PIO XII FALA AO CONGRESSO PRÓ-CONFEDERAÇÃO MUNDIAL
Esta folha publica hoje a
alocução do Santo Padre Pio XII
aos dirigentes do "Movimento Universal por uma Confederação
Mundial". Esse documento contém, em sua concisão, afirmações e
ensinamentos capazes de orientar os católicos em matéria da mais palpitante
atualidade. Assim, queremos consagrar este artigo ao comentário de alguns de
seus tópicos.
* * *
Uma certa mentalidade muito difundida em nossos dias, e a que
poderíamos talvez chamar "democratismo otimista" vê do seguinte modo
uma estruturação ideal do mundo futuro:
a. constituições políticas assegurando a eletividade
e a temporariedade das funções legislativas e executivas, a vitaliciedade,
inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos dos membros do Poder
Judiciário. Com isto ter-se-á assegurado a plena igualdade de todos os
cidadãos, a onipotência da opinião pública, a independência dos
magistrados;
b. completando estas medidas, o voto secreto e o
sufrágio universal e direto. O eleitor não sofrerá a pressão dos
poderosos, e poderá depositar na urna um voto inteiramente livre, que seja a
expressão fiel de sua sabedoria e de seu patriotismo. A função de votar
não ficará reservada a pequenas elites de aristocratas, plutocratas ou
intelectuais, pois pertencerá a toda massa dos homens trabalhadores, A
nação se governará pois por si mesma, sem correr o risco de que os
negócios públicos sejam sacrificados por pequenos grupos cujos interesses
sejam contrários ao bem comum;
c. como em última análise o governo tocará à massa,
e esta será a verdadeira soberana, estará assegurado o ideal de liberdade
humana. Pois um povo soberano é necessariamente livre, não havendo
expressão mais completa da liberdade do que a soberania, isto é o poder
supremo de fazer tudo quanto se quer. De outro lado, na contagem rigorosamente
matemática dos votos, triunfará o ideal da igualdade humana. Nenhum
privilégio assegurará ao sufrágio de um cidadão peso maior do que o de
outro. Poderão todos influir igualmente nos destinos da Pátria, iguais em
direitos e deveres, como em amor e solicitude pelos interesses do País;
d. um sistema tão capaz de harmonizar e disciplinar a vida
social deve, por força, produzir os melhores efeitos se aplicado na vida
internacional. Cada nação designaria para um superparlamento mundial uma
bancada proporcional ao número dos seus habitantes. Os membros do
superparlamento elegeriam por voto secreto e direto, o Presidente da
República Mundial. Nomear-se-iam - possivelmente por ação conjunta do
Presidente da República Mundial e do superparlamento, - os titulares do
Poder Judiciário Universal. As nações seriam livres e iguais entre si no
mesmo sentido e na mesma medida em que o seriam os indivíduos na estrutura
democrática interna de cada povo. Assegurada assim a liberdade e a igualdade,
as lutas desapareceriam, pois o homem só luta quando é oprimido, ou quando o
humilha alguma desigualdade. A fraternidade nasceria forçosamente da
conjunção de dois princípios tão sábios e tão sagrados. Liberdade,
Igualdade, Fraternidade, não é este precisamente o sonho do mundo, desde a
Revolução Francesa?
[1] Não se sintetizam nestes vocábulos todas aspirações
de uma humanidade ansiosa de encontrar por fim a paz e o bem estar
definitivos? Não são estes os meios em que há mais de cento e cinqüenta
anos os homens depositam o melhor de sua confiança para realizar seus ideais
de felicidade e dignidade? Não devemos pois admitir que está aí a solução
dos problemas do mundo contemporâneo?
É provável que muitos leitores encontrem nesta formulação
de princípios a própria expressão de sua mentalidade. A maior parte não
pensará talvez assim ponto por ponto: mas verá no que aí ficou dito a linha
geral do seu pensamento. Outros sorrirão com um cepticismo desencantado. E, por
fim, não faltará quem discorde de modo peremptório. E a Igreja?
"Liberdade,
Igualdade, Fraternidade, não é este precisamente o sonho do mundo, desde a
Revolução Francesa?"
[Uma execução por
Guilhotina em Paris durante a Revolução Francesa.
Pierre Antoine De Machy - Museu Carnavalet, Paris]
Os quatro grandes dogmas modernos
Comecemos por distinguir. No conjunto de princípios, de
instituições públicas e de aspirações que acabamos de descrever, há quatro
notas dominantes, que se podem formular do seguinte modo:
a) a idéia de que a direção dos assuntos públicos, quer
nacionais, quer internacionais, só pode ser legitimamente exercida pelo povo,
único soberano verdadeiro, do qual emana todo o poder;
b) a idéia de que o povo, único interessado nos destinos
do Estado, e quiçá do superestado mundial, é por isto mesmo o mais
competente para dirigir os negócios públicos;
c) que o regime representativo, consistente (em sua
expressão mais ampla e mais genuína) no sufrágio universal e na
investidura dos eleitos pelo povo em todos os cargos de mando, assegura a
manifestação de autêntica vontade popular, e a fiel execução de tudo
quanto esta deseja;
d) que a ordem internacional exige a criação de um supergoverno mundial, por motivos idênticos àqueles que demonstram a
necessidade do Estado para manter a ordem entre os indivíduos.
É fácil perceber que estes são os quatro pontos em que se
condensa todo o pensamento político da Revolução Francesa, e que eles são
como que os quatro dogmas sobre os quais se construiu a sociedade
contemporânea. Mesmo em certas ideologias políticas hodiernas aparentemente
muito opostas à Revolução Francesa, como o nazismo e o comunismo que são
tão profundamente antiliberais, é fácil perceber a influência deste
pensamento. Tanto o ditador pardo, quanto o ditador vermelho, baseavam ou
baseiam todo o seu poder, pelo menos em tese, em plebiscitos-monstro, que
referendam em nome do povo soberano e onipotente os atos do Chefe do Estado.
Perguntar qual a posição da Igreja perante estes quatro
grandes dogmas da sociedade contemporânea implica pois, em larga medida, em
definir a posição da Igreja perante o mundo de hoje. Um exame de matéria tão
delicada não pode ser feito senão mediante a análise de cada um desses dogmas
à luz da doutrina católica.
O governo popular
O objetivo do presente artigo consiste mais especialmente em
estudar os ensinamentos de Pio XII no assunto de que nos ocupamos. Assim,
trataremos em traços muito rápidos da posição da Igreja perante o dogma da
soberania popular, exaustivamente elucidada pelos documentos pontifícios que se
têm sucedido de Pio VI a Pio XI.
A Igreja sempre ensinou que o poder não vem do povo, mas de
Deus. Com efeito, Deus criou a natureza humana de tal modo que os homens
necessariamente devem ter um governo. Sendo Deus onipotente, fácil lhe teria
sido criar-nos sem necessidade de termos acima de nós quem nos governasse. Foi
[por] um ato livre e sábio de Sua Vontade onipotente, que Deus nos criou como
somos. É, pois por efeito desta Vontade adorável, que existem na terra
governos a que os homens devem obediência. Os que exercem o poder público não
o fazem, pois, pela autoridade do povo, mas pela autoridade de Deus.
O mandatário
exerce o poder por autoridade de Deus. De aí que em
numerosas cerimônias de coroação de monarcas a
"sagração" do novo monarca fosse una cerimônia
religiosa.
["Sagração" de
Carlos X por François Gérard]
Daí decorrem para a prática conseqüências muito
importantes. A primeira delas está em que na concepção católica os
governantes são feitos para mandar, e os súditos para obedecer. Ao contrário,
se o povo fosse soberano, o governante não teria outra coisa a fazer senão
obedecer à vontade do povo. Outra conseqüência importante está em que
segundo a doutrina católica, é perfeitamente normal que o poder seja exercido
por um monarca, ou por uma aristocracia. Pelo contrário, os partidários da
soberania popular são naturalmente levados a aceitar como única forma de
governo a democracia, em que o voto popular indica os que devem exercer o
governo.
Resta saber se, sendo a Igreja contrária à doutrina da
soberania popular, condena também a República democrática, isto é a forma de
governo segundo a qual o supremo magistrado da nação é eleito pelo voto
popular.
Uma vez que nossa natureza é tal que, na infância, somos
ignorantes, precisamos de professores. Assim, é por vontade de Deus que existem
professores, e a autoridade do mestre sobre os discípulos não provém de uma
delegação destes, mas do próprio Deus. Entretanto, é bem certo que Deus, que
quis que houvesse professores, deixou ao critério dos homens a escolha dos
meios para a designação daqueles a quem incumbe o ofício de lecionar. E,
assim, tanto é lícito que o professor seja escolhido por nomeação livre,
quanto por concurso, quanto por promoção devida à antigüidade no serviço.
Cabe aos homens adotar qualquer destas modalidades segundo as circunstâncias de
cada tempo e cada lugar. O mesmo se pode dizer do governo: ele existe por
vontade de Deus, mas o modo de escolher o supremo magistrado pode variar
conforme as circunstâncias, sendo vitalício e hereditário em alguns países,
temporário e eletivo em outros. Se, pois, por República ou mais largamente por
democracia entendermos o simples fato de que a suprema magistratura possa ser
provida por via de eleição popular, é ensinamento expresso de Leão XIII que
ela em nada contraria a doutrina católica.
Este ensinamento — insistimos para evitar confusões
perigosas e muito generalizadas — comporta entretanto duas ressalvas
importantes. Ainda no caso de uma República, o supremo magistrado não é um
escravo da vontade popular, mas sim um verdadeiro governante. De outro lado,
convém lembrar que a democracia não é preferida ou imposta pela Igreja, ao
contrário do que um preconceito muito corrente faz crer. Consiste esse
preconceito em que o Evangelho prega a igualdade política, de sorte que toda a
desigualdade ofenderia o espírito de humildade e mansidão inerente ao
ensinamento de Nosso Senhor Jesus Cristo. A monarquia e a aristocracia, que se
baseiam sobre a desigualdade seriam pois opostas ao espírito evangélico. Nada
mais falso. A humildade leva a querer que cada qual esteja no lugar que lhe
compete, e não a desejar que todos estejam fora dos respectivos lugares. De
sorte que, se há ricos e pobres, nobres e plebeus, cultos e incultos, a
humildade deve levar o cristão a querer que cada qual seja tratado segundo o
que é, e tenha na coisa pública uma participação proporcionada a seus
méritos e categoria. É legítimo que um povo se organize democraticamente.
Porém não é legítimo que ele considere injustas, retrógradas ou falsas as
outras formas de governo; que ele procure impor sua própria forma aos outros
sob pretexto de progresso ou de civilização; ou que, por um amor cerebrino e
teórico ao democratismo, faça uma revolução como a de 1789 violando direitos
adquiridos, alterando bruscamente toda a evolução histórica de uma
civilização e até destruindo instituições e vidas, para reduzir tudo a uma
nova ordem de coisas.
|
A Sereníssima República de Veneza é
talvez a
mais conhecida
república surgida na
Idade
Média.
Fundada no
século
IX subsistiu
até
a
invasão
napoleônica em
1797 [Canaletto
(1697-1768) - O Bucentauro retornando ao cais
de São Marcos no dia da Ascensão depois da
Cerimônia de Casamento da República
com o Adriático]
[Clique sobre a imagem para vê-la em alta
resolução] |
De tudo quanto se contém no primeiro principio, chega-se
pois à conclusão que a Igreja aceita apenas o seguinte: a república é uma
forma de governo lícita.
Quando Leão XIII definiu este ponto em fins do século XIX
causou sensação. Não faltou quem acusasse o grande Pontífice de por
oportunismo pactuar com os princípios triunfantes da Revolução Francesa. Um
simples estudo das organizações políticas vigentes na Idade Média com toda a
aprovação da Igreja mostraria que o pensamento católico se definira neste
sentido muito antes da Revolução. Em certos municípios suíços, alemães,
italianos da Idade Média, o governo era exercido por pessoas eleitas pelo povo,
sem que ninguém pensasse em ver nisto uma infração da doutrina católica. A
sensação produzida pelo ensinamento de Leão XIII se deveu a que seu
pensamento não foi bem compreendido. Quem queira estudar o assunto a fundo
encontrará nos documentos de Pio XII diretrizes geniais para se esclarecer
inteiramente a tal respeito
[2].
A infalibilidade do eleitorado
Examinemos o dogma da infalibilidade popular. O que pensa
dele a Igreja? Se o quisermos entender em sentido literal, a resposta só pode
ser negativa. Depois do pecado original, todos os homens estão sujeitos a erro.
Só o magistério da Igreja possui o privilégio da infalibilidade. Mas este
privilégio lhe vem unicamente da assistência divina prometida por Jesus
Cristo. Não tendo Cristo prometido a infalibilidade ao povo, claro está que o
sufrágio universal é falível. Um católico coerente não pode senão sorrir
da ingenuidade dos que imaginam que a instituição do sufrágio universal,
direto e secreto, pelo próprio fato de confiar à sabedoria popular a gestão
dos negócios públicos, assegura automaticamente o acerto de todas as
soluções que se queiram dar aos problemas atinentes ao bem comum.
Mutatis mutandis, só temos que repetir aqui o que já
foi dito quanto ao dogma anterior. Das três formas de governo — monarquia,
aristocracia, democracia, — nenhuma, considerada em si mesma, conduz
necessariamente à vontade, ou necessariamente ao erro. A maior ou menor margem
de "falibilidade" de cada forma de governo varia segundo as
circunstâncias de tempo, de lugar, de índole, de tradições, de cultura
próprias a cada país.
Cabe-nos, pois, examinar quais as condições necessárias
para que o governo do povo conduza a soluções exatas dos problemas nacionais.
Povo e massa
|
Uma imensa multidão reunida
[constrangida?] para receber o Marechal
Tito em Moscou em 1956
[Lisa Larsen; LIFE
Picture Collection, Meredith Corporation]. |
Muitas destas condições haveria que mencionar.
A mais
essencial delas está em que o povo seja realmente povo e não massa. Pois
democracia é governo do povo, e não governo da massa.
A este respeito, Pio XII, em sua alocução de Natal de 1944,
estabelece uma distinção que não há exagero em chamar de genial, e que abre
todo um horizonte novo para os estudos de sociologia católica:
"Povo e
multidão amorfa ou, como se costuma dizer, massa, são dois conceitos diversos.
O povo vive e se move por vida própria; a massa é por si mesma inerte e não
pode ser movida senão do exterior. O povo vive da plenitude da vida dos homens
que o compõem, cada um do quais - em sua própria posição e segundo seu modo
próprio - é uma pessoa cônscia das respectivas responsabilidades e
convicções. A massa, pelo contrário, espera o impulso do exterior, fácil
joguete nas mãos de quem quer que lhe explore os instintos e as impressões,
pronta a seguir, alternadamente, hoje esta bandeira e amanhã aquela. Da
exuberância de vida de um verdadeiro povo a vida se difunde, abundante, rica,
no Estado e em todos os seus organismos, comunicando-lhes, com vigor
incessantemente renovado, a consciência de sua própria responsabilidade, o
verdadeiro sentido do bem comum"
[3].
Assim, pois, o primeiro elemento que
diferencia o povo da massa é que povo se chama uma comunidade humana em que,
todos os homens têm princípios, convicções, movimento próprio, noção
clara de seus direitos e deveres; enquanto a massa, constituída de homens
vazios de idéias, de princípios, de formação moral, sem nenhuma iniciativa
própria têm por única norma a imaginação, que arrasta seus membros num ou
noutro sentido, segundo o sopro da demagogia partidária ou oficial.
Pio XII menciona em seguida outra distinção entre povo e
massa: "Em um povo digno de tal nome todas as desigualdades, derivadas
não do arbítrio mas da própria natureza das coisas, desigualdade de cultura,
de bens, de posição — sem prejuízo, bem entendido, da justiça e da mútua
caridade — não constituem obstáculo para a existência e predomínio de um
autêntico espírito de comunidade e fraternidade. Tais desigualdades, longe
de ferir a igualdade civil, lhe conferem pelo contrário seu verdadeiro
significado que consiste em que, perante o Estado, cada qual tem o direito de
viver honradamente a própria existência pessoal, na posição e nas
condições em que os desígnios da Providência o colocou"
[4].
Povo e Plebe
|
Viena - Mercado de frutas no Schanzel -
(Friedrich Alois Schonn, 1895). |
Este último ponto merece realce. O povo não é só a plebe,
nem só a maioria: é toda a população. A igualdade justa não é a que
elimina as classes superiores dissolvendo-as na plebe, mas a que respeita a
existência de todas as classes sociais, assegurando a cada qual "o
direito de viver honradamente a própria existência". E isto não quer
dizer que se deve dar aos plebeus o direito de viver como nobres; nem aos
trabalhadores manuais de viver como burgueses; nem aos iletrados de viver como
homens cultos: cada qual tem, é certo, direito a uma vida honrada, diversa das
detestáveis condições de vida de certa parte do operariado hodierno, sem
exorbitar porém da "posição em que os desígnios e disposições da
Providência o colocou". Povo, pois, na linguagem da Igreja não é a
maioria, nem a classe mais modesta, mas toda a população de um país, enquanto
psicologicamente dotada de forte personalidade individual e coletiva; de uma
vida própria que anima o Estado em lugar de se deixar asfixiar por este; de uma
real diferenciação de camadas sociais, dotadas todas de padrão de vida e de
cultura próprios mas desde que nenhum destes padrões seja inferior ao que
convém à natural dignidade do homem.
Estes requisitos, como se vê, são o contrário dos que
teria a sociedade nivelada e amorfa sonhada pelos revolucionários de 1789, e
pelos seus genuínos sucessores, os socialistas de nossos dias.
Um tal "povo", orgânico, hierarquizado, vivo, pode
realmente pronunciar-se com acerto sobre determinado número de problemas
nacionais e principalmente regionais. Nunca porém a massa que por definição
quase só é capaz de errar.
Massa e sufrágio
Passamos para o terceiro "dogma". O sufrágio
universal baseado na contagem numérica dos votos todos iguais entre si, exprime
adequadamente a vontade do povo?
A resposta não é difícil. Se todos se podem igualmente
pronunciar sobre tudo, e na contagem dos votos realmente todos valem a mesma
coisa, de fato este sistema conviria idealmente para a massa, e muito
dificilmente se ajustaria a um verdadeiro povo.
Daí decorre que o sistema que confere à simples maioria
numérica dos cidadãos o direito de formar a maioria do Poder Legislativo,
dirigir a seu talante o Executivo, etc., muito dificilmente representará o povo
autêntico.
Em outros termos, através do sufrágio universal é muito
difícil que o povo influencie a causa pública.
Não causa pois surpresa que na alocução de Pio XII que
CATOLICISMO hoje publica se leia o seguinte:
"Por toda a parte, atualmente, a vida das nações está
desagregada pelo culto cego do valor numérico. O cidadão é eleitor. Mas como
tal, ele não é na realidade senão uma das unidades cujo total constitui uma
maioria ou uma minoria, que um deslocamento de algumas vozes, de uma só até,
bastará para derrubar. Perante o partido ele não vale senão por seu valor
eleitoral, pelo concurso de seu voto: DE SEU PAPEL NA FAMÍLIA E NA PROFISSÃO
NÃO SE COGITA" .
Uma sociedade dominada pelo "culto cego do valor
numérico" é massa, e não povo. Uma das manifestações mais típicas
deste domínio do valor numérico, Pio XII o vê precisamente num sistema de
voto que faz abstração de tudo quanto o eleitor é na estrutura orgânica do
povo, para ver nele simplesmente um número, uma unidade impessoal e anônima,
perdida na massa. Num tal sistema, parece-nos, o Estado não passa de "uma
aglomeração amorfa de indivíduos" que "contém e reúne em
si mecanicamente em um território dado"; quando na realidade deverá
ser a "unidade orgânica e organizadora de um verdadeiro povo"
[5].
Novos rumos
Que fazer? Evidentemente encarar a eventualidade de mudar de
rumos: "Depois de todas as provações passadas e presentes ousar-se-ia
julgar suficientes os recursos e os métodos atuais de governo político? Em
verdade, é impossível resolver o problema da organização política mundial
sem admitir a necessidade de deixar por vezes as rotas batidas, sem fazer apelo
à experiência da História, a uma sã filosofia da História, e mesmo a uma
certa divinação de imaginação criadora", nos diz Pio XII na
alocução aos membros do "Movimento Universal para uma Confederação
Mundial".
Mas para onde? Esta mesma alocução nos dá preciosas
indicações de caráter positivo a tal respeito, apontando o rumo do futuro
numa dependência das instituições políticas e dos costumes em relação à
ordem orgânica natural.
É neste rumo que se encontrará a solução para o problema
de uma estrutura internacional do mundo. E isto nos conduzirá ao estudo do
quarto "dogma" contemporâneo.
Deixemos porém estes dois pontos
para outro número de "CATOLICISMO".
Muito sensibilizado por vossa atenciosa iniciativa, Nós vos dirigimos,
senhores membros do Congresso do “Movimento Universal para uma Confederação
Mundial” Nossa cordial saudação de boas vindas. O Vivo interesse que temos
pela causa da paz em uma humanidade tão duramente atormentada vos é bem
conhecido. Dele vos temos dado freqüentes testemunhos. Aliás, é ele inerente
à Nossa missão. A manutenção ou restabelecimento da paz tem sido sempre e é
cada vez mais o objeto de Nossa constante solicitude. E se, muito freqüentemente,
os resultados ficaram longe de corresponder a Nossos esforços e a Nossos atos,
o insucesso não Nos desanimará jamais, enquanto a paz não reinar no mundo.
Fiel ao espírito de Cristo, a Igreja tende para a paz, e para esta trabalha com
todas as suas forças; ela o faz por seus preceitos e por suas exortações, por
sua ação incessante, por suas incessantes orações.
A Igreja é, com efeito, uma potência de paz, ao menos onde se respeita e
aprecia no justo valor a independência e a missão que recebeu de Deus, onde não
se procura torná-lo um instrumento dócil dos egoísmos políticos, onde não
é ela tratada como inimiga. Ela quer a paz, sua obra é de paz, e seu coração
está com todos aqueles que como ela desejam a paz e pela paz se devotam. Além
disso, e é sua obrigação, sabe ela discernir entre os verdadeiros e os falsos
amigos da paz.
A
Igreja quer a paz, e por isso se empenha em promover tudo que nos quadros da
ordem divina, natural e sobrenatural contribui para assegurá-la. Vosso
Movimento, Senhores, se empenha em realizar uma organização política eficaz
do mundo. Nada mais conforme com a doutrina tradicional da Igreja, nem
mais adaptada ao seu ensinamento sobre a guerra legítima ou ilegítima,
sobretudo nas conjunturas presentes. É preciso, pois, chegar a uma organização
desta natureza, quando mais não fosse para acabar com uma corrida armamentista
na qual, há dezenas de anos, os povos se arruínam e se esgotam em pura perda.
Sois da opinião que, para ser eficaz, a organização política mundial
deve ter forma federativa. Se por isto entendeis que ela deve libertar-se da
engrenagem de um unitarismo mecânico, ainda neste ponto estais de acordo com os
princípios da vida social e política firmemente estabelecidos e sustentados
pela Igreja. De fato, nenhuma organização do mundo será viável se não se
harmonizar com o conjunto de relações naturais, com a ordem normal e orgânica
que rege as relações particulares dos homens e dos diversos povos. Sem isto,
seja qual for sua estrutura, ser-lhe-á impossível manter-se de pé e durar.
Eis porque estamos convencidos de que o primeiro cuidado deve consistir em
estabelecer solidamente ou de restaurar estes princípios fundamentais em todos
os campos: nacional e constitucional, econômico e social, cultural e moral.
No campo nacional e constitucional. Por toda a parte, atualmente, a vida
das nações está desagregada pelo culto cego do valor numérico. O cidadão é
eleitor. Mas, como tal, não é ele na realidade senão uma das unidades cujo
total constitui uma maioria ou uma minoria, que o simples deslocamento de
algumas vozes, quando não de uma só, basta para inverter. Do ponto de vista
dos partidos, o eleitor não conta senão por seu poder eleitoral, pelo concurso
que seu voto dá; de sua situação, e de seu papel na família e na profissão
não se cogitam.
No campo econômico e social. Não há qualquer unidade orgânica natural
entre os produtores, desde que o utilitarismo quantitativo, a mera consideração
do lucro é a única norma, que determina os lugares de produção e a distribuição
do trabalho, desde que é a “classe” que distribui artificialmente os homens
na sociedade, e não mais a cooperação na comunidade profissional.
No campo cultural e moral. A liberdade individual, desembaraçada de todos
os liames, de todas as regras, de todos os valores objetivos e sociais, não é,
na realidade mais do que uma anarquia mortal, sobretudo na educação da
juventude.
Enquanto
não se tiver firmado sobre esta base indispensável a organização política
universal, corre-se o risco de inocular nesta os germens mortais do unitarismo
mecânico. Desejaríamos convidar a refletir sobre isto, precisamente do ponto
do vista federalista, àqueles que pretendem aplicá-lo, por exemplo, a um
parlamento mundial. De outro modo, fariam eles o jogo das forças dissolventes
de cuja ação a ordem política e social, já tem sofrido por demais;
eles a outra coisa não chegaram senão a acrescentar mais um automatismo legal
a tantos outros que ameaçam sufocar as nações e reduzir o homem a não ser
mais do que um instrumento inerte.
Se pois, no espírito de federalismo, a futura organização política
mundial não pode, sob pretexto algum deixar-se arrastar no jogo de um mecanismo
unitário, ela não gozará de uma autoridade efetiva a não ser na medida em
que salvaguarde e favoreça em toda a parte a vida própria de uma sadia
comunidade humana, de uma sociedade cujos membros concorrem todos juntos para o
bem da humanidade inteira.
Que dose de firmeza moral, de inteligente previdência, de plasticidade e
adaptação deverá possuir esta autoridade mundial, mais necessária do que
nunca nos momentos críticos em que, em face da malevolência, as boas vontades
têm necessidade de se apoiar sobre a autoridade! Depois de todas as provações
passadas e presentes ousar-se-ia julgar suficientes os recursos e os métodos
atuais de governo e de política? Em verdade, é impossível resolver o problema
da organização política mundial sem consentir em se afastar às vezes das
rotas batidas, sem apelar à experiência da história, a uma sã filosofia
social, e mesmo a uma certa divinação da imaginação criadora.
Eis,
senhores, um vasto campo de trabalho, de estudo e de ação: vós o
compreendestes e o considerastes bem de frente; vós tendes a coragem de vos
dedicar a tal; Nós vos felicitamos. Nós vos exprimimos Nossos votos de bom êxito,
e de todo coração imploramos sobre vós e sobre vossa missão as luzes e os
socorros de Deus. |
NOTAS
[1]
Sobre a trilogia da Revolução Francesa pode-se
ler abundante documentação pontifícia no livro "Nobreza
e elites tradicionais análogas nas alocuções de
Pio XII ao Patriciado e à Nobreza Romana", de
autoria do Prof. Plinio, no Apêndice II da Parte II: "A trilogia revolucionária:
Liberdade, Igualdade,
Fraternidade: falam diversos Papas"
[2] Para
se aprofundar na
doutrina católica sobre as formas de governo pode-se
ver em "Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de
Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana", no
Apêndice III da Parte II - As formas de governo à luz da
Doutrina Social da Igreja: em tese - in concreto, um nutrido conjunto de citações pontifícias sobre
o assunto.
[3]
Radiomensagem
«Benignitas
et Humanitas»
de Sua Santidade Pio XII
na véspera do Natal
de 1944.
[4]
Ibidem
[5]
“o Estado não contém em si e não
reúne mecanicamente em um território dado, uma aglomeração amorfa de indivíduos;
ele é, e deve ser na realidade, a unidade orgânica e organizadora de um
verdadeiro povo” - Pio XII, Alocução de Natal
«Benignitas
et Humanitas» de 1944.
[6]
O texto original da alocução, em francês,
pode ser lido aqui.
|