change, plus c’est la même chose" [mais isto muda, mais é a mesma coisa, n.d.c]. Os problemas de hoje são os de ontem, agravados, requintados, exacerbados. E se ontem o ensinamento inaciano era atual e útil, hoje pode-se dizer que se tornou atualíssimo e utilíssimo. Dos múltiplos aspectos da realidade contemporânea aos quais as normas de Santo Inácio poderiam aplicar-se, e na impossibilidade de tratar de todos, destaquemos pelo menos um. Como se verá, por sua importância e profundidade, bem merece ele ser tratado. * * * Vamos antes de tudo à realidade miúda dos fatos triviais de todo dia. Como se sabe, um vento de igualitarismo sopra em toda a sociedade contemporânea. A todo momento, os pais se vêem na contingência de preservar sua autoridade e seu prestigio, contra manifestações do espírito de independência de seus filhos. O mesmo se dirá dos patrões em relação aos empregados, dos mestres em relação aos discípulos, das pessoas gradas ou idosas em relação aos que lhes devem consideração e respeito. Diante deste fato, que atitude manter? Claro está que é preciso reagir antes de tudo ensinando com paciência e bondade as máximas em que se funda a obediência e o respeito aos superiores. Mas pensar que, simplesmente com isto, tudo se resolve, é a mais rematada ingenuidade. Antes de mais nada, porque as pessoas picadas pela mosca do liberalismo e do igualitarismo detestam máximas, normas e princípios, estão sempre apressadas e não gostam de ouvir explicações doutrinárias dadas com coerência, calma e bondade. Elas vivem de emoções, e nada se lhes afigura mais monótono do que tais explanações. A calma as irrita ou lhes dá sono. A bondade lhes parece insossa e sem valor. Só consentem em ouvir algo se lhes é dito com certo sal, em duas palavras, e de maneira muito fácil. Como os doentes que só consentem em tratar-se se o remédio for uma pastilhinha fácil de engolir, de cor atraente e sabor agradável. Ora, não é todo o mundo que tem a forma especial - e até especialíssima - de talento necessária para dar esta apresentação à verdade. E mesmo que alguém conheça truques para transformar a boa doutrina em pílulas, é muito de duvidar que com pílulas destas se consiga formar uma pessoa. A alma é sob este ponto de vista comparável aos pulmões, que exigem para seu normal funcionamento, não apenas duas ou três lufadas esporádicas de ar fresco, mas o contato estável, permanente, largo, com uma atmosfera natural e pura. O espírito humano só é o que deveria ser, quando respira sempre numa atmosfera de bons princípios. Não é - em via de regra pelo menos - com uma ou outra lufada de boa doutrina que uma alma se forma. E, assim, toda pessoa séria será obrigada a reconhecer que os bons conselhos, a brandura, a mansidão não resolvam todos os casos. Então, o que fazer? Não se julgue que este problema existe apenas no âmbito restrito da vida particular e doméstica. Visto em escala mais vasta, toma ele o aspecto de um grande problema social. Os que cuidam especialmente da questão operária teriam muita vantagem - parece-nos - em cogitar detidamente do assunto. E o mesmo se diria de todas as pessoas que arcam com maiores responsabilidades no corpo social. Consideremos, com efeito, não só um professor em sua aula, ou um patrão em sua fábrica, ou um pai em seu lar, mas o conjunto dos pais, dos professores ou dos patrões de uma nação. Se eles souberem tomar uma atitude coerente e acertada diante da maré montante do igualitarismo, claro está que terão feito a si mesmos e ao país um grande benefício. Mas se agirem com desacerto terão literalmente votado sua pátria à perdição. É que este problema com que cada um de nós se defronta em escala individual, e os observadores mais penetrantes não podem deixar de considerar em escala social, acaba por ser também um grande, um imenso problema político. Quando em um país o vagalhão do igualitarismo se torna como que irresistível, deve ele preparar-se para um triste porvir, pois só lhe restam dois caminhos: ou a desagregação, fruto fatal do liberalismo, ou então uma ditadura policial implacável. Pois o métier de governar homens se transforma, quando estes homens se deixaram picar pela mosca venenosa do liberalismo, em função de domador de feras. E então só se evitam os piores desastres mediante jaulas e chicotes. Jaulas, chicotes: paupérrima alegoria para ocultar uma realidade mil vezes pior, os aparelhos de tortura, a onipresença da espionagem, a supressão de todos os direitos, as guerras de nervos, a propaganda dirigida que imbeciliza multidões inteiras, mil outros meios de opressão que os ditadores aplicam com um execrável luxo de requintes proporcionado por todas as técnicas conjugadas da era científica em que vivemos. Liberalismo, totalitarismo, não é bem esta a abominável, a sinistra alternativa em que se debate o mundo de hoje? E de onde veio isto, senão do fato de que o século XIX e o século XX não resistiram ao tufão de anarquismo igualitarista, desencadeado pela pseudo-Reforma no século XVI, e transformado pela Revolução Francesa em cataclismo universal? * * * Há, pois, a necessidade de recorrer a meios outros, que não a mera explicação feita com bondade, a qual aliás continuará a ser sempre a arma primeira, e predileta, de qualquer católico. Que meios serão estes? Se ensinar e sorrir não basta, o que fazer então? Há no mundo inteiro toda uma corrente, toda uma família de almas, que tem uma fórmula surpreendente. Se ensinar e sorrir não basta, sorria sem ensinar. Em outros termos, não afirme princípios, não sustente máximas, não provoque discussões. Se seus filhos lhe faltam com o respeito, sorria, finja não perceber, mantenha seu bom humor. Eles acabarão por se comover e se corrigir. Se seus alunos fazem desordem em aula, ria esportivamente como se fosse um deles, finja divertir-se com o fato. Eles ficarão desarmados e voltarão atrás. Se seus operários se revoltam, não se zangue, eles acabarão por amá-lo. Mas esta corrente ainda não chega até o fim do caminho. Há os que acham que não ensinar máximas e princípios é bom, sorrir é melhor, porém nada disto é ótimo. O ótimo consiste em ceder, recuar, conceder. Silêncio sobre os princípios, sorriso diante das explosões de independência e revolta, concessões, concessões e mais concessões. Eis a fórmula perfeita. Alguns exemplos desta tática serão talvez elucidativos. Se os filhos se desagradam em um ambiente impregnado pelo princípio da autoridade paterna, o pai deve democratizar-se. Isto é, deve fazer-se chamar por "você", deve renunciar à poltrona em que preside as refeições, deve abandonar as atitudes naturais a uma pessoa de idade madura, deve transformar-se em galhofeiro, em contador de anedotas e piadas, em uma palavra, deve ser o meninão mais velho da casa. Ou melhor, o meninão velho. Despida de todos os seus elementos externos e acessórios, que são irritantes, a autoridade paterna não mais chocará. E o pai terá feito cessar a revolta dos filhos. Se um patrão está sendo vítima de uma propaganda demagógica, proletarize-se. Tome o modo de andar, de falar e de vestir-se dos operários (pelo menos quando estiver na fábrica). Faça cessar todos os usos e estilos que marcam a sua pessoa com o sinal da autoridade e da superioridade social. Terá deixado de irritar. E o problema terá sido resolvido como que por encanto. O professor deve navegar nas mesmas águas. Tenha espírito esportivo. Conte piadas na aula. Transforme sua preleção numa conversa animada. Iguale-se, incruste-se, afunde-se, suma-se na massa dos alunos. Será então estimado. E todos farão o que ele deseja, não porque ele o ordene, mas porque todos quererão o que ele quer. Claro está que muita gente não enuncia estes princípios com tanta nitidez. Mas eles flutuam no ambiente moderno como uma nuvem impalpável se bem que muito real, e dão origem a um destes estados de espírito indefiníveis, que penetram em tudo, manifestam-se em tudo, e nunca, ou quase nunca, são nitidamente perceptíveis pela pessoa em que existem. É que o bom e o mau espírito são nas sociedades humanas o que a saúde e a doença são no corpo. Transparecem por toda a parte, mas é impossível mostrar concretamente, e de modo absolutamente exato, no que essas transparências consistem. * * * Poderíamos dizer que tal estado de espírito está construído sobre um mito, isto é, o mito da bondade. A bondade tudo consegue. As únicas armas são as da bondade. Toda resistência irrita o adversário. Toda concessão o tranqüiliza. Empregar qualquer forma de discussão, de luta, de medida repressiva contra os tumores que se formam no corpo social é mais ou menos tão estúpido quanto raspar bem ao nível da pele a ferida protuberante, com a ilusão de assim curá-la. Os ungüentos da bondade resolvem tudo. A era da violência, da cirurgia social, passou. Entramos no doce período da clínica. As pomadas da paciência e da condescendência contêm todas as penicilinas necessárias para curar os problemas individuais e sociais... Se se deseja conhecer um tema recente em que tal estado de espírito se tenha manifestado, basta lembrar a questão da anistia aos comunistas brasileiros. Segundo certas opiniões o verdadeiro seria renunciar a qualquer repressão legal e policial. Pois esta apenas irritaria os ânimos, e agravaria o problema. A anistia seria pelo contrário um golpe tremendo nos comunistas, etc., etc. A "bobeira" - não há outro termo - com que em certos círculos do Ocidente se estão acolhendo os sorrisos de Kruchtchev e Bulganin resulta do mesmo estado de espírito. No mais fundo da alma dos senhores do Kremlin o sol do sorriso lançou os primeiros raios de uma aurora, que já ninguém conseguirá deter. É preciso concordar com eles em tudo, aceitar tudo, crer em tudo. Com nossa boa vontade, adoçá-los-emos ainda mais. E dentro de algum tempo a Rússia terá sido vencida, não com tiros de canhão, mas com os doces jactos de glicerina de nossos sorrisos. Luís XVI acreditou nestes princípios. Sorriu, cedeu, concedeu. Verificado que nada adiantava, achou que era porque o remédio tinha sido ministrado em dose insuficiente. E por isto sorriu ainda mais, cedeu ainda mais, concedeu ainda mais. A dose não bastou. Ele reforçou a receita. E ao que parece só abriu os olhos quando estava preso entre os muros e as grades da Torre do Templo. Mais recentemente, fez o mesmo o Cardeal Initzer, Arcebispo de Viena, em relação aos nazistas. Não houve gentileza que não fizesse a Hitler. Não houve prova de consideração que lhe recusasse. Todos sabem qual foi a triste sorte da Igreja e do Cardeal naquele regime.
E o que nos diz sobre este grave problema Santo Inácio de Loyola? Sua bondade tornou-se proverbial entre todos os que tiveram a dita de com ele tratar. Nem poderia ter sido elevado à honra dos altares, se não preferisse em todas as ocasiões as armas da bondade às da reação e da severidade. Mas na vida espiritual, bem como na ação apostólica, não achava ele que os sorrisos, os silêncios "prudentes", as concessões fossem a única ou a principal arma. Nem considerava que era nisto que consistia a verdadeira bondade sobrenatural do cristão. Basta, para se convencer disto, ler algumas de suas páginas que figuram entre as mais célebres, isto é, as que consagrou ao "discernimento dos espíritos", e ao "sentire cum Ecclesia". Infelizmente, neste artigo trataremos só daquelas, por falta de espaço. As regras relativas ao discernimento dos espíritos constituem uma aplicação inteligentíssima do que a doutrina católica nos ensina sobre a natureza humana decaída, a graça e o demônio. A alma de todo homem é um campo de batalha, no qual lutam o bem e o mal. Todos nós temos, em conseqüência do pecado original, inclinações profundamente desordenadas que nos levam com veemência ao pecado. Estas propensões são reforçadas não raras vezes pela ação do demônio. Assim, o homem sente uma viva atração para o mal. Tal atração se apresenta por vezes com uma franqueza desabrida. Mas outras vezes se manifesta por meios indiretos, como que a medo. Para lutar contra este terrível perigo, o homem tem as forças sadias de sua própria natureza, e os socorros da graça de Deus. Entre as forças que o levam para o bem e para o mal está, como fiel da balança, o livre arbítrio humano. Desde que o homem incline o livre arbítrio para o lado do bem, tem de lutar contra sua natureza corrompida e a ação diabólica. Como se trava esta luta? Por meio de uma intransigência absoluta com tudo quanto possa direta ou indireta, clara ou veladamente conduzir ao mal. Se um sentimento de alegria leva ao apetite dos prazeres ilícitos, deve ser inexoravelmente rejeitado, pois qualquer concessão ou contemporização só agravará a tentação, em lugar de a eliminar. Se pelo contrário esse mesmo sentimento nos conduz à virtude, ao bem, à piedade, deve encontrar abertas as portas de nossa alma, pois leva a Deus. O mesmo se diga da tristeza. Há tristezas que suscitam o arrependimento, a emenda da vida, que procedem do Espírito Santo e merecem plena correspondência de nossa vontade. Mas há tristezas como a de Judas, que impelem ao abatimento, ao desespero, pois provêm da moleza do homem, ou das sugestões do demônio, e em conseqüência merecem guerra sem quartel. A aridez deve ser vista à luz desta concepção militante da vida espiritual. Por vezes, é ela uma prova que vem de Deus. O homem deve neste estado de desolação redobrar de vigilância contra o demônio e a carne. Deve desconfiar de si, não tomando resoluções que possam ser sugeridas pela situação interior em que se encontra. Deve intensificar as orações. Vencerá assim a prova, para bem de sua alma e glória de Deus. Mas se a aridez provier de negligência e tibieza, é preciso combater energicamente estes defeitos, para que, cessada a causa, desapareçam seus infelizes frutos. E nesta luta, insistimos, é necessário que sejamos desconfiados e rijos. Sobre a desconfiança interior contra os ardis do demônio, tem Santo Inácio este trecho saboroso: "O demônio faz como a mulher: dá parte de fraco, quando afrontado com energia; e mostra-se forte, quando lhe cedem terreno. Pois assim como é próprio da mulher acovardar-se e fugir logo que o homem se impõe energicamente; e como, pelo contrário, sua fúria, desejo de vingança e ferocidade vão crescendo e chegam ao extremo, se o homem, perdendo a coragem, começa a ceder, - da mesma forma é próprio do demônio acovardar-se e perder a coragem, desistindo dos seus ataques, logo que a pessoa que se exercita nas coisas espirituais o enfrenta impavidamente, opondo-se diametralmente ao que ele lhe sugere. Se, porém, o exercitante começa a ter medo e a desanimar em meio das tentações, então não há no mundo inteiro fera tão sanhuda e que com tanta malícia persista em seus maléficos intentos, como o inimigo da natureza humana" (Regras sobre o discernimento dos espíritos, nº 13). E sobre a rijeza encontramos pouco antes estas palavras: "O demônio procede também como um falso enamorado, que corteja às escondidas e não quer ser descoberto. Pois assim como o enamorado que com suas torpes solicitações vai seduzir a filha de um pai honesto, ou a esposa de um marido honrado, procura que suas conversas insinuantes fiquem em segredo; e como, pelo contrário, lhe desagrada muito que a moça ou a esposa descubra ao pai ou ao marido as suas conversas levianas e intenções depravadas, pelo receio que tem de lhe sair mal a tentativa, - assim também o inimigo do gênero humano, quando inculca à alma do justo suas fraudes e sugestões, quer a todo o custo que sejam recebidas e guardadas em segredo" (ibid., nº 12). De tudo isto resulta um princípio. É que o verdadeiro católico pode ceder em tudo... desde que sua concessão não alimente as más paixões. Pois toda concessão que tenha este efeito agrava os problemas em lugar de os resolver. * * * Ora, o que se diz da luta que cada um de nós trava dentro de si mesmo, deve-se dizer também das lutas que tenhamos de travar com o próximo. A caridade nos leva a ceder sempre que a prudência o permita. Mas esta prudência estabelece muitos limites. E um deles resulta da suma combustibilidade das paixões humanas. O pai, o mestre, o patrão, o homem público devem absolutamente lutar contra as más inclinações de seus súbditos. E se abandonarem esta luta, abandonam pura e simplesmente seu dever. Ora, sempre que uma concessão alimente o desregramento das paixões, sempre que um sorriso pareça um recuo diante do espírito de revolta que com isto se torna mais insolente, sempre que um gesto de fraqueza possa dar ao erro, ao vício ou ao crime a impressão de que está autorizado a expandir-se, é preciso recusar este sorriso, evitar este gesto, negar esta concessão. Mais: é preciso substituir o sorriso pelo semblante sombrio e carregado, substituir a concessão por uma ameaça, e impedir o mal com todos os recursos de que se possa dispor. Em uma palavra, é preciso lutar, e lutar até o fim. É a grande consequência - válida na escala individual, como na social ou na política - que podemos tirar das sapientíssimas regras sobre o discernimento dos espíritos. |