Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Fidelidade ao passado e liberdade

de ação para o futuro

 

 

 

 

 

 

Catolicismo, Nº 61, Janeiro de 1956

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Um destacamento de guardas suíços desce os degraus da imponente Scala Regia no Vaticano. O ambiente se conserva precisamente como na Renascença. Nada indica, nos trajes, nas armas, no prédio, que estamos em 1956. É que o Vaticano nos oferece um exemplo magnífico de fidelidade ao passado. Mas ao mesmo tempo, os Papas, e Pio XII de modo todo particular, têm introduzido no Palácio Apostólico todos os melhoramentos capazes de servir ao bom andamento dos assuntos eclesiásticos. Os escritórios, o Banco, o Correio, o Governatorado do Vaticano têm sido equipados com o que há de melhor. Harmoniosa fusão entre os valores oferecidos por todos os séculos, incluído o nosso, para a boa ordenação do trabalho e da vida. Luminosa expressão de que tradição e progresso podem e devem coexistir e completar-se, segundo planos da Providência.

Guardas suíços junto à Basílica de São Pedro

"A Igreja é um fato histórico que, como uma possante cadeia de montanhas, percorre a história dos dois últimos milênios". Esta formosa comparação, contida no discurso do Santo Padre Pio XII aos membros do X Congresso Internacional de Ciências Históricas (7 de setembro de 1955), nos vem naturalmente ao espírito, ao preparar o presente artigo. Com efeito, devemos nestas linhas enfeixar numa vista de conjunto o ano de 1955, cujos últimos dias vão imergindo no passado e com isto vão sendo transformados em história. E devemos lançar uma vista interrogativa sobre o futuro, sobre essa "história de amanhã" que se nos afigura tão indecisa. Ao coordenar reminiscências de ontem e impressões de hoje, a própria evidência dos fatos nos faz vir à mente a formosa frase deste Pontífice cuja memória se guardará até o fim dos séculos. Realmente, a grande cordilheira da história, em função da qual se dividem as vertentes do pensamento humano, é bem a Santa Igreja de Deus. Considerar à luz desta verdade primordial a situação hodierna é tarefa útil e grata. Grata, sim, ainda mesmo quando a realidade que se nos desvenda aos olhos é particularmente triste. Pois todas as tristezas do momento presente são como que transpostas a um plano superior e se banham numa nobre e suave luz de consolação espiritual, quando consideradas do alto da doutrina da Igreja. 

O mundo contemporâneo poderia ser dividido, grosso modo, em três zonas culturais distintas: o Ocidente, a gentilidade, as nações sob o jugo comunista. No Ocidente - expressão muito mais cultural do que geográfica, bom é insistir - estão os povos europeus aquém da cortina de ferro, a América e a Austrália. Fazem parte da gentilidade os povos que viveram até o século passado no letargo de uma civilização inteiramente pagã, e hoje despertam para as realidades trepidantes da técnica, sem jamais haverem passado por uma fase de civilização cristã. O mundo marxista, que vai do Adriático (pois ideologicamente pelo menos, Tito é comunista) até o Pacífico, tocando em um de seus extremos no Oceano Ártico e banhando o outro extremo nas águas quentes do Oceano Índico, se compõe de tudo quanto o bolchevismo deglutiu, e tenta digerir lentamente: eslavos, chineses, mongóis, tártaros, alemães, húngaros, coreanos etc. 

Nada mais evidente do que esta divisão. Em função dela, é que os fatos mais candentes da atualidade e as linhas mais profundas da política se explicam. A visita de Kruchev e Bulganin à Índia, à Indochina e ao Afeganistão, por exemplo, o que é, senão um episódio da luta entre bolchevistas e ocidentais para a conquista da gentilidade? A questão marroquina, a questão tunisiana, a questão argelina, a questão árabe, a questão egípcia interessam ao mundo inteiro. E porque, se em última análise os seus termos mais palpáveis se reduzem a meros conflitos de fronteiras, e de interesses imperialistas ou autonomistas? É porque estas questões se prendem todas ao problema de importância mundial da tomada de posição das nações gentílicas em face da grande luta entre comunistas e ocidentais, e este é por sua vez o problema dos problemas na política hodierna.

Ora, esta divisão tripartite como se explica? Queira-se, ou não se queira, é em função de Nosso Senhor Jesus Cristo. Um campo é o dos povos cuja cultura se pode dizer ainda cristã. Outro é o dos povos que não conheceram ainda Jesus Cristo. E o terceiro é o dos que gemem sob o jugo dos oligarcas que explicitamente, e de modo violento, O combatem.

Jesus Cristo e seu Corpo Místico, que é a Santa Igreja, são bem realmente a pedra de escândalo do passado e do presente. E é em função desta pedra de ângulo que se desenvolverá o futuro.

Se bem que esta divisão seja clara, simples, lógica, e corresponda evidentemente aos fatos, precisa ser vista com certa ductilidade de espírito

Com efeito, há algo de artificial em classificar países dentro de um esquema ideológico. Assim, por detrás da cortina de ferro ou de bambu, há riquezas de alma que não se deixaram absorver pelo comunismo, e que até talvez marchem em sentido oposto. Pois não será de admirar que, na resistência ao marxismo, amparados pela Providência, cismáticos e pagãos se vejam na contingência de aprofundar melhor o conhecimento e o amor a todas as suas tradições nacionais, e acabem por ver que o que elas têm de bom encontra na Igreja não só amparo e simpatia, mas seiva vital e plenitude. Mais ainda, há por detrás das fronteiras do mundo soviético blocos católicos de valor inestimável. Pensamos com veneração e ternura nos fiéis oprimidos da Europa, e particularmente num povo e num homem que o simbolizam. Um povo, a Polônia mártir. Um homem, o cardeal Myndszenty, Arcebispo de Esztergom na Hungria. Pensamos com amor nos inúmeros católicos perseguidos da Ásia, e naquela Polônia do Oriente, que é a brava nação vietnamita, opressa, dispersa, entregue às feras, mas cuja perseverança enche de ufania todas as almas fiéis. De outro lado, há nos países da gentilidade núcleos pequenos de católicos, velhos uns como nossos admiráveis e queridíssimos "compatriotas" de Goa, novos outros, mas que constituem no seu conjunto uma verdadeira primavera de fé. E por fim, neste ocidente, cheio de tanta luz e de tanta glória cristã, quanta miséria: heresias declaradas ou veladas, imoralidade, ateísmo, neomaniqueísmo enfim, mil vezes mais odioso do que o paganismo asiático ou africano. 

Em cada país há hoje uma profunda divisão. Nosso século não é apenas o da Guerra Universal, de que a de 1914 e a de 1939 foram apenas dois marcos. É a época da Grande Revolução, que inspira e suscita mil "revoluções" internas em todos os povos. Grandes e pequenos, homens de cultura e proletários, todos se entredigladiam. E o segredo de tudo isto está em Jesus Cristo. Pois é por ou contra Ele que, conscientemente ou não, se luta. Se Ele fosse obedecido haveria paz. Mas como se O ignora, o irmão se levanta contra o irmão, e o filho contra o pai. 

Cristo e a Igreja, aqui também, são o centro da vida, e o eixo em torno do qual se agita a história, a grande cordilheira que a transpõe e a divide em duas vertentes, desde o primeiro Natal até o fim dos tempos. 

Construção do templo de Salomão (pintura de Jean Fouquet)

Considerando o passado

Referindo-se às condições hodiernas do Ocidente, Pio XII, em seu discurso aos historiadores, notou que sua situação é de funda crise religiosa: "O que se chama Ocidente ou mundo ocidental sofreu profundas modificações desde a Idade Média: a cisão religiosa do século XVI, o racionalismo e o liberalismo conduziram o Estado do século XIX à sua política de força e à sua civilização secularizada. Tornava-se pois inevitável que as relações da Igreja Católica com o Ocidente sofressem um deslocamento".

Estas palavras lembram sensivelmente as condições históricas de Leão XIII, esparsas em seus diversos atos de magistério, e enunciadas num corpo harmônico na Encíclica "Parvenu à la vingt-cinquième année": a Idade Média representara na história do Ocidente cristão o ponto mais alto, em matéria de influência da Igreja sobre a vida pública, as leis e a cultura. Veio depois o protestantismo, explosão de liberalismo religioso, que conduziu à Revolução Francesa, explosão de liberalismo político, a qual teve por fruto a sociedade secularizada do século passado.

Acerca do luminoso ponto de partida desse triste processus, a Idade Média, Leão XIII, em sua Encíclica "Immortale Dei", tem estas palavras cheias de admiração e ternura: "Tempo houve, em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Naquela época, a influência da sabedoria cristã e sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e relações da sociedade civil. Então, a Religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido, florescia por toda a parte, graças ao favor dos príncipes e à proteção legitima dos magistrados. O Sacerdócio e o Império estavam então ligados entre si por uma feliz concórdia e uma amistosa permuta de bons ofícios. Assim organizada, a sociedade civil produziu frutos superiores a qualquer expectativa".

Mas, lendo-se com atenção os documentos do ilustre Papa, vê-se que ele considera que nem todos os fatos ocorridos da Idade Média para cá, constituíram decadência. Profundamente golpeado, o Ocidente cristão continuou entretanto a progredir. Mais ou menos como um adolescente contaminado de tuberculose - a comparação é nossa - em que ao mesmo tempo pode crescer o organismo e progredir a moléstia.

Qual é para nós hoje o remédio, depois de alguns séculos desse processus complicado, de crescimento e degenerescência simultâneos? Voltar pura e simplesmente à Idade Média? Seria uma solução tão simplista quanto a do médico que julgasse consistir a cura do adolescente, já feito moço, em voltar aos seus 15 anos. É preciso curar a tuberculose, e não fazer voltar atrás os ponteiros do relógio.

E neste ponto o discurso de Pio XII aos historiadores contém um princípio que domina do mais alto todo o assunto. A doutrina do Evangelho é imutável. Mas, ao ser posta em prática, ela deve atuar sobre inúmeras circunstâncias concretas das mais variáveis, ordenando-as, corrigindo-as, elevando-as. E como uma civilização católica, considerada no plano histórico, é sempre a realização dos princípios doutrinários imutáveis do Evangelho, em circunstâncias históricas mutáveis, como de outro lado a Igreja não está vinculada senão à Revelação, daí decorre que Ela não Se identifica com qualquer cultura, ou qualquer civilização, por mais que lhes tenha servido de fonte de inspiração.

Princípio altíssimo, princípio fecundo, que melhor se compreende em toda a sua extensão, considerando-lhe a aplicação, a titulo de exemplo, numa esfera mais acessível, isto é, esfera individual. 

Tenhamos em vista, assim, não a história de um século, mas a de um homem, a de um Santo. Cada Santo dá uma realização plena aos preceitos e aos conselhos do Evangelho. Mas esta realização tem como campo de ação as circunstâncias pessoais e culturais do Santo. A Igreja impõe que se imite o exemplo dos Santos? Cumpre distinguir. Em seu espírito, nos princípios que o nortearam, sim, mas no que decorria de circunstâncias históricas contingentes, não. Santo Antônio falou aos peixes. Quer isto dizer que todo católico deve ir ao litoral convocar os peixes para uma conferencia? Não. São Simeão Estilita passou a vida no alto de uma coluna. Quer isto dizer que o mundo se deva transformar numa floresta de colunas, com um bom católico no alto de cada uma? Também não. Mas o espírito dos Santos, as regras de moral que praticaram, a virtude de que deram mostras, isto é perene, isto é imitável em todos os tempos e lugares.

Assim com a Idade Média. Tudo quanto nela foi inspiração dos princípios católicos, devemos desejar vê-lo revigorado no mundo inteiro. Mas o que foi circunstancial pode mudar.

Como distinguir o essencial do circunstancial? A tarefa comporta riscos consideráveis. Pois se há um excesso possível, no se considerar imutável algo que foi circunstancial, há também outro excesso possível, no se considerar circunstancial algo que é imutável. Isto não quer dizer que esta distinção não deva fazer-se. Quer dizer que deve fazer-se com muita prudência, muito tato, muito amor à Igreja. E muita desconfiança de que nos influenciem os erros tão pertinazes, tão aliciantes, de nosso século.

Um exemplo para ilustrar o assunto. A Igreja ensina ser obrigação do Estado professar a Religião Católica oficialmente, e organizar-se segundo os ditames do Evangelho. Na Idade Média, os Estados cristãos cumpriram este dever. O mesmo ideal continua a ser o de todos os católicos... não maritainizados. (É o que poderia ponderar um escritor do Rio de Janeiro, admirador fogoso e irrestrito de Maritain, que viu no discurso de Pio XII uma justificação da atitude de seu mestre nessa questão). Mas isto não quer dizer que muitos dos pormenores concretos dessa união - estilos e protocolos, por exemplo - não mudem conforme os tempos e os lugares. E é bem de ver que o campo do contingente não se limita a pormenores tais. Basta ler para este efeito a alocução de Pio XII.

Se, pois, os católicos podem e devem inspirar-se no passado, é para imitá-lo, e não para o copiar servilmente. Neste mudar de ano quer Pio XII que entremos em 1956 com a cabeça cheia da sabedoria da Igreja e da boa inspiração do passado, mas com os movimentos livres. 

Olhos postos no futuro

A própria Idade Média, lembra o Pontífice, tomou inspiração em épocas e culturas anteriores. Sem os ridículos e nefastos excessos da renascença, nutriu-se ela do leite rico da cultura clássica, do vinho forte de certos costumes germânicos, e das tradições de Fé dos séculos que a precederam. O que significa que tomou elementos culturais contingentes, para fazer a sua grande obra. De onde decorre que, embora ela tenha sido uma cultura católica, outras culturas católicas são possíveis, igualmente fiéis ao espírito da Igreja, mas alimentadas de seivas diferentes. E com isto Pio XII abre largamente os braços para as nações hoje ainda pagãs. Pode haver no Japão ou na Pérsia, desde que se convertam, uma cultura católica que assuma, purifique, eleve e ordene todos os valores tradicionais daqueles países. Claro está que, neste sentido histórico da palavra "cultura" terá nascido uma autêntica cultura católica nova, profundamente afim com a do Ocidente enquanto católica, profundamente diversa enquanto persa ou japonesa. E Pio XII quer mostrar bem claramente aos povos gentios que a Igreja não deseja de modo nenhum desnacionalizá-los, nem ocidentalizá-los. Católica, a Igreja entretanto não é cosmopolita. Ao contrário do que hoje se pratica, Ela não quer impor ao mundo inteiro uma mesma arte, um mesmo estilo de vida. Na imensidade de seu coração, cabem todos os povos folgadamente, de sorte que o suíço continue inteiramente suíço sendo profundamente católico, e o mesmo suceda ao afegão, ao esquimó ou ao bororó. Ela não sente necessidade de os reduzir a uma matéria-prima única e informe para os abranger todos. Cabem, portanto, em seu seio todas as culturas, em tudo aquilo que tenham de naturalmente bom, e aceitável pela Igreja, sob a condição de que se deixem guiar por sua doutrina e embeber inteiramente de sua vida sobrenatural.

Entramos, pois, em 1956, como O Pai Comum, com o coração e os braços largamente abertos, para uma acolhida cheia de discernimento, inteligência, prudência e afeto, para esses povos de tão glorioso passado... 

 

Samurai com o terço

O que fica então de fora? Tudo aquilo que a Igreja repudia como contrário ao Evangelho. Antes de tudo, as leis, instituições, a própria inspiração do comunismo. A Igreja ama intensamente os povos que gemem sob o peso deste erro. Mas execra o erro que os domina. Em seguida, todos os elementos que formam a velha ganga do paganismo na gentilidade: idolatria, costumes corruptos, naturalismo profundo, brutalidade. E, por fim, tudo aquilo que constitui em nossa civilização ocidental o veneno mil vezes pior do chamado "neopaganismo", que antes devera chamar-se o maniqueísmo moderno, sob todas as suas formas declaradas ou larvadas.

Que o ano de 1956 marque um passo avantajado na derrota de todo este mal, na edificação de uma civilização autenticamente católica em cada país do mundo, é o que de melhor, a respeito dele, podemos pedir a Nossa Senhora.


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