Catolicismo Nº 14 - Fevereiro de 1952
REFLEXÕES À MARGEM DA PASTORAL COLETIVA
A Pastoral Coletiva assinada pelos Cardeais, Arcebispos, Bispos e outros Ordinários, do Brasil, ficou sem dúvida alguma registrada nos fastos da História nacional. E isto a dois títulos distintos. De um lado, porque contém uma análise objetiva, franca, desassombrada, da atual situação do País, e, de outro lado, porque fixa a atitude da Igreja em face de grande número de problemas da atualidade. Não é, pois, de espantar que a leitura desse documento sugira várias reflexões, algumas da quais deixamos aqui consignadas.
A "Realidade Brasileira"
Em geral, os brasileiros são otimistas e indulgentes no descrever os seus próprios problemas. Vejo nisto muito mais um defeito, do que uma qualidade. Se temos propensão para ver as coisas em preto, sem contudo perder a coragem para a luta, o pior que nos pode suceder é perdermos tempo e recursos na defesa contra males hipotéticos. Se pelo contrário vemos tudo em róseo, nossos problemas ficam perpetuamente sem solução. Ambos os extremos, é claro, devem ser evitados com cuidado. Mas parece bem evidente que, dos dois, o mais funesto é o segundo.
Percorrendo a Pastoral, é-se forçado a reconhecer que nossos Bispos absolutamente não se deixaram arrastar pelo pessimismo. É notável o cuidado com que registram ao longo do documento todos os aspectos alentadores - e os há - do atual panorama brasileiro. Contudo, mais difícil ainda seria dizer-se que os cegou o otimismo. A Pastoral contém a análise lúcida, penetrante, franca, de todos os nossos males. E é inegável que, dentro do quadro por ela traçado, as cores sombrias mal deixam lugar para uma ou outra zona de luz.
O povo brasileiro não esperava outra atitude, de seus Bispos. Dia a dia, sentimos acentuar-se nossa derrocada moral. Os costumes se vão paganizando, as tradições de recato, dignidade, compostura, tão genuinamente brasileiras, se evaporam e se esvaem de minuto em minuto, a imoralidade invadiu a esfera dos negócios, da administração, do jornalismo, do esporte, do cinema e do rádio. De outro lado, nossa prosperidade material se vai esboroando. Rio e São Paulo crescem vertiginosamente, é verdade. Mas o carioca, o paulista, o fluminense, o gaúcho, o nordestino, vivem com dificuldades sempre maiores. Ainda recentemente, o ilustre leader trabalhista, Senador Alberto Pasqualini, pronunciou um discurso ( "Diário do Congresso Nacional", edições de 5 e 23 de outubro pp. ) em que, com franqueza rara em nossos homens públicos, pôs a nu a inanidade de certas aparências em sentido contrário. Assim o aumento aparente da renda nacional, e dos salários, ocorrido nas últimas décadas, parece indicar crescente prosperidade. Mas o Senador Pasqualini esclarece: "Pode a expressão monetária ou nominal da renda nacional aumentar consideravelmente, e, não obstante, diminuir o seu valor real, porque isso depende do poder aquisitivo ou valor do dinheiro. Sabem todos, por experiência própria, que, percebendo embora hoje salários ou ordenados maiores, logram conseguir adquirir menos do que podiam fazê-lo com salários ou ordenados menores em tempos passados. A renda expressa em cruzeiros cresceu, mas o poder aquisitivo do dinheiro baixou em proporção maior. Um funcionário, letra H, por exemplo, percebe hoje um salário nominal que é mais do dobro ( 2,35 ) do que percebia em 1936. O salário real, porém, isto é o seu poder aquisitivo corresponde à metade do salário de 1936. Isso significa que não obstante os aumentos sucessivos, esse salário, em conseqüência da desvalorização da moeda, sofreu uma redução de 50%. Em 1912, a renda monetária "per capita" no Brasil era estimada em 236 cruzeiros; em 1945 era de 1.343. Feita porém a "desinflação", isto é comparado o poder aquisitivo do dinheiro nos dois anos, a renda real "per capita" era em 1912 de 236 cruzeiros, e, em 1945, 207". E depois de mencionar outras estatísticas, o Senador Pasqualini conclui: "Isso significa que no Brasil a produtividade não acompanha o aumento demográfico da população, e que existe um acentuado desvio de atividades ou de ocupação para a improdutividade, o que é bastante grave para um país que está na fase inicial de seu desenvolvimento econômico. A inflação gera o aumento monetário ou nominal da renda nacional, mas somente uma maior quantidade de trabalho produtivo, ou o aumento de sua eficiência pelo aperfeiçoamento técnico é que pode determinar uma aumento de renda real". Esses os fatos.
Se verdadeiramente a missão dos Pastores consiste em estar ao lado das ovelhas nos dias difíceis mais ainda do que nos dias tranqüilos; se aos Pastores compete antes e acima de tudo a defesa das ovelhas, bem claro é que a missão de nossos Bispos não podia cifrar-se em dizer, nesta hora, algumas palavras de gentil otimismo. Daí o fato de ser a Pastoral Coletiva, em muitos de seus aspectos, um verdadeiro brado de alarme lançado à Nação. Cumpre assim a hierarquia o seu dever.
Entretanto, não basta que o cumpra a hierarquia. É preciso que, sob suas ordens, também o cumpram os fiéis. Para isto, antes de tudo, toca-nos abandonar o otimismo fácil, mole, inconsciente, em que tanto nos comprazemos. Toca-nos reconhecer que o momento é de extraordinária gravidade, e, pois, de pesadas responsabilidades para todos nós. Estas responsabilidades, devemos carregá-las com ânimo destemido e resoluto, com o inflexível propósito de cumprir sempre e por toda a parte o nosso dever.
Igreja e Ordem Temporal
Mas, dir-se-á, todos estes conceitos valem para a esfera espiritual, que pertence à Igreja, e não para a esfera temporal, que pertence ao Estado. Ora, não há dúvida de que, em muitos de seus tópicos, a Pastoral cogita, não de assuntos religiosos, mas de questões de interesse civil. E, pois, exorbita claramente do campo a que se deve restringir o magistério eclesiástico.
Esta é uma das críticas mais freqüentemente dirigidas contra a Pastoral. Procede ela de uma compreensão imperfeita do que seja verdadeiramente a esfera espiritual, e a posição da Igreja dentro da própria sociedade temporal.
Os Mandamentos, que correspondiam [a] todas as regras da moral, correspondem à própria ordem natural das coisas. Assim, o assassínio, o roubo, o adultério, a mentira são contrários à própria ordem natural.
A intérprete e guardiã dos Mandamentos, e da ordem natural, é a Igreja Católica. Pois tudo quanto diz respeito à salvação eterna dos homens se relaciona intimamente com a missão da Igreja. E o cumprimento dos Mandamentos é condição essencial para a salvação. É portanto parte inalienável da tarefa da Igreja ensinar aos homens e às nações aquilo que está de acordo com os Mandamentos, e o que os transgride. Se, pois, no terreno da vida civil, algo há que signifique a violação de um Mandamento, a Igreja tem não só o direito mas o dever de protestar. E isto qualquer que seja o campo em que tenha ocorrido a transgressão. A este título está, pois, o Episcopado em seu direito quando trata de reforma constitucional, regulamentação do jogo, organização sindical, carestia, reforma agrária, etc.
Mas há ainda outro título. Embora a Igreja não tenha de nenhum modo a missão de organizar a vida terrena com ordem ao bem estar temporal, jamais recusou seu concurso, nas horas graves da vida de cada povo, para o alívio de suas necessidades materiais. Reconhecendo a enorme influência de que dispõe o Brasil, a Igreja pode e deve oferecer-se, pois, para prestar à sociedade temporal o concurso que esta eventualmente deseje neste momento de excepcional gravidade, desde que com isto Ela não comprometa Sua própria missão espiritual. É esta aliás a tradição da Igreja, em todo o orbe, e marcadamente no Brasil, onde tem concorrido tão pronunciadamente para a grandeza do país. Assim, pois, nada há de mais explicável do que a atitude paternal do Episcopado, dispondo-se a colaborar com as autoridades civis para o bem estar temporal do Brasil.
Em um jornal destinado a público especificamente católico, é supérfluo aduzir argumentos para provar quanta razão têm nossos Bispos em questões como o divórcio, a decadência da moralidade pública, o problema das vocações, etc. Parece-nos contudo útil fazer algumas considerações sobre certos problemas sociais abordados pela Pastoral. Antes de tudo a carestia da vida.
Carestia da vida
Quando os historiadores, no século XXI ou XXII, estudarem a crise econômica do Brasil de nossos dias, ficarão por certo perplexos. Pois se de um lado as fontes históricas revelarão uma ascensão alarmante dos preços, uma decadência indiscutível da produção, um empobrecimento geral, nem os documentos públicos, nem os estudos feitos por particulares trazem solução clara e satisfatória para este problema que salta aos olhos, e que se poderia enunciar assim:
a - Somos um povo pouco numeroso em relação à imensa área habitável e plantável do território nacional.
b - A produção agrícola é a mais essencial para a subsistência de um povo. Se, pois, ele não pode importar do exterior gêneros alimentícios, deve produzi-los em sua própria casa. Do contrário, morre de fome.
c - Ora, não importamos suficientemente, nem plantamos suficientemente. E, por isto passamos fome.
d - E aqui vem o problema. Porque não importamos? Principalmente, principalissimamente, porque não plantamos?
Esta é a questão única essencial, fundamental. O mais, tabelamentos, leis de proteção à economia popular, alta de salários, combate à inflação, é perfeitamente secundário; pode servir para vencer um momento de apuro, mas não tem o dom de resolver a questão essencial que é sempre esta: o que temos em matéria de víveres não dá para matar nossa fome, e não é produzindo leis, mas produzindo víveres em abundância maior, que nossa fome há de ser saciada. Daí não se pode escapar.
Ora, impressiona que até este momento o problema não esteja resolvido com clareza satisfatória. As próprias explicações sobre as causas da atual situação são titubeantes. Culpam uns a falta de braços nos campos, provocada pela atração das cidades grandes. Sem dúvida, pelo menos em parte o mal deriva daí. Mas, perguntamos, qual o remédio mais direto? Indiscutivelmente, a imigração. E aqui encalhamos num verdadeiro banco de areia. Na Alemanha, na Itália, centenas de milhares de excelentes emigrantes procuram um país onde se estabelecer. Aqui padecemos fome por falta de braços para cultivar nossos campos. Porque então não atrair estes braços úteis, mais do que isto indispensáveis a nosso bem estar? Bizantinismos: tratados, negociações prolongadas, complexas, eriçadas de preconceitos de gabinete, retardam indefinidamente a solução do problema. Não comemos, porque não plantamos. Não plantamos porque há sete anos que terminou a guerra, e praticamente só recebemos pequenos magotes de imigrantes. Porque? Claramente, definidamente, ninguém sabe. Quanto durarão os obstáculos que retardam a normalização da imigração? Igualmente, ninguém sabe. Que planos, que providências, que esforços o Brasil está disposto a pôr em ação para superar estes obstáculos? Novamente nada.
De outro lado, fala-se em crise de transportes. Em vários lugares, os víveres apodrecem sem que seja possível levá-los até o consumidor dos grandes ou pequenos centros. Indiscutivelmente, em certa medida este fator concorre para a atual situação de fome e carestia. Mas até que ponto concorre? Que nos dizem a este respeito as estatísticas? Está realmente aí a causa primária do mal? Somos, por excelência, o país da iniciativa privada. Apelou-se para o concurso do particular, para minorar a crise? Tudo isto continua perfeitamente incógnito. As notícias são vagas, vaporosas, imprecisas, sobre um assunto de interesse vital, nesta época de inquéritos, estatísticas, etc.
Por fim, a imoralidade contribui poderosamente para agravar a situação. Di-lo a Pastoral: "Incrementar a produção e facilitar aos produtores meios eficientes de escoar o que produzirem será, indubitavelmente, o que a muitos ocorre como providência primordial, destinada a corrigir a causa mais próxima do encarecimento geral. Não basta, entretanto. Pois quantas vezes as frutas apodrecem nos armazéns não de procedência mas de término, onde os aguardam os ludibriados consumidores. É geral preferir-se qualquer perda momentânea para conservar a alta dos preços e se compensar fartamente, pouco depois, com dano da economia da coletividade. Isto não é comerciar, é tripudiar sobre a miséria alheia".
Como se vê, um caos, uma imensa desordem, aliás, lembra a Pastoral, "visceralmente relacionada com a mais profunda desordem na política econômica e financeira, que será mister remediar".
Reforma Agrária
Tratando do êxodo das populações rurais, diz a Pastoral: "que por todos os recantos do Brasil ressoe este grande pregão de alerta: não deixem os campos pelas cidades, para se não agravar duplamente este problema econômico-social, mas exijam para seus ambientes campesinos o fiel respeito, a seus inegáveis direitos! É mais que tempo de se reconhecer quão pouco se fez até o presente em favor dos agricultores, e de se reparar eficazmente o esquecimento e abandono em que tem ficado os trabalhadores de nosso interior".
Estes são os pensamentos que dominam o capítulo da reforma agrária. Intensificação da vida rural, sim, mas com o devido respeito aos direitos do agricultor, não só do proprietário como do trabalhador rural.
Recentemente, realizou-se no Rio de Janeiro, por iniciativa da "Tribuna da Imprensa", uma mesa redonda para tratar da questão agrária. A ela compareceu um dos mais conhecidos e ilustres signatários da Pastoral Coletiva, o Exmo. Revmo. Sr. D. Geraldo de Proença Sigaud, S.V.D., Bispo de Jacarezinho. Participando brilhantemente dos debates, mostrou o insigne Prelado que, por "reforma agrária", não se pode entender a modificação completa de todas as relações atualmente existentes entre o proprietário da terra e o trabalhador rural, como em certos círculos se pretende. Pois de um lado a propriedade privada é de direito natural e não pode ser abolida por qualquer reforma rural. De outro lado, há legítimos direitos adquiridos que a lei não pode, de um momento para outro e sumariamente suprimir. Todos os textos pontifícios citados pela Pastoral estão dentro deste espírito. É louvável cogitar da melhoria da situação dos trabalhadores rurais. Mas um fim louvável em si mesmo não justifica o emprego de meios ilegítimos.
A este princípio, a Pastoral acrescenta outro. É que não se pode aceitar sem maior exame as declamações furiosas dos demagogos comunistas contra os latifúndios. O latifúndio não é um mal em si. "Não queremos negar a utilidade e, muitas vezes, a necessidade de empresas agrícolas mais vastas", afirmou Pio XII. Aliás, o próprio conceito de latifúndio varia. Assim, uma propriedade rural que seria grande na Bélgica, pode ser minúscula no Brasil. E mesmo uma propriedade que seria grande nos arredores do Rio de Janeiro poderia ser insignificante em Mato Grosso. Iso evidencia que não pode haver para o Brasil todo uma só reforma agrária. Será necessário examinar região por região, cultura por cultura, para fazer um plano adequado. Adaptar a cada um dos casos ou situações concretas os nove princípios genéricos e judiciosos que a Pastoral Coletiva propõe. Estes princípios são:
a) Fazer da utilização da terra parte integrante do planejamento e pensamento econômico-social.
b) Insistir em que, nas zonas agrárias, o ensino da administração da terra e da produção, tanto na escola como no lar, tenha aspectos proeminentes da educação rural.
c) Dar lugar de destaque a um programa especial referente a escolas secundárias, profissionais, técnicas e [de] artes liberais destinadas a atender às necessidades das comunidade rurais.
d) Reformar o sistema de taxação da terra e de seus melhoramentos, a fim de facilitar o acesso às riquezas naturais, a conservação segura e o adequado uso da terra. "Uma condição indispensável para que todas essas vantagens se tornem realidade, é que a propriedade particular não desapareça por excesso de exigências e de impostos" ( Leão XIII, Rerum Novarum ).
e) Respeitados os direitos de propriedade, estimular a repartição de terras abandonadas.
f) Incentivar o emprego de métodos cooperativistas, junto a proprietários e administrados locais, onde se tornar necessária e aconselhável a produção em larga escala.
g) Insistir em que os salários e as condições de moradia dos trabalhadores dos campos sejam decentes e justos.
h) Estender, com prudência, a previdência social, especialmente a que se refere ao seguro de vida e contra doenças e velhice, aos trabalhadores nas populações rurais.
i) Desenvolver, nas comunidades agrárias, o comércio e a indústria de propriedade de pessoas residentes no local e por elas pessoalmente dirigidos."
Participação nos Lucros
A respeito da participação nos lucros, é fácil resumir o pensamento da Pastoral Coletiva. Reconhece ela que o sistema, em si mesmo considerado, é excelente. E tem toda a razão. Com efeito, a participação é de molde a interessar diretamente o trabalhador na produção, e além disso estimula nele a consciência de sua natural solidariedade com o patrão, e assim concorre para estabelecer a paz social. No entanto, de outro lado, a Pastoral põe em foco que a participação nos lucros não constitui medida que se possa tornar rigorosamente obrigatória, como se fosse injusto o regime do salariado. E ainda aí tem toda a razão. Com efeito, não só o regime do salariado é útil, mas em certas circunstâncias é muito mais útil e eficaz do que a participação nos lucros. Nosso Episcopado não acredita na participação como uma panacéia universal. Louva-a como medida excelente em bom número de casos. Mas ressalva a legitimidade e oportunidade do salariado. Porém, tomando esta atitude, lembra bem que o salário, conforme às normas da Igreja, deve ser proporcionado ao valor do trabalho fornecido pelo empregado, suficiente para prover à sua existência pessoal com a fartura e a dignidade própria a uma criatura humana, e a um filho de Deus, e para prover igualmente a sua família.
Estes são alguns dos capítulos mais importantes da Pastoral Coletiva. Constituem tema de meditação para todos os nossos estadistas, pensadores e escritores. Se não fosse a extensão já excessiva deste trabalho, não seria difícil mostrar que em todos os outros assuntos oferece a Pastoral igual campo a uma meditação fecunda.