O juiz que cometeu o crime profissional mais
monstruoso de toda a História, não foi a ele impelido pelo tumultuar de
nenhuma paixão ardente. Não o cegou o ódio ideológico, nem a ambição de
novas riquezas, nem o desejo de comprazer a alguma Salomé. Moveu-o a
condenar o Justo o receio de perder o cargo, parecendo pouco zeloso das
prerrogativas de César; o medo de criar para si complicações políticas,
desagradando ao populacho judeu; o medo instintivo de dizer "não", de
fazer o contrário do que se pede, de enfrentar o ambiente com atitudes e
opiniões diferentes das que nele imperam.
Vós, Senhor, o fitastes por longo tempo com aquele
olhar que em um segundo operou a salvação de Pedro. Era um olhar em que
transparecia vossa suprema perfeição moral, vossa infinita inocência, e,
entretanto, ele Vos condenou.
Senhor, quantas vezes imitei Pilatos! Quantas vezes,
por amor à minha carreira, deixei que em minha presença a ortodoxia
fosse perseguida, e me calei! Quantas vezes presenciei de braços
cruzados a luta e o martírio dos que defendem vossa Igreja! E não tive a
coragem de lhes dar sequer uma palavra de apoio, pela abominável
preguiça de enfrentar os que me rodeiam, de dizer "não" aos que formam
meu ambiente, pelo medo de ser "diferente dos outros". Como se me
tivésseis criado, Senhor, não para Vos imitar, mas para imitar
servilmente os meus companheiros.
Naquele instante doloroso da condenação, Vós
sofrestes por todos os covardes, por todos os moles, por todos os
tíbios,... por mim, Senhor.
Meu Jesus, perdão e misericórdia. Pela fortaleza de
que me destes exemplo arrostando a impopularidade e enfrentando a
sentença do magistrado romano, curai em minha alma a chaga da moleza!
Pater Noster. Ave Maria. Gloria Patri.
V. Miserére nostri Dómine. R. Miserére nostri.
V. Fidélium ánimae per misericordiam Dei requiéscant
in pace. R. Amen.
Inicia-se assim, meu adorado Senhor, a vossa
caminhada para o lugar da imolação. Não quis o Pai Celeste que fôsseis
morto num golpe fulminante. Vós teríeis de nos ensinar em vossa Paixão,
não apenas a morrer, mas a enfrentar a morte. Enfrentá-la com
serenidade, sem hesitação nem fraqueza, caminhando, até, para ela com o
passo resoluto do guerreiro que avança para o combate, eis a admirável
lição que me dais.
Diante da dor, meu Deus, quanta é a minha covardia!
Ora contemporizo antes de tomar a minha cruz; ora recuo, traindo o
dever; ora, por fim, eu o aceito, mas com tanto tédio, tanta moleza, que
pareço odiar o fardo que vossa vontade me põe sobre os ombros.
Em outras ocasiões, quantas vezes fecho os olhos para
não ver a dor! Cego-me voluntariamente com um otimismo estúpido, porque
não tenho coragem de enfrentar a provação. E por isto minto a mim mesmo:
não é verdade que a renúncia àquele prazer se impõe a mim para que não
caia em pecado; não é verdade que devo vencer aquele hábito que favorece
minhas mais entranhadas paixões; não é verdade que devo abandonar aquele
ambiente, aquela amizade que minam e solapam toda a minha vida
espiritual; não, nada disto é verdade... fecho os olhos, e atiro de lado
minha cruz.
Meu Jesus, perdoai-me tanta preguiça, e pela chaga
que a Cruz abriu em vossos ombros, curai, Pai de Misericórdias, a chaga
horrível que em minha alma abri com anos inteiros vividos no relaxamento
interior e na condescendência para comigo!
Pater Noster. Ave Maria. Gloria Patri.
V. Miserére nostri Dómine. R. Miserére nostri.
V. Fidélium ánimae per misericordiam Dei requiéscant
in pace. R. Amen.
Como então, Senhor? Não Vos era lícito abandonar
vossa Cruz? Pois se a carregastes até que todas as vossas forças se
exaurissem, até que o peso insuportável do madeiro Vos lançasse por
terra, não estava bem provado que Vos era impossível prosseguir? Estava
cumprido vosso dever. Os Anjos do Céu que levassem agora por Vós a Cruz.
Vós havíeis sofrido em toda a medida do possível. Que mais haveríeis de
dar?
Entretanto, agistes de outro modo, e destes à minha
covardia uma alta lição. Esgotadas vossas forças, não renunciastes ao
fardo, mas pedistes mais forças ainda, para carregar novamente a Cruz. E
as obtivestes.
É difícil hoje a vida do cristão. Obrigado a lutar
sem tréguas contra si, para se manter na linha dos Mandamentos, parece
uma exceção extravagante num mundo que estadeia na luxúria e na
opulência a alegria de viver. Pesa-nos aos ombros a cruz da fidelidade à
vossa Lei, Senhor. E, por vezes, o fôlego parece faltar-nos.
Nestes instantes de prova, sofismamos. Já fizemos
quanto em nós estava. Afinal, é tão limitada a força do homem! Deus terá
isto em conta... deixemos cair a cruz à beira do caminho e afundemos
suavemente na vida do prazer. Ah, quantas cruzes abandonadas à beira dos
nossos caminhos, quiçá à beira dos meus caminhos!
Dai-me, Jesus, a graça de ficar abraçado à minha
cruz, ainda quando eu desfaleça sob o peso dela. Dai-me a graça de me
reerguer sempre que tiver desfalecido. Dai-me, Senhor, a graça suprema
de nunca sair do caminho por onde devo chegar ao alto do meu próprio
calvário.
Pater Noster. Ave Maria. Gloria Patri.
V. Miserére nostri Dómine. R. Miserére nostri.
V. Fidélium ánimae per misericordiam Dei requiéscant
in pace. R. Amen.
Quem, Senhora, vendo-Vos assim em pranto, ousaria
perguntar por que chorais? Nem a Terra, nem o mar, nem todo o
firmamento, poderiam servir de termo de comparação à vossa dor. Dai-me,
minha Mãe, um pouco, pelo menos, desta dor. Dai-me a graça de chorar a
Jesus, com as lágrimas de uma compunção sincera e profunda.
Sofreis em união a Jesus. Dai-me a graça de sofrer
como Vós e como Ele. Vossa dor maior não foi por contemplar os
inexprimíveis padecimentos corpóreos de vosso Divino Filho. Que são os
males do corpo, em comparação com os da alma? Se Jesus sofresse todos
aqueles tormentos, mas ao seu lado houvesse corações compassivos! Se o
ódio mais estúpido, mais injusto, mais alvar, não ferisse o Sagrado
Coração enormemente mais do que o peso da Cruz e dos maus tratos feriam
o Corpo de Nosso Senhor! Mas a manifestação tumultuosa do ódio e da
ingratidão daqueles a quem Ele tinha amado... a dois passos, estava um
leproso a quem havia curado... mais longe, um cego a quem tinha
restituído a vista... pouco além, um sofredor a quem tinha devolvido a
paz. E todos pediam a sua morte, todos O odiavam, todos O injuriavam.
Tudo isto fazia Jesus sofrer imensamente mais do que as inexprimíveis
dores que pesavam sobre seu Corpo.
E havia pior. Havia o pior dos males. Havia o pecado,
o pecado declarado, o pecado protuberante, o pecado atroz. Se todas
aquelas ingratidões fossem feitas ao melhor dos homens, mas por absurdo
não ofendessem a Deus! Mas elas eram feitas ao Homem-Deus, e constituíam
contra toda a Trindade Santíssima um pecado supremo. Eis aí o mal maior
da injustiça e da ingratidão.
Este mal não está tanto em ferir os direitos do
benfeitor, mas em ofender a Deus. E de tantas e tantas causas de dor, a
que mais Vos fazia sofrer, Mãe Santíssima, Redentor Divino, era por
certo o pecado.
E eu? Lembro-me de meus pecados? Lembro-me, por
exemplo, do meu primeiro pecado, ou do meu pecado mais recente? Da hora
em que o cometi, do lugar, das pessoas que me rodeavam, dos motivos que
me levaram a pecar? Se eu tivesse pensado em toda a ofensa que Vos traz
um pecado, teria ousado desobedecer-Vos, Senhor?
Oh, minha Mãe, pela dor do santo Encontro, obtende-me
a graça de ter sempre diante dos olhos Jesus Sofredor e Chagado,
precisamente como O vistes neste passo da Paixão.
Pater Noster. Ave Maria. Gloria Patri.
V. Miserére nostri Dómine. R. Miserére nostri.
V. Fidélium ánimae per misericordiam Dei requiéscant
in pace. R. Amen.
Quem era este Simão, que se sabe dele, senão que era
de Cirene? E que sabe o geral dos homens sobre Cirene, senão que era a
terra de Simão? Tanto o homem como a cidade emergiram da obscuridade
para a glória, e para a mais alta das glórias, que é a glória sagrada,
num momento em que bem outros eram os pensamentos do Cirineu.
Vinha ele despreocupado pela estrada. Pensava tão
somente nos pequenos problemas e nos pequenos interesses de que se
compõe a vida miúda da maior parte dos homens. Mas Vós, Senhor,
atravessastes seu trajeto com vossas Chagas, vossa Cruz, vossa imensa
dor. E a este Simão tocou tomar posição perante Vós. Forçaram-no a
carregar convosco a Cruz. Ou ele a carregaria mal-humorado, indiferente
a Vós, procurando tornar-se simpático ao povo por meio de algum novo
modo de aumentar vossos tormentos de alma e de corpo; ou a carregaria
com amor, com compaixão, sobranceiro ao populacho, procurando
aliviar-Vos, procurando sofrer em si um pouco de vossa dor, para que
sofrêsseis um pouco menos. O Cirineu preferiu padecer conVosco. E por
isto seu nome é repetido com amor, com gratidão, com santa inveja, há
dois mil anos, por todos os homens de fé, em toda a face da Terra, e
assim continuará a ser até a consumação dos séculos.
Também pelos meus caminhos Vós passastes, meu Jesus.
Passastes quando me chamastes das trevas do paganismo para o seio de
vossa Igreja, com o Santo Batismo. Passastes quando meus pais me
ensinaram a rezar. Passastes quando no curso de catecismo comecei a
abrir a minha alma para a verdadeira doutrina católica e ortodoxa.
Passastes na minha primeira Confissão, na minha primeira Comunhão, em
todos os momentos em que vacilei e me amparastes, em todos os momentos
em que caí e me reerguestes, em todos os momentos em que pedi e me
atendestes.
E eu, Senhor? Ainda agora, passais por mim neste
exercício da Via-Sacra. O que faço quando Vós passais por mim?
Pater Noster. Ave Maria. Gloria Patri.
V. Miserére nostri Dómine. R. Miserére nostri.
V. Fidélium ánimae per misericordiam Dei requiéscant
in pace. R. Amen.
Dir-se-ia, à primeira vista, que prêmio maior jamais
houve na história. Com efeito, que rei teve nas mãos tecido mais
precioso do que aquele Véu? Que general teve bandeira mais augusta? Que
gesto de coragem e dedicação foi recompensado com favor mais
extraordinário?
Entretanto, há uma graça que vale muito mais do que a
de possuir milagrosamente estampada num véu a Santa Face do Salvador. No
Véu, a representação da Face divina foi feita como num quadro. Na Santa
Igreja Católica, Apostólica, Romana ela é feita como num espelho.
Em suas instituições, em sua doutrina, em suas leis,
em sua unidade, em sua universalidade, em sua insuperável catolicidade,
a Igreja é um verdadeiro espelho no qual se reflete nosso Divino
Salvador. Mais ainda, Ela é o próprio Corpo Místico de Cristo.
E nós, todos nós, temos a graça de pertencer à
Igreja, de sermos pedras vivas da Igreja!
Como devemos agradecer este favor! Não nos
esqueçamos, porém, de que noblesse oblige. Pertencer à Igreja é
coisa muito alta e muito árdua. Devemos pensar como a Igreja pensa,
sentir como a Igreja sente, agir como a Igreja quer que procedamos em
todas as circunstâncias de nossa vida. Isto supõe um senso católico
real, uma pureza de costumes autêntica e completa, uma piedade profunda
e sincera. Em outros termos, supõe o sacrifício de uma existência
inteira.
E qual é o prêmio? Christianus alter Christus.
Eu serei de modo exímio uma reprodução do próprio Cristo. A semelhança
de Cristo se imprimirá, viva e sagrada, em minha própria alma.
Ah, Senhor, se é grande a graça concedida à Verônica,
quanto maior é o favor que a mim me prometeis!
Peço-Vos força e resolução para, por meio de uma
fidelidade a toda prova, verdadeiramente o alcançar.
Pater Noster. Ave Maria. Gloria Patri.
V. Miserére nostri Dómine. R. Miserére nostri.
V. Fidélium ánimae per misericordiam Dei requiéscant
in pace. R. Amen.
Cair, estirar-se ao longo do chão, ficar aos pés de
todos, dar pública manifestação de já não ter força, são estas as
humilhações a que Vos quisestes sujeitar, Senhor, para minha lição. De
Vós ninguém se condoeu. Redobraram as injúrias e os maus tratos. E
enquanto isto vossa graça solicitava em vão, no íntimo daqueles corações
empedernidos, um movimento de piedade.
Mesmo neste momento, quisestes continuar vossa Paixão
para salvar os homens. Que homens? Todos, inclusive os que ali estavam,
aumentando de todos os modos a vossa dor.
Em meu apostolado, Senhor, deverei continuar mesmo
quando todas as minhas obras estiverem por terra, mesmo quando todos se
conjugarem para atacar-me, mesmo quando a ingratidão e a perversidade
daqueles a quem quis fazer bem se voltem contra mim.
Não terei a fraqueza de mudar de caminho para
agradá-los. Minhas vias só podem ser as vossas, isto é, as vias da
ortodoxia, da pureza, da austeridade. Mas, nos vossos caminhos sofrerei
por eles. E unidas as minhas dores imperfeitas à vossa dor perfeita, à
vossa dor infinitamente preciosa, continuarei a lhes fazer bem. Para que
se salvem, ou para que as graças rejeitadas se acumulem sobre eles como
brasas ardentes, clamando por punição. Foi o que fizestes com o povo
deicida, e com todos aqueles que até o fim Vos rejeitaram.
Pater Noster. Ave Maria. Gloria Patri.
V. Miserére nostri Dómine. R. Miserére nostri.
V. Fidélium ánimae per misericordiam Dei requiéscant
in pace. R. Amen.
Não faltaram então almas boas, que percebiam a
enormidade do pecado que se praticava, e temiam a justiça divina.
Não presencio eu algum pecado assim? Hoje em dia, não
é bem verdade que o Vigário de Cristo é desobedecido, abandonado,
traído? Não é bem verdade que as leis, as instituições, os costumes são
cada vez mais hostis a Jesus Cristo? Não é bem verdade que se constrói
todo um mundo, toda uma civilização baseada sobre a negação de Jesus
Cristo? Não é bem verdade que Nossa Senhora falou em Fátima apontando
todos estes pecados e pedindo penitência?
Entretanto, onde está essa penitência? Quantos são os
que realmente vêem o pecado e procuram apontá-lo, denunciá-lo,
combatê-lo, disputar-lhe passo a passo o terreno, erguer contra ele toda
uma cruzada de idéias, de atos, de viva força se necessário for? Quantos
são capazes de desfraldar o estandarte da ortodoxia absoluta e sem jaça,
nos próprios lugares onde campeia a impiedade, ou a piedade falsa?
Quantos são os que vivem em união com a Igreja este momento que é
trágico como trágica foi a Paixão, este momento crucial da História, em
que uma humanidade inteira está escolhendo por Cristo ou contra Cristo?
Ah, meu Deus, quantos míopes que preferem não ver nem
pressentir a realidade que lhes entra olhos adentro! Quanta calmaria,
quanto bem-estar miúdo, quanta pequena delícia rotineira! Quanto
saboroso prato de lentilhas a comer!
Dai-me, Jesus, a graça de não ser deste número. A
graça de seguir vosso conselho, isto é, de chorar por nós e pelos
nossos. Não de um choro estéril, mas de um pranto que se verte aos
vossos pés, e que, fecundado por Vós, se transforma para nós em perdão,
em energias de apostolado, de luta, de intrepidez.
Pater Noster. Ave Maria. Gloria Patri.
V. Miserére nostri Dómine. R. Miserére nostri.
V. Fidélium ánimae per misericordiam Dei requiéscant
in pace. R. Amen.
Estais, Senhor meu, mais cansado, mais depauperado,
mais chagado, mais exangue do que nunca. Que Vos espera? Chegastes ao
termo? Não. Precisamente o pior está para suceder. O crime mais atroz
ainda está para ser praticado. As dores maiores ainda estão por serem
sofridas. Estais por terra pela terceira vez e, entretanto, tudo isto
que ficou para trás não é senão um prefácio. E eis que Vos vejo
novamente movendo este Corpo que é todo ele uma chaga. O que parecia
impossível se opera, e mais uma vez Vos pondes de pé lentamente, se bem
que cada movimento seja para Vós mais uma dor. Eis-Vos, Senhor, ereto
ainda uma vez... com vossa Cruz. Soubestes encontrar novas forças, novas
energias, e continuais. Três quedas, três lições iguais de perseverança,
cada qual mais pungente e mais expressiva que a outra.
Por que tanta insistência? Porque é insistente nossa
covardia. Resolvemo-nos a tomar nossa cruz, mas a covardia volta sempre
à carga. E para que ela ficasse sem pretextos em nossa fraqueza,
quisestes Vós mesmo repetir três vezes a lição.
Sim, nossa fraqueza não pode servir-nos de pretexto.
A graça, que Deus nunca recusa, pode o que as forças meramente naturais
não poderiam.
Deus quer ser servido até o último alento, até a
extenuação da última energia, e multiplica nossas capacidades de sofrer
e de agir, para que nossa dedicação chegue aos extremos do imprevisível,
do inverossímil, do miraculoso. A medida de amar a Deus consiste em
amá-Lo sem medidas, disse São Francisco de Sales. A medida de lutar por
Deus consiste em lutar sem medidas, diríamos nós.
Eu, porém, como me canso depressa! Nas minhas obras
de apostolado, o menor sacrifício me detém, o menor esforço me causa
horror, a menor luta me põe em fuga. Gosto do apostolado, sim. De um
apostolado inteiramente conforme com minhas preferências e fantasias, a
que me entrego quando quero, como quero, porque quero. E depois julgo
ter feito a Deus uma imensa esmola.
Mas Deus não se contenta com isto. Para a Igreja,
quer Ele toda a minha vida, quer organização, quer sagacidade, quer
intrepidez, quer a inocência da pomba mas a astúcia da serpente, a
doçura da ovelha mas a cólera irresistível e avassaladora do leão. Se
for preciso sacrificar carreira, amizades, vínculos de parentesco,
vaidades mesquinhas, hábitos inveterados, para servir a Nosso Senhor,
devo fazê-lo. Pois que este passo da Paixão me ensina que a Deus devemos
dar tudo, absolutamente tudo, e depois de ter dado tudo ainda devemos
dar nossa própria vida.
Pater Noster. Ave Maria. Gloria Patri.
V. Miserére nostri Dómine. R. Miserére nostri.
V. Fidélium ánimae per misericordiam Dei requiéscant
in pace. R. Amen.
Tudo, sim, absolutamente tudo. Até vergonha devemos
sofrer por amor de Deus e para a salvação das almas.
Aí está a prova. O Puro por excelência foi despido, e
os impuros O escarneceram em sua pureza. E Nosso Senhor resistiu às
chacotas da impureza.
Não parece insignificante que resista à chacota quem
já resistiu a tantos tormentos? Entretanto, mais esta lição nos era
necessária. Pelo desprezo de uma criada, São Pedro negou. Quantos homens
terão abandonado Nosso Senhor pelo medo do ridículo! Pois se há gente
que vai à guerra expor-se a tiros e morte, para não ser escarnecida como
covarde, não é bem exato que há certos homens que têm mais medo de um
riso do que de tudo?
O Divino Mestre enfrentou o ridículo. E nos ensinou
que nada é ridículo quando está na linha da virtude e do bem.
Ensinai-me, Senhor, a refletir em mim a majestade de
vosso Semblante e a força de vossa perseverança, quando os ímpios
quiserem manejar contra mim a arma do ridículo.
Pater Noster. Ave Maria. Gloria Patri.
V. Miserére nostri Dómine. R. Miserére nostri.
V. Fidélium ánimae per misericordiam Dei requiéscant
in pace. R. Amen.
A impiedade escolheu para Vós, meu Senhor, o pior dos
tormentos finais. O pior, sim, pois que é o que faz morrer lentamente, o
que produz sofrimentos maiores, o que mais infamava, porque era
reservado aos criminosos mais abjetos. Tudo foi aparelhado pelo inferno
para Vos fazer sofrer, quer na alma, quer no corpo. Este ódio imenso não
contém para mim alguma lição? Ai de mim, que jamais a compreenderei
suficientemente se não chegar a ser santo. Entre Vós e o demônio, entre
o bem e o mal, entre a verdade e o erro, há um ódio profundo,
irreconciliável, eterno. As trevas odeiam a luz, os filhos das trevas
odeiam os filhos da luz, a luta entre uns e outros durará até a
consumação dos séculos, e jamais haverá paz entre a raça da Mulher e a
raça da Serpente... Para que se compreenda a extensão incomensurável, a
imensidade deste ódio, contemple-se tudo quanto ele ousou fazer. É o
Filho de Deus que aí está, transformado, na frase da Escritura, em um
leproso no qual nada existe de são, num ente que se contorce como um
verme sob a ação da dor, detestado, abandonado, pregado numa cruz entre
dois vulgares ladrões. O Filho de Deus: que grandeza infinita,
inimaginável, absoluta, se encerra nestas palavras! Eis, entretanto, o
que o ódio ousou contra o Filho de Deus!
E toda a História do mundo, toda a História da Igreja
não é senão esta luta inexorável entre os que são de Deus e os que são
do demônio, entre os que são da Virgem e os que são da serpente. Luta na
qual não há apenas equívoco da inteligência, nem só fraqueza, mas também
maldade, maldade deliberada, culpada, pecaminosa, nas hostes angélicas e
humanas que seguem a Satanás.
Eis o que precisa ser dito, comentado, lembrado,
acentuado, proclamado, e mais uma vez lembrado aos pés da Cruz. Pois que
somos tais, e o liberalismo a tal ponto nos desfigurou, que estamos
sempre propensos a esquecer este aspecto imprescindível da Paixão.
Conhecia-o bem a Virgem das Virgens, a Mãe de todas
as dores, que junto de seu Filho participava da Paixão. Conhecia-o bem o
Apóstolo virgem que aos pés da Cruz recebeu Maria como Mãe, e com isto
teve o maior legado que jamais foi dado a um homem receber. Porque há
certas verdades que Deus reservou para os puros, e nega aos impuros.
Minha Mãe, no momento em que até o bom ladrão mereceu
perdão, pedi que Jesus me perdoe toda a cegueira com que tenho
considerado a obra das trevas que se trama em redor de mim.
Pater Noster. Ave Maria. Gloria Patri.
V. Miserére nostri Dómine. R. Miserére nostri.
V. Fidélium ánimae per misericordiam Dei requiéscant
in pace. R. Amen.
Chegou por fim o ápice de todas as dores. É um ápice
tão alto, que se envolve nas nuvens do mistério. Os padecimentos físicos
atingiram seu extremo. Os sofrimentos morais alcançaram seu auge. Um
outro tormento deveria ser o cume de tão inexprimível dor: "Meu Deus,
meu Deus, por que Me abandonastes?" De um certo modo misterioso, o
próprio Verbo Encarnado foi afligido pela tortura espiritual do
abandono, em que a alma não tem consolações de Deus. E tal foi este
tormento, que Ele, de quem os Evangelistas não registraram uma só
palavra de dor, proferiu aquele brado lancinante: "Meu Deus, meu
Deus, por que Me abandonastes?"
Sim, por quê? Por que, se era Ele a própria
inocência? Abandono terrível, seguido da morte e da perturbação de toda
a natureza. O sol se velou. O Céu perdeu seu esplendor. A Terra
estremeceu. O véu do Templo de rasgou. A desolação cobriu todo o
universo.
Por quê? Para remir o homem. Para destruir o pecado.
Para abrir as portas do Céu. O ápice do sofrimento foi o ápice da
vitória. Estava morta a morte. A Terra purificada era como um grande
campo desbastado, para que sobre ela se edificasse a Igreja.
Tudo isto foi, pois, para salvar. Salvar os homens.
Salvar este homem que sou eu. Minha salvação custou todo este preço. E
eu não regatearei mais sacrifício algum para assegurar salvação tão
preciosa. Pela água e pelo Sangue que verteram de vosso divino Lado,
pela Chaga de vosso Coração, pelas dores de Maria Santíssima, Jesus,
dai-me forças para me desapegar das pessoas, das coisas que me possam
distanciar de Vós. Morram hoje, pregadas na Cruz, todas as amizades,
todos os afetos, todas as ambições, todos os deleites que de Vós me
separavam.
Pater Noster. Ave Maria. Gloria Patri.
V. Miserére nostri Dómine. R. Miserére nostri.
V. Fidélium ánimae per misericordiam Dei requiéscant
in pace. R. Amen.
O
repouso do Sepulcro Vos aguarda, Senhor. Nas sombras da morte, abris o
Céu aos justos do limbo, enquanto na Terra, em torno de vossa Mãe, se
reúnem uns poucos fiéis para Vos tributar honras funerárias. Há no
silêncio destes instantes uma primeira claridade de esperança que nasce.
Estas primeiras homenagens que Vos são prestadas são o marco inaugural
de uma série de atos de amor da humanidade redimida, que se prolongarão
até o fim dos séculos.
Quadro de dor, de desolação, mas de muita paz. Quadro
em que se pressagia algo de triunfal nos cuidados indizíveis com que
vosso divino Corpo é tratado.
Sim, aquelas almas piedosas se condoíam, mas algo
nelas lhes fazia pressentir em Vós o Triunfador glorioso.
Possa eu também, Senhor, nas grandes desolações da
Igreja, ser sempre fiel, estar presente nas horas mais tristes,
conservando inabalável a certeza de que vossa Esposa triunfará pela
fidelidade dos bons, pois que A assiste a vossa proteção.
Pater Noster. Ave Maria. Gloria Patri.
V. Miserére nostri Dómine. R. Miserére nostri.
V. Fidélium ánimae per misericordiam Dei requiéscant
in pace. R. Amen.
Correu-se a laje. Parece tudo acabado. É o momento em
que tudo começa. É o reagrupamento dos Apóstolos. É o renascer das
dedicações, das esperanças. A Páscoa se aproxima.
Ao mesmo tempo, o ódio dos inimigos ronda em torno do
sepulcro e de Maria Santíssima e dos Apóstolos.
Mas Eles não temem. E em pouco raiará a manhã da
Ressurreição.
Possa também eu, Senhor Jesus, não temer. Não temer
quando tudo parecer perdido irremediavelmente. Não temer quando todas as
forças da Terra parecerem postas em mãos de vossos inimigos. Não temer
porque estou aos pés de Nossa Senhora, junto da qual se reagruparão
sempre, e sempre mais uma vez, para novas vitórias, os verdadeiros
seguidores da vossa Igreja.
Pater Noster. Ave Maria. Gloria Patri.
V. Miserére nostri Dómine. R. Miserére nostri.
V. Fidélium ánimae per misericordiam Dei requiéscant
in pace. R. Amen.
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