A situação da Igreja, como a via com providencial lucidez S. Luiz Maria Grignion de Montfort, se caracterizava por dois traços essenciais, que ele nos descreve, em sua oração pedindo Missionários, com palavras de fogo [1]. * * * De um lado, é o inimigo que avança perigosamente, é a investida vitoriosa da impiedade e da imoralidade:
Capitães, potentados, navegadores, mercadores, isto é, os homens-chave de seu século, movidos todos pela impiedade, pela ganância, pela sede de honrarias, depravados por vícios graves, constituem com as massas que os seguem - salvas as exceções, bem entendido - uma multidão de ébrios, bandidos e réprobos que pelas vastidões das terras e dos mares se unem para combater a Igreja! Eis o que se pode chamar clareza de conceitos e de linguagem, coragem de alma, coerência imaculada no classificar os fatos! Como este Santo há de parecer descaridoso, imprudente, precipitado em seus juízos, ao homem moderno, que teme a lógica, se choca com as verdades radicais e fortes, e só admite uma linguagem edulcorada e feita de meias tintas! * * * De outro lado, ou seja, entre os que ainda são filhos da luz, S. Luiz Maria vê campear a inércia. Este fato o aflige:
S. Luiz Maria quer tantos ou mais numerosos paladinos do lado de Deus, quanto os há do lado do demônio. Ele os quer fiéis, puros, fortes, intrépidos, combativos, temíveis, como o Príncipe da Milícia celeste. Não se limita a dizer que devem ser como S. Miguel. Ele quer que sejam como que versões humanas do Arcanjo: "quase nenhum S. Miguel clamará no meio de seus irmãos...?" Quanto esta aspiração de ver o mundo cheio de apóstolos brandindo espadas de fogo diverge da curteza de vistas, da frieza, do sentimentalismo dulçuroso e incongruente de tanto católico hodierno, para o qual fazer apostolado é fechar os olhos para os defeitos do adversário, abrir diante dele as barreiras, entregar-lhe as armas de guerra, aceitar seu jugo e, consumada a capitulação, afirmar que há todas as razões para se estar contente, pois poderiam as coisas ter corrido ainda pior. Enquanto esses apóstolos de fogo não vêm, corre o risco de graves revezes a Santa Igreja. Não o viam tantos tíbios e indolentes. Viu-o porém S. Luiz Maria, que a todos conclama à luta:
É a devastação na Igreja e nas almas, o fogo que consome as instituições, as leis, os costumes católicos, e a impiedade que degola as almas e apunhala o Sumo Pontífice. * * * Legiões inteiras de almas fora e dentro do santuário (S. Luiz Maria claramente o deixa ver) cruzavam os braços, cuidando de seu pequeno microcosmo, sem se preocupar com a Igreja e seus grandes problemas. Estavam imersas em sua pequena existência de todos os dias, seus pequenos confortos, suas pequenas economias, suas pequenas vaidades, ao par de suas pequenas devoções, suas pequenas caridades, seus pequenos apostolados, no centro do que estava muitas vezes tão somente sua pequena pessoa. S. Luiz Maria, pelo contrário, era uma alma imensa. Posto numa situação obscura, dedicava-se inteiro a salvar o próximo nos ambientes miúdos em que vivia. Mas seu zelo não tinha fronteiras nem limites, e abrangia toda a Igreja. Ele vivia, palpitava, se rejubilava ou sofria, em função da causa católica inteira, na acepção mais ampla do vocábulo. E por isto, dirigia a Deus uma súplica admirável: se fosse para presenciar um triunfo incessante da iniqüidade, sem que aparecesse uma reação à altura, melhor seria para ele que Deus o levasse:
Parece-lhe impossível que Deus não suste a marcha da iniqüidade:
Não, a intervenção de Deus não faltará. Prenunciara-a Ele a almas eleitas, às quais deixou contemplar a visão de uma era futura que seria o Reino de Maria:
E no anseio desta "reposição de todas as coisas" ele implora a Deus que venha o dia em que "haja um só aprisco e um só Pastor, e que todos Vos rendam glória em vosso santo templo". Aí estão delineados os elementos do futuro Reino de Maria. Será resultante da conversão de todos os infiéis, do ingresso de todos os povos no aprisco da Igreja, e da "reposição de todas as coisas", isto é, da restauração em Cristo de toda a vida intelectual, artística, política, social e econômica que o Poder das Trevas subverteu. É a reconstrução da civilização cristã. Como se vê, trata-se de acontecimentos futuros. Caminhamos para eles. Cumpre apressar por nossas orações, nossas penitencias, nossas boas obras, nosso apostolado, este dia mil vezes feliz, em que haverá um só rebanho e um só Pastor.
Já fizemos ver ( CATOLICISMO, nº 53, maio de 1955: "Doutor, Profeta e Apóstolo na Crise Contemporânea" ) que nossos dias se inserem no longo processus histórico iniciado entre 1450 e 1550 com o humanismo, a renascença e o protestantismo, acentuado fundamente com o enciclopedismo e a Revolução Francesa, e por fim triunfante nos séculos XIX e XX com a transformação dos povos cristãos em massas mecanizadas, amorfas, largamente trabalhadas pelos fermentos da imoralidade, do igualitarismo, do indiferentismo religioso, ou do ceticismo total. Do liberalismo já passaram para o socialismo, e deste estão em vias de descambar para o comunismo. Esta marcha ascensional dos falsos ideais leigos ( de fundo panteísta, cumpre notar ) e igualitários é o grande acontecimento que domina nossa era histórica. No dia em que tal marcha começasse a regredir, de um retrocesso, não pequeno e ocasional, mas contínuo e possante, outra fase da História teria começado. Em outros termos, a descristianização é o signo sob o qual estão colocados todos os fatos dominantes ocorridos no Ocidente, do século XV a nossos dias. É o que une entre si estes quinhentos anos, e deles faz um bloco no grande conjunto que é a Historia. Cessada a descristianização por um movimento inverso, teremos passado de um conjunto de séculos para outro. Era precisamente um fato desta amplitude, um corte no processus descristianizante e um surto da Religião sem precedentes, que S. Luiz Maria implorava, esperava e, disto estamos certos, obteve. . E o Santo pede esse dilúvio:
O meio para se chegar a este triunfo será uma congregação toda consagrada, unida e vivificada por Maria Santíssima. O que seja propriamente essa congregação, na mente do Santo, não se pode afirmar com certeza absoluta. Em certo sentido, parece uma família religiosa. Mas há também aspectos por onde se poderia pensar diversamente. De qualquer forma, essa congregação será o instrumento humano para implantar o Reinado de Maria. E, como tal, as vistas da Providência repousam amorosamente sobre ela desde toda a eternidade:
No momento entre todos trágico e feliz em que se consumou nossa Redenção, Deus "a escondia em seu coração", e seu Divino Filho "morrendo na cruz a consagrou por sua morte, e a entregou qual precioso depósito, à solicitude de sua Mãe Santíssima". Essa misteriosa congregação, que será uma "assembléia, seleção, escolha de predestinados feita no mundo e do mundo; rebanho de pacíficos cordeiros a serem reunidos entre os lobos; companhia de castas pombas e águias reais entre tantos corvos; enxame de laboriosas abelhas entre tantos zangões; manada de céleres veados entre tantos cágados; batalhão de leões destemidos entre tantas lebres tímidas", essa congregação só pode ser constituída por uma ação fecunda da graça nas almas dos que devem compô-la. Mas para Deus nada é impossível: "Oh grande Deus, que podeis fazer das pedras brutas outros tantos filhos de Abraão, dizei uma só palavra como Deus, e virão logo bons obreiros para a vossa seara, bons missionários para a vossa Igreja". Há séculos, os justos pedem a Deus a fundação desta congregação:
Como se sabe, Companhia significava no tempo de S. Luiz Maria regimento, ou batalhão. Foi neste espírito que Santo Inácio chamou Companhia de Jesus seu ínclito Instituto. S. Luiz Maria concebia a sua Companhia como essencialmente militante. Ela será como que um prolongamento de Nossa Senhora, em luta permanente e gigantesca com o demônio e seus sequazes:
Este tópico é dos mais importantes, de vez que mostra a modernidade da Companhia, de seu apostolado militante, de seu espírito profundamente - quase diríamos sumamente - marial. De fato, S, Luiz Maria vê essa Companhia destinada a "surgir perto do fim do mundo". E se, na linguagem dos adoradores da modernidade, cada século é mais moderno que os que o antecederam, não haverá séculos mais modernos - pelo menos no sentido cronológico da palavra - que os que estiverem "perto do fim". Que quer dizer este "perto"? Em linguagem profética, é discutível a precisão do termo. Será talvez a última fase da humanidade, isto é, o Reinado de Maria. Quanto durará esta fase? É outro problema, para cuja solução não encontramos elementos na Oração do Santo. Mas, de qualquer forma, estabelecida a "modernidade" absoluta desse apostolado, vejamos algumas das características que ele terá. Os que julgam anacrônicas essas características verão quanto se enganam.
Esses apóstolos dos últimos tempos serão "verdadeiros filhos de Maria Santíssima, engendrados e concebidos por sua caridade, trazidos em seu seio, presos a seu peito, nutridos de seu leite, educados por sua solicitude, sustentados por seus braços e enriquecidos por suas graças". E mais adiante afirma: "Por seu abandono à Providência e pela devoção a Maria Santíssima terão as asas prateadas da pomba, isto é, a pureza da doutrina e dos costumes; e douradas as costas, isto é, uma perfeita caridade para com o próximo, para suportar-lhe os defeitos, e um grande amor a Jesus Cristo para levar sua cruz".
Mas essa devoção marial e essa caridade se realizarão numa pugnacidade extrema, decorrência da própria devoção marial. Com efeito, serão eles "verdadeiros servos da Santíssima Virgem, que, como outros tantos São Domingos, vão por toda a parte com o facho lúcido e ardente do Santo Evangelho na boca, e na mão o Santo Rosário, a ladrar como cães fiéis, contra os lobos que só buscam estraçalhar o rebanho de Jesus Cristo; que vão, ardendo como fogos, e iluminando como sóis as trevas do mundo". Sua vitória consistirá, "por meio de uma verdadeira devoção a Maria Santíssima... em esmagar em todos os lugares em que estiverem, a cabeça da antiga serpente; para que a maldição que sobre ela lançastes seja inteiramente cumprida". E por isto S. Luiz Maria multiplica ao longo de sua Oração as metáforas e adjetivos alusivos à combatividade dos membros da sua congregação: "águias reais", "batalhão de leões destemidos", terão "a coragem do leão por sua santa cólera e seu ardente e prudente zelo contra os demônios e filhos de Babilônia". E é essa falange de leões que ele pede a Deus no tópico final de sua oração:
[1] Os primeiros artigos desta série foram publicados nos nos 53 e 55, de maio e julho de 1955. |