Catolicismo Nº 10 - Outubro de 1951
Divino Jesus nós vos oferecemos este terço que vamos rezar...
No Primeiro Mistério Doloroso Contemplamos a Agonia de Jesus no Horto
1ª Conta
Neste mistério, sofreu Nosso Senhor o tormento da solidão. Não da solidão que é calma, recolhimento, prece, a solidão que é o paraíso da alma verdadeiramente interior, mas a solidão criada pela indiferença geral, pela incompreensão e pelo ódio.
No momento em que o Senhor se preparava para morrer pela humanidade, forçoso seria que a seu lado estivessem todos os que ouviram maravilhados as suas palavras. Tal era o deslumbramento causado pelos seus ensinamentos, que os homens, para O ouvir, se embrenhavam pelo deserto, sem cogitar de agasalho nem de pão. No momento da dor e do perigo, onde estão estas multidões? Quando o Senhor fazia milagres, o povo empolgado O aclamava. Onde está agora este povo? Como explicar que a seu lado nem sequer figurem os leprosos que limpou, os cegos e os mudos que curou, os mortos a quem restituiu a vida? É que é fácil crer à vista do milagre, mas é difícil afirmar nossa Fé em face dos que não viram milagres, ou não querem crer. Aclamar ao Senhor em meio a uma multidão empolgada não é difícil. Mas sustentar o sarcasmo, a incompreensão, a hostilidade, nos ambientes em que se conspurca a Fé, é muito difícil. Vibrar de entusiasmo ouvindo o ensinamento do Senhor, é fácil. Mas pôr em prática seus mandamentos quando, depois de passado o entusiasmo, cada qual retorna à inexorável trivialidade da vida quotidiana, é muito mais difícil. É inegável que as multidões se entusiasmaram pelo Mestre. Seu pecado não consistiu em que o entusiasmo fosse fraco, mas em que ficasse apenas em entusiasmo. E, por isto, no Horto das Oliveiras o Senhor está só. Só, e oferecendo por mim os méritos da sua imensa solidão. Para que eu seja menos covarde, para que eu não seja uma alma frívola, que vive de entusiasmos, mas uma alma superior e profunda que vive de convicções e de firmes resoluções. Pelo auxílio de vossa divina graça, dai-me, Senhor, fortaleza para Vos proclamar à face de vossos adversários, e para perseverar invencivelmente fiel a Vós, na luta obscura e quotidiana do cumprimento do dever.
2ª Conta
Alguns fizeram exceção. Foram coerentes. Deixaram tudo, negócios, famílias, situação, para se consagrarem inteiramente ao Senhor. No cumprimento do dever quotidiano, souberam ser exímios. Não houve canseiras, nem calúnias, nem sarcasmos que os fizessem desertar. Entretanto, também estes deixam só ao Senhor. Dormem acabrunhados, fugindo assim, no torpor do sono, à realidade da vida, pesada demais para seus ombros. Como explicar esta defecção? É que sua generosidade foi suficiente para as circunstâncias comuns da vida quotidiana, com seus pequenos reveses, com suas incontestáveis satisfações. Abandonaram tudo, é verdade, mas em compensação três deles viram a glória do Senhor no alto do Tabor, e todos participavam aos olhos do povo da grandeza do Mestre. Praticaram até milagres. Foram assim arrancados ao anonimato obscuro e pesado que pareceria ser o normal de sua vida. A vida quotidiana lhes corria, pois, austera, mas muito suportável. O Senhor porém não se contenta com as almas que são generosas tão somente no teor miúdo da vida quotidiana. Um dia ou outro, uma tragédia vem para os que Ele prefere. Tragédia interior, ou tragédia exterior, uma coisa e outra em geral, e no mais dos casos várias tragédias que se sucedem até a morte. E estes homens fraquejam. Na vida de todos os dias, não se prepararam para as grandes ocasiões, para as imolações enormes, para as renúncias completas. Afinal, chegada a hora de Deus, rompeu-se o quadro da existência normal e quotidiana. O momento da angústia, da perseguição e da dor chegou. E ei-los que dormem, deixando só o Mestre. E eu, Senhor? Até que ponto estou disposto ao heroísmo? Até que ponto estou pronto a deixar por Vós todas e cada uma das coisas grandes e pequenas que constituem o prazer de minha vida quotidiana? Sei que por mim nada posso. Mas sei também que com vosso auxílio serei capaz de tudo. Dai-me vossa graça, para que eu não seja daqueles que "não podem vigiar uma hora convosco" ( cfr. Mt. XXVI, 40 ). Para que eu não me deixe arrastar por tanta covardia, quero na minha vida quotidiana preparar-me para tudo, "vigiando e orando a fim de não cair em tentação" ( cfr. ibid. ).
3ª Conta
Senhor, estais só. Só, porque Vos abandonaram. Só, ainda, porque Vos odeiam. Ao longe, brilham as luzes da cidade eleita que, esquecida de Vós, agora se prepara para o repouso ou para o prazer. É aquela Jerusalém bem amada entre todas as cidades da terra, sobre a qual sopra agora contra Vós um vento de incompreensão culposa e de torpe hostilidade; aquela Jerusalém que não Vos quis conhecer, e em cujas muralhas agora se prepara o deicídio. Odeiam-Vos aqueles a quem amastes. Congregam-se para Vos matar, precisamente aqueles a quem quisestes reunir à roda de Vós como faz a galinha com seus pintainhos. Vós quisestes amar, mas não quiseram o vosso amor. Sois o grande Rejeitado: "in propria venit, et sui Eum non receperunt" ( Jo. I, 11 ).
Quantas vezes é esta, Senhor, a situação de vossos servos. Apregoam a verdade, fazem o bem, e são odiados. Quantas e quantas vezes, sentimos também nós, que somos rejeitados!
Diante desta rejeição, qual vossa atitude? Perseverais: em vosso ensinamento, nada se altera; em vossa lei, nada se abranda, ainda que todos, absolutamente todos Vos abandonem. Sofreis só. E encheis Vossa solidão voltando-Vos para o Padre Eterno.
Imito vosso exemplo? Tenho a dignidade e a coragem de perseverar na integridade da Fé, na intransigente perfeição da virtude, ainda que isto me custe um completo alheamento em relação a todos? E, neste alheamento, o que faço? Perco-me em gemidos estéreis? Ou volto-me para Vós, que sois o meu Deus?
Quando o ódio gratuito de vossos adversários fizer de mim um grande isolado, um grande rejeitado, dai-me, Divino Jesus, a graça de me voltar inteiramente para Vós, e de imitar em relação ao mundo a dignidade inefável, a cristalina intransigência, sem revolta nem fraqueza, de que me destes exemplo neste passo de vossa Paixão.
4ª Conta
As sombras da apreensão, da angústia, da dor, de todos os lados Vos circundam, e a presciência de tudo quanto Vos vai suceder desde já Vos submerge num oceano de dor. Vedes em espírito ulular em torno de Vós a multidão embrutecida e entregue ao demônio. Desde já, sentis em vossa alma as bofetadas, os açoites, as injúrias, todo o peso do ódio que Vos levará à Cruz. Sabeis que, para Vós, não há outra perspectiva senão a dor, a dor invariável, sistemática, completa, a dor meticulosa, omnímoda, prolongada, até o grande abandono final no alto da Cruz: "dolores mortis circundederunt me".
Como agis? Que exemplo me dais? Fechais os olhos ao que vem? Não. Encarais a dor objetivamente, inteiramente, sem disfarçar nem atenuar nada. Vossa força se afirma na consideração lúcida e implacável da verdade. E vossa perseverança não se mantém por uma voluntária e covarde ignorância do que virá.
E eu, Senhor, como procedo diante da dor? Ouso encará-la? Ouso prever com objetividade plena tudo quanto - na contingência das coisas humanas - posso razoavelmente prever que vem sobre mim? Ou pertenço à inumerável multidão dos que se deixam anestesiar por um otimismo falso e leviano, procurando mentir-me a mim mesmo quando de mim se aproxima a desventura?
Em face da dor, dai-me, Jesus, a força de a encarar com o realismo absoluto com que a considerastes Vós.
5ª Conta
A consideração da dor produziu em Vós seus últimos efeitos. Suastes sangue... é a manifestação mais extrema da angústia e do sofrimento.
Entretanto, nem por um momento vacilastes. Este sofrimento que prevíeis, Vós o quisestes sempre, inteiramente, tal qual era, sem uma restrição, sem uma mitigação, desde que tal fosse a vontade do Pai Celeste.
Bem considerada chaga por chaga, espinho por espinho, bofetada por bofetada, ultraje por ultraje a vossa imensa dor, Vós a quisestes. E isto porque infinitamente maior do que este oceano incomensurável de dores era vossa determinação de fazer a vontade do Pai Celeste; era vosso amor aos homens a quem havíeis de remir; era o vosso ódio ao pecado e ao demônio, a quem íeis esmagar. E aceitastes vossa Paixão, destes consentimento pleno, libérrimo, irrestrito, à vossa Morte.
Nesta aceitação, meu Jesus, como que sofrestes inteira a vossa Paixão e vossa Morte. A vontade de dar é o melhor do dom. A aceitação livre e voluntária da dor é o que há de mais agudo na própria dor. Neste momento, manifestastes vosso desejo de nos dar tudo, gota por gota, de vosso Sangue, e vossa própria Vida. É o exemplo do ato de vontade mais forte, mais livre, mais deliberado, mais inabalável que se possa conceber.
E eu? A pergunta me acabrunha e me reduz ao silêncio.
6ª Conta
Entretanto, dando-me este exemplo, quisestes que o imitasse, por amor de Vós. É absolutamente preciso chegar até aí. Como fazer? Sinto medo, sinto pavor, minhas forças estão numa desproporção com este ideal que me atrai, porém me faz estremecer até no que há de mais íntimo dentro de mim.
Se consulto as minhas próprias forças, vejo com a mais cruel das evidências minha radical insuficiência.
Mas ainda aqui, vosso exemplo não me falta. Também Vós sentíeis tédio e pavor: "coepit pavere et taedere", diz de Vós o Evangelho ( Mc. 14, 34 ). E me ensinastes a ser filial para conVosco; pedistes que de Vós se afastasse o Cálice da amargura. "Meu Pai, se é possível, afaste-se de mim este Cálice" ( Mt. 26, 39 ). Não devemos ser de um estoicismo orgulhoso e geométrico. Devemos pedir francamente o que nosso coração de filhos deseja. Mas pedir como Vós pedistes: "se é possível...", isto é, se de acordo com as vistas amorosas da Providência, esta dor não for necessária para nosso próprio bem, para o bem de toda a Igreja Santa de Deus.
Doenças, perseguições, provações, miséria, de tudo isto posso pedir a Deus que me livre... "se for possível". E, se outras forem a vistas de Deus, devo preferir as doenças à saúde, as perseguições à tranqüilidade, as provações à bonança, a miséria à fortuna.
Como não reconhecer que isto me causa terror?
7ª Conta
Ainda tenho de Vós neste passo outro exemplo a aprender. Quantos há, que dizem que a provação é forte demais para eles. E, sob este pretexto, abandonam a luta. Forte demais, certamente a provação o pode ser. Mas quão fútil é o pretexto dos que por isto desertam da luta!
Imerso na angústia, recorrestes à oração. E, sendo-Vos manifestado que a dor não Vos seria poupada, entretanto Vos foi dada a consolação misteriosa que Vos deu alento. Vossa oração foi ouvida. O auxílio do Céu não Vos faltou.
Também eu nas horas de angústia devo redobrar na oração. E se de mim não for afastado o cálice, terei sempre, se rezar até o fim com toda a perseverança, a força sobrenatural necessária. Minha força me vem, não de mim, mas de Deus. E com a graça de Deus tudo poderei suportar.
Longe de mim, pois, blasfemar contra Vós, dizendo que não resisti por falta de forças. As minhas, bem o sei, não bastam. Mas o auxílio de vossa graça jamais nos faltará.
8ª Conta
Em vossa Alma, Senhor, a Paixão já está realizada, a Morte de algum modo já se consumou. Aceitastes tudo, com uma firmeza divinamente inabalável. Depois, vieram os algozes, veio o filho da iniqüidade, que com um beijo Vos traiu, os que dormiam fizeram o que se podia esperar de quem dorme nas horas de Deus, isto é, fugiram espavoridos. Fostes preso porque quisestes, preso pela vontade do Pai Celeste e por vosso consentimento, e não pelas armas miseráveis daqueles celerados. Foi o que afirmastes a Pedro, documentando vossas palavras com mais um admirável milagre. E seguistes para Vos imergir no imenso mar de vossas dores, rumo à Cruz e à Sepultura.
9ª Conta
Ficou novamente ermo o Horto das Oliveiras. Mas seu nome nunca mais se apagou da mente dos homens. Por todo o sempre, de todos os recantos da terra, para ele afluíram e afluirão homens cheios de respeito, de gratidão e de amor. Consideraram como honra e como graça, oscular a terra vulgar de que é feito. Levaram para casa como jóias de valor as folhas das oliveiras que ali vicejam. Nunca um cristão sofreu dores e angústias, sem que elas se aliviassem no pensamento dos grandes tormentos do Horto. Dele se pode dizer que "bem-aventurado o chamarão todas as gerações", porque nele houve a imensa imolação de alma do Filho de Deus.
10ª Conta
E se bem-aventurado é o Horto em que sofrestes, meu Deus, quanto mais bem-aventurado é o Seio em que fostes gerado! Quanto mais bem-aventurado é o Coração dAquela que consentiu no sacrifício tremendo de naquele momento não estar a vosso lado! Quanto mais bem-aventurada é a vontade sobrenaturalmente inquebrantável dAquela que de Sua parte quis inteiramente, absolutamente, que por amor de Deus e nosso sofrêsseis tudo quanto havíeis de sofrer!
Permiti entretanto, meu Jesus, um reparo. Renunciastes a tudo, neste passo, e até à companhia física e sensível de vossa Mãe. Entretanto, tivestes uma consolação que não Vos abandonou: a certeza de que em espírito Ela esteve conVosco, sofrendo absolutamente todas as vossas dores, com um amor e uma intensidade de participação que nenhuma linguagem humana é capaz de exprimir.
Na conclusão desta dezena, desejo pedir-Vos uma graça. É possível que me reserveis ao longo da vida tormentos inexprimíveis. É possível que durante estes tormentos não tenha de Maria Santíssima nenhuma consolação sensível. Eu Vos peço entretanto que não permitais que nesses momentos se apague de meu espírito a convicção de que em toda a realidade Ela está ao lado de mim, como esteve ao lado de Vós. Pois isto só, quanto conforta, Vós mesmo o sabeis, Divino Jesus.