Catolicismo Nº 58 - Outubro de 1955

 

A IGREJA PROTEGE A ARTE CONTRA O NEOMANIQUEÍSMO

 

Para a Roma Imperial convergiram influências culturais e expressões artísticas de todo o orbe, que se expandiram livremente sob a égide do classicismo greco-romano triunfante. As invasões bárbaras reduziram a ruínas estas grandezas de porte universal. Logo que a Igreja pôde respirar, depois do ciclone, pôs-Se a con-servar o que restava, a proteger o que ainda vivia, e circundada destas recorda-ções preciosas caminhou de novo para a frente. Aguardava-A o grande esplendor cristão da Idade Média. Também durante este período, Roma se abriu largamente para as influências culturais e artísticas do mundo inteiro, desde que fossem com-patíveis com a doutrina evangélica e por ela influenciáveis. E o mesmo se deu ao longo dos outros séculos, de sorte que a Cidade Eterna é hoje um relicário em que todas as formas autênticas de beleza estão representadas, desde os mais remotos vestígios da Realeza romana, até as mais recentes criações da arte cristã nos paí-ses onde o esforço missionário vai fazendo nascer a Fé. Não é pois por uma in-compreensão de autênticas expressões de beleza surgidas quiçá em nossos dias, que vozes autorizadas como a do Emmo. Cardeal Celso Costantini se levantam contra delírios artísticos modernos de alucinado paganismo. É contra expressões "artísticas" que chocam o bom senso e a arte, e servem de adequada expressão ao neomaniqueísmo de hoje, que se voltam as palavras profundas e ardentes de zelo, do artigo que começamos a publicar neste número.O Emmo. Revmo. Sr. Cardeal Celso Costantini publicou em fevereiro de 1954 sobre a arte moderna um artigo intitulado "Senhor, amei o decoro de tua Casa", que teve repercussão mundial nos meios artísticos e religiosos. Deveu-se esta repercussão antes de tudo à grande autoridade daquele Purpurado em assuntos artísticos, especialmente no que concerne à arte sacra. Outrossim, o artigo era dos mais importantes por seu grande equilíbrio, sua alta lucidez, e a flagrante oportunidade do tema abordado Por fim, era veiculado por uma revista de grande prestigio, "Fede e Arte", editada pela Pontifícia Comissão Central para a Arte Sacra na Itália, e dirigida pelo Exmo. Revmo. Mons. Giovanni Costantini, Arcebispo titular de Colosse e Presidente da mesma Comissão. A sede desse organismo está no Palácio da Chancelaria Apostólica, e a revista é impressa na Tipográfica Poliglota Vaticana.

O ilustre Príncipe da Igreja escrevera anteriormente uma série de comentários referentes à Instrução do Santo Ofício sobre arte sacra, de 30 de junho de 1952 ( reproduzida em CATOLICISMO, nº 21, setembro de 1952 ), que chamaram a atenção dos teólogos e dos especialistas e foram divulgados pela imprensa de quase todos os países. CATOLICISMO estampou dois desses artigos em seus nos. 22 e 23, de outubro e novembro daquele ano

Parece-nos entretanto ainda muito maior a repercussão que está tendo o artigo que Sua Eminência publicou na mesma revista "Fede e Arte" em maio pp.. Trata-se de um grande e riquíssimo trabalho, que vem ilustrado por farta documentação, e ocupa as 31 paginas do fascículo. Gostaríamos de o reproduzir na íntegra. Mas como a natureza e o porte material de nossa folha não o permitem, desejamos pelo menos proporcionar a nossos leitores, não só uma visão de conjunto desse monumental trabalho, como também o conhecimento dos seus trechos mais oportunos para o Brasil.

"A nova heresia iconográfica"

A revista "Fede e Arte" condensou nos seguintes termos o artigo, cujo titulo é "A nova heresia iconográfica":

"O Emmo. Autor trata da heresia iconográfica, documentando-a com a reprodução, ao menos parcial e sumaria, dos horrores iconográficos de uma certa e assim chamada arte modernista, que quereria se impor a todo preço, a despeito da atitude categórica que o Magistério da Igreja sempre teve a este respeito. Nada se deve encontrar no templo - escreveu S. Pio X no motu próprio "Tra le sollecitudine", de 23 de novembro de 1903 - que perturbe ou diminua a piedade e devoção dos fiéis, nada que constitua motivo razoável de enfado ou escândalo nada sobretudo que seja indigno da casa de oração e da majestade de Deus.

"Ora, alguns artistas, em lugar de se elevar até Deus, fonte do bem e da beleza, para dessa altura projetar um facho luminoso de formosura e virtude sobre as criaturas, depravam a natureza, e particularmente a figura humana, tornando-a vil e odiosa: pior ainda, esses novos maniqueus atiram a lama de sua heresia satânica sobre as imagens adoráveis de Cristo, da Virgem e dos Santos. Diversos artistas agem provavelmente sem um conhecimento consciente da heresia maniquéia, mas de fato eles são atenazados dentro de suas espirais. É pois necessário, insiste ainda o Príncipe da Igreja, que seja derrotada a tese da feiúra, que se respeite a iconografia litúrgica, que a função e o caráter da arte sacra sejam por toda a parte conhecidos e acatados, que se evitem escândalos nessa matéria obviando-se a influência exercida sobre os artistas por certa crítica movida por intuitos blasfemos ou comerciais.

"Uma analise precisa das causas desta epidemia leprosa da arte moderna é apresentada no artigo com provas documentais irrecusáveis , e os artistas são convidados a não se servirem de uma linguagem ridiculamente arcaica, infantil, ou bárbara; pode-se com efeito ser filho de seu tempo utilizando uma linguagem viva, fresca, correta, e sobretudo compreensível. Só assim a tempestade que transtornou e submergiu os princípios da arte poderá passar, e a Igreja, herdeira de cultura universal, não cessará de apreciar a verdadeira arte, auxiliando os artistas e orientando-os para a beleza e harmonia de Deus".

Um aspecto de importância capital

Antes de reproduzir alguns trechos mais palpitantes do artigo, devemos pôr em realce que seu egrégio Autor timbrou em excluir dele qualquer nota de hostilidade sistemática e indiscriminada contra toda a arte contemporânea.

Ao invés de ser contrário a tudo quanto é hodierno só por ser hodierno, o Emmo. Cardeal Costantini insiste na afirmação de que também hoje há autênticos artistas, e lamenta apenas que estejam na penumbra, enquanto a falsa arte está nos galarins da glória.

Mostra ele que a Igreja não tem preconceitos ou prevenções contra qualquer época. Pelo contrario, abre largamente os braços e o coração para receber o fruto do talento dos artistas católicos de todos os tempos, todos os povos, e todos os lugares. Para isto, põe Ela só uma condição: que sejam verdadeiramente católicos e verdadeiramente artistas. O que Ela não pode é aceitar e aprovar obras que não são católicas nem artísticas, como se fossem obras de arte católica, expressões genuínas do espírito cristão.

No ambiente brasileiro, não há o menor risco de que a opinião pública se deixe levar por uma hostilidade sistemática em relação ao que é moderno. Nosso mal está precisamente no extremo oposto. Somos movidos sempre pela tendência a adorar ingenuamente tudo quanto é moderno, só por ser moderno. Há muito mais de cem anos, este mal nos atacou. Dizem os historiadores que um dos fatores que precipitaram a queda de D. Pedro I foi a notícia de que os franceses acabavam de derrubar o Rei Carlos X. Se no foco da modernidade se derrubava um Rei, cumpria que aqui não ficassem atrás, e derrubássemos um Imperador. E de lá para cá nossas instituições políticas sociais, econômicas, nossas idéias, nossos gostos, nossos hábitos, tudo enfim, vem sofrendo a ação dessa verdadeira magia da modernidade. Poder-se-ia quase afirmar que pelo menos de 1822 para cá, no Brasil não se operou uma só transformação boa ou má, que não fosse inspirada em certa medida pelo grande argumento: "é preciso mudar, porque assim fica mais moderno". E por isto um povo como o nosso, inteligente, dotado de um robusto senso do ridículo, apreciador de tudo que é harmônico, se vai afeiçoando gradualmente às manifestações brutais, cacofônicas, teratológicas, de uma suposta arte moderna.

Cremos ser, portanto, da maior oportunidade abrir os olhos de nosso povo para o verdadeiro sentido das obras dessa assim chamada arte.

Passamos pois a traduzir alguns trechos do artigo do Emmo. Sr. Cardeal Costantini.

Horresco referens

Começa sob esta epígrafe o artigo. Na parte introdutória seu Autor afirma:

"Dói-me deturpar as paginas serenas e límpidas desta revista, reproduzindo, pelo menos parcial e sumariamente, os horrores iconográficos de uma suposta arte modernista. Mas é necessário documentar aspectos desta recentíssima heresia iconográfica, para que não se diga que falo quasi aerem verberans ( I Cor. 9, 26 ). Tratei do assunto no fascículo II de Fede e Arte de fevereiro de 1954, sob o título Senhor, amei o decoro de tua Casa. Mas a deformação das sagradas imagens continua a crescer em furor, do mesmo modo por que recalcitraram obstinadamente as antigas heresias.

"É por isto que parece necessário e até mesmo urgente empunhar o açoite com que Jesus Cristo Nosso Senhor expulsou os profanadores do Templo".

Negação da divindade de Cristo

O artigo qualifica assim a "novíssima heresia":

"A heresia, considerada somente sob o aspecto objetivo ( o aspecto subjetivo pertence à moral ), é definida da seguinte maneira: Uma doutrina que contraria diretamente uma verdade revelada por Deus e como tal proposta pela Igreja aos fieis. Nesta definição se revelam duas notas essenciais da heresia: a) a oposição a uma verdade revelada: b) a oposição à definição do Magistério Eclesiástico ( Parente, Piolanti, Garofalo: Dizionario di Teologia Dommatica, Studium, pag. 86 ).

"O atentado de Leão, o Isaurico e de outros Imperadores bizantinos contra o culto das sagradas imagens foi chamado de heresia iconoclástica, que ficou famosa na Historia da Igreja.

"Hoje em dia não se nega, teoricamente, o culto das sagradas imagens, mas, sob certo aspecto, faz-se qualquer coisa de pior, isto é, degrada-se o culto, nega-se com a heresia figurativa a divindade de Cristo e de sua Igreja".

Comunismo, maçonaria e nova heresia

Sobre este importante aspecto da questão, o ilustre Purpurado se exprime nestes termos:

"Alguns Religiosos e muitos artistas estão por certo de boa fé, e convém elucidá-los, dissipando o fetichismo da modernidade. Mas alguns artistas, inscritos em partidos inimigos da Religião ou ateus, desenvolveram uma subtil e pérfida ofensiva contra a Religião, paralelamente à ofensiva que se conduz em certa imprensa, tornando desprezível e repugnante a iconografia sagrada e portanto o culto cristão. São conhecidas as caricaturas blásfemas difundidas na Rússia e na China.

"Bem sabemos que, segundo a teoria de Marx, Engels, Lenine, etc., a religião é uma superstição anticientifica, é o ópio dos povos, e como tal deve ser combatida por todos os meios a fim de se instaurar a ditadura do povo. Para estes corifeus do materialismo também a arte está ligada à luta de classes, e nela deve tomar parte contra a assim chamada arte burguesa, especialmente contra a arte religiosa. Parece que arte comunista se afirma onde começa o esfacelamento da arte burguesa e especialmente o esfacelamento da arte cristã.

"O escultor P. Canonica me disse: Deus deu aos artistas o dom de compreender e reproduzir a beleza. Agora, pelo contrário, deturpa-se a beleza criada por Deus. Estamos na presença do anti-Cristo, que arrasta tantos artistas, conscientemente ou não, levando-os a desonrar a arte da Igreja. Há também uma instigação da maçonaria. É necessário reagir incansavelmente contra a obra do anti-Cristo, que entra nas igrejas, ocultando-se com os paramentos sagrados para enganar os fiéis. Não se trata somente de arte, mas da defesa da Religião, e isto diz respeito a vós, Sacerdotes.

"Sim, temos o direito e o dever de reagir, apoiando-nos sobre o Magistério da Igreja. E queiram perdoar-me se insisto sobre alguns princípios e documentos citados no artigo de Fede e Arte de fevereiro de 1954".

A nova heresia e o maniqueísmo

O Emmo. Autor põe em relevo que as aberrações da arte moderna ressuscitam o maniqueísmo:

"Volta-se, em arte, também para a heresia do maniqueísmo, que se manifestou no século II depois d Jesus Cristo, e floresceu na seita dos cátaros do século XII. Sabe-se que o maniqueísmo pregava o dualismo entre a matéria e o espírito, entre a luz e as trevas, entre o bem e o mal, entre Deus e Satanás.

"Ora alguns artistas, ao contrário de remontar a Deus, fonte do bem e da beleza, para dele fazer refletir um raio sobre as criaturas, depravam a natureza, e especialmente a figura humana, tornando-a abjeta e odiosa; pior ainda, estes novos maniqueus lançam a lama de sua heresia satânica sobre as adoráveis imagens de Cristo, da Virgem e dos Santos.

"Muitos artistas agem provavelmente sem um conhecimento consciente da heresia maniqueísta. Mas, praticamente, são atenazados nas espirais desta heresia. O que os maniqueus pregavam com palavras e escritos, estes tardios epígonos o fazem com um horrível catecismo figurativo. Quae autem conventio Christi ad Belial? ( II Cor. 6, 14 ). Certas máscaras diabólicas fazem lembrar o que escrevia Minucio Felix cerca de um século depois de Cristo: Os espíritos impuros, os demônios se escondem por detrás das imagens consagradas e por suas emanações produzem a impressão de que uma divindade maléfica está presente ( Octavius XVII ).

"Caros artistas, é tempo de cair em si. Os Religiosos, que conhecem bem a teologia e o maniqueísmo, estejam de sobreaviso contra o pulular de uma heresia condenada pela Igreja e especialmente por Inocêncio III. Se a ignorância pode desculpar muitos artistas, dificilmente se pode desculpar os Religiosos que são patrocinadores do renascimento do maniqueísmo na arte. Na profissão de fé se lê: Firmiter assero imagines Christi ac Dei parae semper Virginis aliorumque Sanctorum habendas et retinendas esse atque eis debitum honorem ac venerationem impertiendam".

A autoridade da Igreja

O artigo baseia-se, em seguida, em decisões do Concílio de Trento, na Instrução de Urbano VIII, em dispositivos do Código de Direito Canônico, em textos de S. Pio X, do Papa Pio XI, e de Pio XII, gloriosamente reinante, e na instrução do Santo Ofício de 30 de junho de 1952, para afirmar o direito que tem a Igreja de Se pronunciar sobre este assunto. E conclui:

"Cumpria chamar novamente a atenção para essas claras e severas advertências, porque, também da parte de Religiosos e de artistas cristãos, tenta-se ignorar, deformar ou diminuir o valor do Magistério Eclesiástico. De resto, nil sub sole novi: a atual heresia iconográfica tem remotíssimos precedentes, que põem em evidência o pensamento linear da Igreja e as suas vitórias decisivas. É o que veremos no capítulo seguinte".

As antigas heresias Iconográficas

Passa então o eminente Articulista a lembrar as antigas heresias iconográficas registradas pela História eclesiástica. Depois de se referir a hesitações ocorridas entre certos fiéis na Igreja primitiva sobre o culto das imagens, menciona ele a heresia dos monofisitas, contrária à representação de Nosso Senhor Jesus Cristo. Refere-se ainda às caricaturas anti-cristãs do primeiro século. E mostra como por fim a Igreja fez triunfar o culto das imagens sagradas.

Em seguida, o artigo dá interessantes notas históricas sobre a iconografia de Nosso Senhor Jesus Cristo, e passa a historiar a heresia iconográfica dos Imperadores de Bizâncio, e a heresia iconográfica dos protestantes.

Ofício e características da arte sacra

Sobre o "ofício e características da arte sacra" o Cardeal Costantini cita um trecho da alocução do Santo Padre Pio XII, de 8 de abril de 1952, aos artistas da Quadrienal Romana, tão profundo, tão rico, tão elucidativo que não nos furtamos ao gosto de, por nossa vez, o transcrevermos aqui:

"Quanto Nos seja grata a vossa presença, vo-lo ensina a própria tradição do Pontificado Romano, que, herdeiro de cultura universal, nunca deixou de prezar a arte, de circundar-se de suas obras, de torná-la colaboradora, nos devidos limites, de sua divina missão, conservando-lhe e elevando-lhe o destino, que é conduzir o espírito a Deus.

"E vós, de vossa parte, já ao transpor o limiar desta casa do Pai comum vos sentistes em vosso mundo, reconhecendo-vos a vós mesmos e a vossos ideais nas obras primas aqui reunidas através dos séculos. Nada portanto falta para tornar reciprocamente grato este encontro entre o Sucessor, se bem que indigno, dos Pontífices que refulgiram como mecenas muníficos da arte, e vós, continuadores da tradição artística italiana.

"Não é necessário explicarmos a vós - que o sentis em vós mesmos, muitas vezes como um nobre tormento – uma das características essenciais da arte, a qual consiste numa certa intrínseca afinidade da arte com a Religião, que faz com que os artistas sejam de algum modo intérpretes das infinitas perfeições de Deus, e particularmente de sua beleza e harmonia. A função de toda arte consiste de fato em romper o âmbito [augusto] e estreito do finito, no qual o homem está imerso enquanto vive nesta terra, e abrir como que uma janela a seu espírito avidamente voltado para o infinito.

"Daí decorre que qualquer esforço - vão, na realidade - que vise negar e suprimir qualquer relação entre Religião e arte, resultaria em menosprezo da própria arte; pois qualquer beleza artística que se queira colher no mundo, na natureza, no homem, para exprimi-la em sons, em cores, em jogo de massas, não pode prescindir de Deus, dado que tudo quanto existe está ligado a Ele com relações essenciais. Não se encontra pois, na vida, como na arte - entenda-se arte no sentido de expressão do sujeito, ou no sentido de interpretação do objeto - o exclusivamente humano, o exclusivamente natural ou imanente. Quanto maior for a clareza da arte no espelhar o infinito, o divino, tanto maior será para ela a probabilidade de feliz êxito no alçar-se ao ideal e à verdade artística.

"Por isso, quanto mais o artista vive a Religião, tanto melhor se prepara para falar a linguagem da arte, entender-lhe as harmonias, bem como comunicar-lhe os frêmitos.

"Naturalmente, estamos bem longe de pensar que, para ser intérprete de Deus no sentido ora exposto, se devam tratar explicitamente assuntos religiosos; de outro lado, não se pode contestar o fato de que talvez em nenhum campo a arte atingiu tão altos fastígios quanto neste.

"Dessa maneira, os sumos mestres da arte sacra se tornaram intérpretes não só da beleza mas também da bondade de Deus Revelador e Redentor. Maravilhosa permuta de serviços entre o Cristianismo e arte. Da fé, os artistas obtiveram as sublimes inspirações; à fé atraíram eles as almas, enquanto, durante séculos, comunicaram e difundiram as verdades contidas nos Livros Santos, verdades inacessíveis, pelo menos diretamente, ao povo humilde. Com muita razão deu-se o nome de Bíblia do povo a obras primas artísticas, como, para citar conhecidos exemplos, os vitrais de Chartres, a porta de Ghiberti ( com feliz expressão chamada porta do Paraíso ), os mosaicos de Roma e de Ravena, a fachada da Catedral de Orvieto. Obras primas, estas e outras, que não somente traduzem em caracteres de fácil leitura e com linguagem universal verdades cristãs, mas comunicam o sentido íntimo e a comoção dessas verdades, com uma eficácia, um lirismo, um ardor, que talvez não possua a mais fervida pregação. Ora, as almas tornadas mais delicadas, elevadas, preparadas para a arte, ficam por isso mais dispostas para acolher a realidade religiosa e a graça de Jesus Cristo. Eis pois um dos motivos pelos quais os sumos Pontífices, e em geral a Igreja, honram e horaram a arte, e oferecem as suas obras como homenagem das criaturas humanas à Majestade de Deus nos seus templos, que foram sempre ao mesmo tempo lugares de arte e de Religião.

"Coroai, diletos filhos, vossos ideais de arte, com os ideais religiosos, que os revigoram e completam. O artista é de per si um privilegiado entre os homens, mas o artista cristão é, em certo sentido, um eleito porque é próprio dos Eleitos contemplar, gozar e exprimir as perfeições de Deus. Procurai Deus neste mundo, na natureza e no homem, mas antes de tudo em vós; não tenteis em vão representar o humano sem o divino, nem a natureza sem o Criador; harmonizai, pelo contrário, o finito com o infinito, o temporal com o eterno, o homem com Deus, e dareis assim a verdade da arte, a verdadeira arte. Ainda que sem vo-lo propordes expressamente como objetivo, aplicai-vos em educar as almas – tão facilmente inclináveis ao materialismo – para a delicadeza e o gosto espiritual. Aproximai-vos uns dos outros, vós a quem foi dado falar uma linguagem que todos os povos podem compreender. Seja esta a missão a que tenda a vocação artística, da qual sois devedores a Deus; missão tão nobre e digna que basta por si só para dar à vossa vida quotidiana, muitas vezes áspera e árdua, plenitude e confiante coragem."

Toda arte tem um sentido religioso

O artigo completa esta citação com um trecho de igual elevação, contido no discurso pronunciado pelo Santo Padre Pio XII a 20 de abril p.p., quando da inauguração da exposição do Beato Angélico no Vaticano.

"É verdade que para que a arte seja arte, não se exige uma explícita missão ética ou religiosa. Como linguagem estética do espírito humano, a arte, se o espelha em sua verdade total, ou pelo menos não o deforma positivamente, já é de per si sacra e religiosa, enquanto intérprete de uma obra de Deus; mas se também o conteúdo e a finalidade forem aqueles que o Angélico escolheu para a sua própria arte, então assumirá a dignidade de quase ministro de Deus, refletindo-Lhe um maior número de perfeições. Essa excelsa possibilidade da arte, quereríamos aqui comentá-la diante da plêiade, por Nós tão amada, dos artistas. Pois se a linguagem artística, ao contrário, se adequasse com suas palavras e cadências a espíritos falsos, vazios e turvos, isto é, opostos ao desígnio do Criador; se, em vez de elevar a mente e o coração a nobres sentimentos, excitasse as mais vulgares paixões, talvez encontrasse junto de alguns ressonância e acolhida, ainda que em virtude somente da novidade, que nem sempre é um valor, e da exígua parte de realidade que toda linguagem contém; mas tal arte degradar-se-ia a si mesma, renegando o seu aspecto primordial e essencial, não seria universal e perene como o espírito humano, ao qual se dirige.

"No tributar portanto Nossa homenagem ao sumo artista, e ao convidar os Nossos diletos filhos a acolher, como foi disposto pela Providência, a mensagem religiosa e humana da Fra Giovanni da Fiesole, Nosso pensamento não consegue afastar-se da ansiosa consideração do mundo presente em que vivemos, tão diferente daquele descrito nestas admiráveis telas, onde se encontram, seladas com arte delicadíssima, as mais altas e mais verdadeira aspirações do homem.

"Façamos, pois, votos ardentes de que o sopro da bondade cristã, da serenidade e harmonia de vida, que evola da obra do Angélico, penetre no coração de todos."

Arte católica por artistas não católicos

É possível que artistas acatólicos engendrem urna arte católica? O problema tem sido muito discutido. Sobre ele se exprime nestes termos o ilustre Príncipe da Igreja:

"Animalis homo — disse São Paulo — non percipit ea quae sunt spiritus ( I Cor. 15, 44 ). Por isso, não se pode ler sem grande dor quanto L. Montano escreve no Corriere d’informazione ( aliás Corriere della Sera ) de 21-22 de fevereiro de 1955: A mais célebre igreja moderna foi feita por um homem que não acreditava em Deus.

"Frei Couturier, um Dominicano morto, ele também, no ano passado e que lutou com fervor contra a decadência da arte religiosa, sustentava que onde a tradição é ainda viva, para as necessidades da Igreja podem bastar artistas menores; onde pelo contrário ela está morta, mais vale, para ressuscitá-la, confiar em um gênio sem fé do que na mediocridade com fé. Diz-se que foi este Padre que encorajou Matisse a fazer a capela do Rosário: esta é a tradução, em ato, daquela sua proposição...

"Com efeito, Matisse absolutamente não era crente, e fazia questão de demonstrar que sua oferta não indicava qualquer mudança em suas convicções, que ele conservou até o fim. Não compareceu nem à inauguração, nem à sagração daquela sua obra.

"Quero esperar que a luz da verdade tenha iluminado no último momento a mente do pintor, e que sua alma se tenha voltado para a infinita misericórdia de Deus. Mas, depois, faço todas as reservas sobre a célebre capela e sobre o espírito do pintor, do qual falarei mais extensamente no capítulo seguinte.

"Não nego que também incrédulos possam compreender o fascínio da idéia religiosa; mas permanecerão sempre intérpretes simplesmente técnicos e externos, sem aquele acento, sem aquele fogo que só o sentimento e a sinceridade podem dar. Assemelham-se àquele que ouve a melodia de um canto, mas não entende suas palavras.

"A arte cristã é antes de tudo arte de pensamento; os incrédulos podem possuir admiravelmente o métier, mas são constitucionalmente incapazes de exprimir com sinceridade o pensamento da Igreja. Não basta conhecer o vocabulário para escrever uma pagina eloqüente: é necessário o pensamento e aquela vis íntima que acende a eloqüência.

"Ocorre também por vezes, em matéria de arte, o fato estranho do adivinho pagão Balaão, chamado pelo Rei de Moab para amaldiçoar Israel, e que pelo contrário por três vezes foi obrigado a abençoá-lo.

"Na história de Balaão, a Bíblia conta também de uma jumenta que falou ( Num. 22, 23 )."

Purificar de influências comerciais a arte sacra

Continua o egrégio Autor:

"Estou de acordo com o Pe. Regamey e com L. Venturi sobre alguns princípios gerais — não sobre todos. Deseja-se o ressurgimento da arte sacra e a depuração das igrejas de toda quinquilharia industrial, e um mais consciente e cordial entendimento e colaboração entre artistas e Clero. Muito bem, todos o desejamos. Mas seja-me permitido recordar que, em fins de 1913 fundei a revista Arte Cristiana ( que hoje é publicada pela Escola Beato Angélico de Milão ) e a Sociedade dos Amigas da Arte Cristã precisamente para realçar o decoro da arte e do culto e para pôr em melhor contacto o Clero e os artistas, bem como para estabelecer uma melhor comunhão entre o Pároco e os fiéis. Mas, agora, considero não as boas intenções e os propósitos louváveis, mas as tentativas hodiernas, as novas experiências da arte sacra, que não podem de modo nenhum convencer-me, porque faltam absolutamente ao próprio fim.

"Este altíssimo fim foi consagrado por uma história quase bimilenar e foi admiravelmente bem definido nos citados discursos do Santo Padre Pio XII.

"H. Leclerq, referindo-se aos primeiros séculos, escreve: Se, no curso de três séculos de luta, de misérias e de perseguições, o Cristianismo teve tanto cuidado de embelezar e decorar as abóbadas sepulcrais, isto prova que está na sua essência ter em conta a beleza; demonstra que entre Cristianismo e arte a aliança é, não só legítima, mas natural, íntima, quase necessária" ( H. Leclerq, Dict. d’Arch. Chr. et de Liturgie: Images ).

"Causa alegria também, recordar que Urbano VIII no ano de 1642, depois do Concílio de Trento, escreveu a conhecida carta sobre os fins da arte sagrada: O que é apresentado aos fiéis não deve aparecer desordenado e singular, mas deve contribuir para reavivar a devoção e a piedade: quae oculis fidelium subiiciuntur non inordinata, nec insolita appareant, sed devotionem pariant et pietatem".

Um Cristo com rosto de gorila

Conclui assim o Emmo. Cardeal:

"A arte e especialmente a arte sacra deve refletir a luz de Deus, não as trevas do demônio, um raio de beleza que Deus, speciei generator ( Sap. 13, 3 ), difundiu no universo e especialmente no homem, feito à sua imagem ( imaginem Dei circunferimus, disse São Clemente de Alexandria ) — não os sacrílegos atentados daqueles que mutaverunt gloriam incorruptibilis Dei, in similitudinem imaginis corruptibilis homnis, et volucrum, et serpentium ( Rom. 1, 23 ).

"Escreve-me um senhor, indignado por ter visto, em uma exposição de arte sacra moderna, um Cristo representado com uma cabeça de gorila...

"De resto, parece que o próprio Pe. Regamey, na prática, se manteve fiel à boa tradição. Com efeito, seu belo livro Les plus beaux textes sur la Vierge Marie é ilustrado com reproduções de obras de nossos grandes mestres".

A arquitetura religiosa

Depois de assinalar que ultimamente a arquitetura profana tem tido, em seus elementos fundamentais, e considerada cum grano salis, uma evolução favorável, mostra o artigo que as exigências da arquitetura religiosa são maiores:

"Mas para a arquitetura eclesiástica ocorre qualquer coisa a mais do que a funcionalidade edonistica da vida. O templo é a misteriosa morada de Deus, o refúgio das almas; a estrutura arquitetônica, a luz e as sombras devem, como nas catedrais antigas, envolver o fiel na sugestão do mistério, que o eleva até Deus: ascensiones in corde suo disposuit ( Ps. 83, 6 ).

"A igreja não é uma máquina para rezar, como pensa Le Corbusier. É uma ponte lançada entre o finito e o infinito; é a nave mística que embarca os homens nas orlas do tempo para conduzi-los ao desembarcadouro da eternidade.

"Não aceitamos para as igrejas o efeito da série das casas modernas, nem o nudismo das salas protestantes. Tudo é vivo e funcional na igreja, o drama litúrgico, a oratória, o canto, a arte figurativa e também o decoro ornamental.

"A Instrução do Santo Ofício sobre a Arte Sacra diz claramente: A arquitetura sacra, ainda quando assume novas formas, deve preencher sempre o seu fim, que consiste em construir a casa de Deus, casa de oração, que jamais pode ser assimilada a um edifício profano.

Atente pois, sem embargo, à comodidade dos fiéis, tornando-lhes fácil seguir, com a mente e os olhos, o desenvolvimento das cerimônias sagradas; considere também a elegância das linhas, mas não despreze a simplicidade para deleitar-se em artifícios vazios, e sobretudo evite com empenho tudo quanto possa manifestar negligência na obra de arte".

Com vistas ao Brasil

Em seguida, Sua Eminência faz um a referência oportuna, a nosso país:

"Há infelizmente engenheiros e arquitetos que ignoram ostensivamente a Instrução do Santo Ofício, inserindo e desenvolvendo nos esquemas arquitetônicos das igrejas as mais arbitrárias extravagâncias de construção, de maneira que ditas igrejas podem parecer pavilhões de feiras de amostras, abrigos de praia de banho ou qualquer outro edifício, exceto igreja.

"Recebo agora o nº 33 da revista Arquitetura e Engenharia do Brasil, com extravagantes projetos para diversas igrejas. Um arquiteto indignado escreve-me: Desde que um baixo materialismo invadiu o campo da arte neste país, especialmente nos setores da arquitetura, estou travando uma batalha sem tréguas contra esta manifestação existencialista nas artes plásticas, chamada "arte moderna", a qual por meio de uma poderosa organização de caráter internacional, está prejudicando enormemente a formação artística da juventude de todo o mundo".

O direito da Hierarquia

O artigo termina logo depois [d]essas considerações gerais sobre a arte sacra com as seguintes palavras:

"Oportunamente a Instrução do Santo Ofício recorda que, de conformidade com o cânon 1162 do Código Canônico, não se pode erigir uma igreja sem a permissão por escrito do Ordinário. A Instrução é precisamente dirigida aos Bispos, os quais têm o direito e o dever de fazer valer o próprio juízo também sobre as igrejas confiadas aos Religiosos, quando abertas ao público".

Concluiremos no próximo número esta visão de conjunto do importantíssimo trabalho elaborado por Sua Eminência o Cardeal Celso Constantini.