Plinio Corrêa de Oliveira

 

APPARUIT BENIGNITAS ET HUMANITAS

 SALVATORIS NOSTRI DEI

 

"Catolicismo" Nº 60, Dezembro de 1955

 

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(Adoração dos Magos - Velázquez)

 

Quem poderá dizer quantas pessoas, neste Natal de 1955, se ajoelharão diante de um presépio? Quem poderá enumerar os homens de todas as raças, em todas as latitudes, que se acercarão do berço do Menino-Deus, a fim de Lhe implorar graças particularmente ricas e abundantes, nesse dia em que se abrem em toda a sua largueza as portas da misericórdia divina?

Também nós, diretores, colaboradores e leitores de CATOLICISMO nos preparamos para acercar-nos do santo presépio. Queremos meditar as lições que dele decorrem, robustecer nossas vontades nas graças que dele promanam, alentar nossos corações na alegria de que é ele fonte imperecível.

Quis a Providência que o Menino Jesus recebesse a visita de três sábios - que segundo uma venerável tradição eram também Reis - e alguns pastores. Precisamente os dois extremos da escala humana dos valores. Pois o Rei está de direito no ápice do prestigio social, da autoridade política e do poder econômico. O sábio é a mais alta expressão da capacidade intelectual. O pastor se encontra, na escala dos valores, em matéria de prestigio, de poder e de ciência, no grau mínimo, no rés do chão. Ora, a graça divina, que chamou ao presépio os Reis Magos, do fundo de seus longínquos países, chamou também os pastores, do fundo de sua ignorância. A graça nada faz de errado ou incompleto. Se ela os chamou, e lhes mostrou como ir, há de lhes ter ensinado também como apresentar-se ante o Filho de Deus. E como se apresentaram eles? Bem caracteristicamente como eram. Os pastores lá foram levando seu gado, sem passar antes por Belém para uma "toilette" que disfarçasse sua condição humilde. Os Magos se apresentaram com seus tesouros, ouro, incenso e mirra, sem procurar ocultar sua grandeza a fim de não destoar do ambiente supremamente humilde em que se encontrava o Divino Infante. A piedade cristã, expressa numa iconografia abundantíssima, entendeu durante séculos, e ainda entende, que os Reis Magos se dirigiram para a gruta com todas as suas insígnias. Quer isto dizer que ao pé do presépio cada qual se deve apresentar tal qual é, sem disfarces nem atenuações. Pois há lugar para todos, grandes e pequenos, fortes e fracos, sábios e ignorantes É questão, apenas, para cada qual, de conhecer-se, para saber onde se pôr junto de Jesus.

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Ora, o que é CATOLICISMO? Qual seu lugar na Casa de Deus? Respondendo a esta pergunta, teremos encontrado nosso próprio lugar junto a Jesus.

Sabemos que, no Céu, os Anjos, distribuídos nos nove Coros, contemplam diretamente a essência divina, em cuja riqueza infinita cada qual vê mais nitidamente certas perfeições.

Na Igreja, dá-se um fato análogo. As Ordens e Congregações Religiosas têm, em geral, seu espírito próprio, seu feitio, sua escola de santificação. E por isto cada qual contempla e imita mais especialmente certas perfeições do Divino Redentor.

Este fato tem sua repercussão na vida espiritual dos fiéis. Percorrido pelas mais variadas e fecundas correntes de espiritualidade, nascidas de Ordens Religiosas, ou de Santos dos mais variados estados, distribui-se o laicato em grandes famílias espirituais, de contornos mais precisos, ou menos, cuja vitalidade se identifica com a própria vitalidade religiosa de um povo. Congregados Marianos, Filhas de Maria, Acistas, Terceiros carmelitas, franciscanos, dominicanos, norbertinos, servitas, Oblatos beneditinos, Cooperadores salesianos e tantos outros representam apenas os pontos de cristalização mais visível dessas diversas correntes.

De fato, o espírito de Santo Inácio, como o de S. Domingos, S. Bento, S. Francisco, S. João Bosco e dos demais Santos, sopra ainda muito mais largamente em toda a Cristandade, dotando-a de uma diversidade maravilhosamente harmoniosa.

Os fatos espirituais, por sua vez, geram conseqüências no terreno do apostolado. E assim vemos na Igreja militante uma admirável variedade de obras apostólicas que agem cada qual com meios peculiares, falam aos homens uma linguagem própria, e se articulam explícita ou tacitamente com as demais, para a realização do Reinado de Jesus Cristo sobre a terra.

Era necessário que assim fosse. Pois os homens, Deus os cria muito diversos entre si, com necessidades, aspirações e vias muito pessoais. As verdades que mais tocam a uns não são sempre as que mais facilmente movem ou esclarecem os outros.

Assim, apropriando-nos de uma formosa imagem utilizada em um de seus brilhantes discursos pelo Exmo. Revmo. Sr. Bispo Diocesano, D. Antonio de Castro Mayer, poderíamos comparar o conjunto das obras católicas de um país a um imenso carrilhão, em que cada sino emite um som próprio, seja ele grave, solene, possante, seja cristalino, álacre, juvenil. Do fato de tocarem todos, resulta a harmonia do conjunto.

No imenso carrilhão das obras de apostolado do Brasil, qual o papel de CATOLICISMO?

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Infelizmente, a publicação de nossos anuários católicos está um pouco atrasada. Não possuímos o de 1954. Dá gosto folhear os mais recentes, pois não há quem não se maravilhe considerando todo o esforço coletivo, se destina à salvação [ ... ], no recrutamento das vocações, na formação dos seminaristas e noviços, no ensino catequético, na instrução primaria, secundária, profissional, normal e superior da mocidade que continua no século, na organização de editoras, na propagação de folhas católicas de todos os feitios e de todos os tamanhos, desde os grandes diários até os mais humildes boletins, e no apostolado do rádio em todas as amplitudes, desde as mais apagadas emissoras locais, até as mais possantes. Ademais, é impossível a um espírito apostólico não estremecer de júbilo, na consideração de tudo quanto, nesse imenso esforço coletivo se destina à salvação e ao alívio dos silvícolas, dos doentes, dos pobres, dos órfãos e dos encarcerados. Por fim, e sem pretender incluir nessa sumaríssima enumeração todas as formas de apostolado tão variadas, que se realizam em nosso país, lembremos tudo quanto se faz para a formação e conquista do laicato nas inúmeras associações de fiéis, e para a solução da questão social em todos os seus aspectos. No seu conjunto, estamos em presença de uma imensa obra de semeadura, que estende sua ação benfazeja a todo o território nacional.

Qual, nesse gigantesco esforço de construção, nossa parcela de colaboração? Ajoelhados aos pés do Menino Jesus, na visita de Natal, todos Lhe oferecerão seus presentes: educadores, missionários, oradores, dirigentes de obras, terão frutos positivos a Lhe oferecer. Enquanto tantos se Lhe apresentarão com as mãos cheias de ouro e incenso, o que Lhe daremos nós?

Uma coleção de jornais. Nesta coleção, o que há? Se cada palavra contendo boa doutrina, por mais modesta que seja, tem aos olhos da misericórdia divina o valor do ouro, e Lhe é agradável como incenso, por certo há muitos grãos de incenso e ouro em nossas paginas. Mas também há muita mirra. Do que, aliás, sentimos alegria, já que o Evangelho conta que os Reis Magos levaram ao presépio não só ouro e incenso, mas também mirra.

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Há verdades que aos homens impressionam como o ouro. Há outras que lhes são suaves e perfumadas como o incenso.

Quanto à mirra, é mais modesta. A raiz etimológica dessa palavra se relaciona com o vocábulo "mur", que em árabe quer dizer "amargo". Os especialistas descrevem a mirra como uma resina gomosa, em forma de lágrima, dotada de gosto amargo, aromática, vermelha, semitransparente, frágil e brilhante. Seu odor é agradável, mas um pouco penetrante. Como se vê, tem ela a beleza discreta, austera, forte, do sangue. E seu perfume é o da disciplina e da sobriedade.

Diríamos que no campo ideológico a grande verdade representada pela mirra é o princípio de contradição, pelo qual o sim é sim e o não é não Todas as outras são ouro e incenso, mas só valem se apreciadas num ambiente perfumado pela mirra. E é desta mirra que larga, muito, muito largamente necessita o Brasil.

Não se confunda o princípio de contradição, que é quinta-essência da lógica, da coerência, da objetividade, com o espírito de contradição. Este é um vício que resulta do prazer jactancioso de contrariar o próximo: é volúvel, e faz do sim, não e do não sim, conforme convenha à posição arbitrariamente tomada de momento.

Somos um povo que tem o defeito de suas qualidades. Propensos habitualmente a tudo que é bom, infelizmente não somos ao mesmo tempo infensos a tudo quanto é mau. Em geral, os outros povos, quando amam uma verdade, odeiam o erro que lhe é contrário. E reciprocamente, quando amam o erro detestam a verdade que a ele se contrapõe. Em última análise, é pelo jogo desse princípio que se explicam as grandes fidelidades, como as grandes apostasias. Na psicologia do brasileiro, o ódio explícito e declarado à verdade e ao bem é raro. Neste sentido somos um dos melhores povos da terra. Mas quando se trata, para nós, de deduzir do amor à verdade e ao bem uma atitude militante contra o erro e o mal, o caso é outro. E no fundo isto se dá porque o princípio de contradição é antipático à pacateza brasileira. Uma expressão muito conhecida exprime em linguagem popular o princípio de contradição: "pão, pão; queijo, queijo". Mas em inúmeros casos confundimos pão com queijo.

Esta tendência de espírito se reflete em muitos aspectos da nossa mentalidade. O Brasil é uma República. Entretanto, em nenhum lugar o monarca destronado e a monarquia deixaram mais saudades. Separamo-nos de Portugal numa atmosfera borrascosa. Entretanto, no tratado em que a antiga Metrópole reconhecia nossa independência asseguramos a D. João VI até o fim de seus dias o título de Imperador do Brasil. O quadro corrente, e por assim dizer oficial do Marechal Deodoro, proclamador da República, apresenta-o com o peito constelado com as insígnias do Império que derrubou. Expulsamos em 1930 o Presidente Washington Luiz. Restaurado o regime constitucional regressou ele ao Brasil num ambiente de respeito e de simpatia tão gerais, que com exceção de D. Pedro II nenhum homem público reuniu em torno de si unanimidade maior. Porque então foi destituído? Dessas pitorescas contradições, poder-se-ia fazer uma longa lista. E o assunto Getúlio Vargas - ainda quente demais para ser abordado num artigo desta índole - forneceria a este respeito farta documentação.

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Talvez, à vista destas reflexões, algum leitor sorria, como quem está em presença de um amável desfeito. Pois não deixa de ter algo de simpático e tranqüilizador um tal cúmulo de bonomia.

Mas estudemos este assunto no terreno da moral. Trata-se de analisar esta tendência psicológica, para ver se é conforme à Lei de Deus. E não é com meros sorrisos, mas com muita seriedade que se resolvem os problemas morais.

Aquele que veio ao mundo para pregar as Bem-aventuranças, nos deixou por preceito que fossemos fiéis ao princípio de contradição: "seja vossa linguagem sim, sim; não, não" ( Mt. 5, 37 ). E se tal deve ser nossa linguagem, tal deve ser nosso pensamento. Em matéria de moral, mais do que em qualquer outra, todo excesso é um mal, ainda que seja de qualidades tão simpáticas quanto a bonomia, e a suavidade de trato. E um mal que conforme o caso pode tornar-se muito grave.

Exemplifiquemos. No terreno religioso, não é bem verdade que o amortecimento do princípio de contradição nos conduz com muita freqüência a atitudes lamentáveis? Quantos são os católicos que se julgam no direito de discordar da Igreja em algum ou em muitos pontos? Com isto, embora se ufanem de católicos, pecam contra a fé. Porque? Simplesmente porque imaginam possível um "tertium genus" entre ser católico e não ser. O mesmo se diga da naturalidade com que se admite entre nós uma categoria de católicos "não praticantes"! Claro que os há no mundo inteiro. Mas parece-nos que em nenhum país eles têm tão pouca consciência do que seu estado apresenta de cacofonico, de antitético, em uma palavra, de contraditório. Por fim, mais um exemplo. Quantas famílias temos, modelarmente constituídas! Porque progridem tanto as modas imorais? É que essas famílias, que prezam tanto a virtude, são por vezes pouco enérgicas no combate ao vício. Em todos estes casos o que nos falta? Viveza no princípio de contradição lapidarmente definido por Nosso Senhor, quando mostrou a incompatibilidade entre o "sim" e o "não".

Este artigo se vai alongando. Não resisto entretanto ao desejo de indicar outro exemplo. Todos se queixam da anemia de nossa vida partidária, de nossa atonia em matéria de ideologia política, e do predomínio das questões pessoais em nossa vida pública. Uma das causas deste fato está na carência do princípio de contradição. Pois se em face de uma idéia que temos por certa não nos arregimentamos para a defender resolutamente contra as que lhe são opostas, como pode haver partidos de verdadeiro conteúdo ideológico?

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O amortecimento do princípio de contradição gera o gosto, a mania das soluções intermediárias, eu quase diria a servidão às soluções intermediárias. Dados dois caminhos, escolher sempre o do meio, o que não é carne nem peixe: é no que se cifra para muita gente toda a sabedoria. Ora, se rejeitar por princípio as soluções intermediárias é um erro, erro também é adotá-las por princípio. Pois há casos em que a Sabedoria as condena formalmente: "Oxalá fosses frio ou quente; mas, como és morno, nem frio nem quente, começarei a vomitar-te de minha boca" ( Apoc. 3,15 ).

A pessoa viciada nas soluções intermediárias é a vitima ideal de todos os velhacos. Pois a habilidade do velhaco consiste precisamente em fazer com que o ingênuo aceite, com algum disfarce, aquilo que, a nu e sem maquilagem, ele repudiaria. Os hereges são useiros e vezeiros em velhacarias desta natureza. Rejeitado o pelagianismo, obtiveram eles a adesão de inúmeros ingênuos por meio do semi-pelagianismo. Condenado o arianismo, puseram eles em circulação o semi-arianismo. Fulminado o protestantismo, inventaram o baianismo e o jansenismo. Condenados o comunismo e o socialismo fabricam um "socialismo mitigado", que em última análise não é senão comunismo velado. E assim por diante.

Que essa tática é particularmente desenvolvida em nosso tempo, nada mais notório. Estamos no século da 5ª coluna. E que uma das formas mais hábeis de solapar os meios católicos é esta, as mais altas Autoridades Eclesiásticas de nossos dias já o disseram. Disse-o Sua Eminência o Cardeal Saliège, Arcebispo de Toulouse, quando afirmou em declaração mundialmente famosa, que tudo se passa como se houvesse uma ação articulada para "preparar no seio do Catolicismo um movimento de acolhida ao comunismo" ( cf. CATOLICISMO, nº 37, de janeiro de 1954, pág. 8 ).

E assim nada mais perigoso para o Brasil, nesta hora, do que o amortecimento do princípio de contradição. E nada mais necessário do que trabalhar para que, em nosso país, este princípio tome mais força, mais cor, mais eficiência em toda a vida mental.

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Não sei se um leitor não brasileiro compreenderá bem toda esta problemática. Duvido bastante. Mas para um brasileiro isto é bem mais inteligível. E é inteligível sobretudo para Vós, Senhor Jesus, que, deitado num berço rústico, sondais entretanto até o fundo as almas e os corações. Para Vós que, sendo a Sabedoria incriada, e tendo nascido d'Aquela que é a Sede da Sabedoria, conheceis totalmente a índole de cada povo, a todos amais, a todos quereis santificar. Para Vós que desde toda a eternidade tão particularmente amastes o povo brasileiro, e o predestinastes a uma grandeza que encherá a história de amanhã.

Nossa obra é principalmente de mirra. Jornal feito para católicos militantes e praticantes, queremos que eles Vos amem sem mescla de qualquer outro amor. Que só sirvam a um Senhor. Que sejam cada qual em seu coração uma cidade sem divisão, contra a qual nada pode o Inimigo. Que não olhem para trás, ao empunhar o arado, e que no afã de semear não se esqueçam de arrancar a erva daninha.

De certo modo, os católicos militantes e praticantes são, também eles, sal da terra e luz do mundo. Em parte depende da cooperação deles que o mundo não se corrompa, nem caia nas trevas. Queremos que eles sejam um sal muito e muito salgado, uma luz posta no mais alto da montanha, e muito brilhante. Neste sentido, Senhor, é nossa cooperação. Este o presente de Natal que acumulamos durante o ano inteiro, para Vos oferecer. Outros Vos darão o incenso de suas inúmeras obras, capazes de um bem inapreciável. Nós nos inserimos nessa grande obra queimando em abundância, no solo bem amado do Brasil, a mirra austera mas odorífera do "sim, sim; não, não".

Que Maria Santíssima aceite essa mirra em suas mãos indizivelmente santas e Vo-las ofereça. Ela terá para Vós então o encanto do ouro, e do incenso, com alguma coisa a mais: e isto lhe virá do suor, do sangue de alma, e das lágrimas de um apostolado que tem suas horas muito amargas... Mas na Cruz está a luz. E neste amargor o melhor da alegria e da beleza de nosso apostolado.