Plinio Corrêa de Oliveira
Prefácio à biografia do
Venerável Pierre Toussaint
Março de 1992 |
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"Memoir of Pierre Toussaint, Born a Slave in St. Domingo", de autoria de Hannah Sawyer Lee, Western Hemisphere Cultural Society, Sunbury (Penn., USA), 1992, difundido pela TFP norte-americana (www.tfp.org).
Aparece em boa hora, nos Estados
Unidos, a presente biografia de Pierre Toussaint.
Sua figura, que teve em outros
tempos merecida notoriedade na cidade de Nova York, na qual ele exerceu
sucessivamente as profissões de cabeleireiro de senhoras e de agente de
colocação para empregadas domésticas, se esvaiu na memória dos
novaiorquinos com o curso das gerações, em virtude da rapidez
vertiginosa das atividades, na imensa urbe norte-americana.
Mas os exemplos que ele deixou
durante sua vida merecem ser lembrados, pois dão margem a profundas
reflexões morais e sociais para todos os tempos. E altamente oportunas em
nossos dias.
A época em que Toussaint viveu
(1766-1853) foi sacudida por violentos acontecimentos internacionais,
precisamente como o é a nossa. A Revolução Francesa, fundamentalmente
atéia, tem sido qualificada, de modo merecido, como precursora do
comunismo. Ela estourou em 1789 na França, sendo Rei o apático e
indolente Luís XVI. Naquele país a Revolução se propagou de forma
violenta em todo território e a partir daí contagiou a vários países
da Europa.
Tais acontecimentos sacudiram a
Europa, mas também tiveram na América uma danosa repercussão.
Quando, em 1794, a terrível fase
do Terror cessou, muitos esperaram que o Velho Continente voltasse à sua
tranqüilidade anterior. Não foi o que aconteceu. Pois a Revolução,
deixando de se tornar diretamente destrutiva no plano material dos fatos,
nem por isso deixou de existir e de se propagar cada vez mais pela Europa
afora, no campo ideológico. Com efeito, os regimes sucessivos do Diretório
(1795), do Consulado (1799) e do Império (1804-1815) não foram senão
formas metamorfoseadas da Revolução Francesa. Inspiraram-se nos mesmos
princípios errôneos, e estavam devorados pelo mesmo desejo de pregar os
seus erros a todo mundo. Mesmo quando Napoleão, proclamando-se Imperador
dos franceses, coroou a si próprio na igreja de Notre Dame em Paris
(1804), seu regime inautênticamente monárquico não foi senão uma
metamorfose a mais da Revolução Francesa.
Com efeito, a ordem de coisas que
ele impôs à França, pacífica na aparência, foi de fato a consolidação
das modificações subversivas que os revolucionários de 1789 haviam
introduzido naquele país. De outro lado, dirigindo por toda a Europa
guerras de conquista que se estenderam desde Lisboa até Moscou, e que
produziram abalos desde Estocolmo até Nápoles, levaram o Imperador a
impor, por toda parte onde ele entrava, leis revolucionárias que
subvertiam a ordem antiga em nome dos princípios de liberdade, igualdade,
fraternidade. Princípios esses que, entendidos à maneira dos revolucionários
franceses, não eram senão precursores do comunismo. Por essa razão,
foram eles severamente condenados pelo Papa Pio VI no Consistório Secreto
de 17 de junho de 1793, no qual disse, confirmando as palavras da Encíclica
Inscrutabile Divinae Sapientiae, de 25 de dezembro de 1775:
"Estes perfidíssimos filósofos
acometem isto ainda: dissolvem todos aqueles vínculos pelos quais os
homens se unem entre si e aos seus superiores e se mantêm no cumprimento
do dever. E vão clamando e proclamando até à náusea que o homem nasce
livre e não está sujeito ao império de ninguém; e que, por
conseguinte, a sociedade não passa de um conjunto de homens estúpidos,
cuja imbecilidade se prosterna diante dos sacerdotes (pelos quais são
enganados) e diante dos reis (pelos quais são oprimidos); de tal sorte
que a concórdia entre o sacerdócio e o império outra coisa não é que
uma monstruosa conspiração contra a inata liberdade do homem (Encíclica
Inscrutabile Divinae Sapientiae). A esta falsa e mentirosa palavra
Liberdade, esses jactanciosos patronos do gênero humano atrelaram outra
palavra igualmente falaz, a Igualdade. Isto é, como se entre os homens
que se reuniram em sociedade civil, pelo fato de estarem sujeitos a
disposições de ânimo variadas e se moverem de modo diverso e incerto,
cada um segundo o impulso de seu desejo, não devesse haver alguém que,
pela autoridade e pela força prevaleça, obrigue e governe, bem como que
chame aos deveres os que se conduzem de modo desregrado, a fim de que a própria
sociedade, pelo ímpeto tão temerário e contraditório de incontáveis
paixões, não caia na Anarquia e se dissolva completamente; à semelhança
do que se passa com a harmonia, que se compõe da conformidade de muitos
sons, e que se não consiste numa adequada combinação de cordas e vozes,
esvai-se em ruídos desordenados e completamente dissonantes" (Pii VI
Pont. Max. Acta, Typis S. Congreg. de Propaganda Fide, Roma, 1871, vol. II,
pp. 26-27). * * *
A França era então senhora das
ilhas Martinica, Guadalupe e São Domingos (atual Haiti). Essas possessões
caribenhas, então prósperas e tranqüilas, sofreram a fundo os abalos da
Revolução Francesa. Os escravos e os colonos se levantaram contra os
seus senhores e patrões com o intuito de suprimir a classe deles, assim
como na metrópole fora supressa a nobreza.
Entre as famílias prósperas de São
Domingos figurava a de Jean Bérard du Pithon. E, entre os escravos desta,
Pierre Toussaint.
Tratava-se de um negro que tinha
apenas 21 anos quando os abalos da Revolução levaram a família a
refugiar-se em Nova York, para onde Toussaint seguiu. Começa, então, a
sua verdadeira história.
Com efeito, num primeiro momento
essa família, pertencente à nobreza, viveu folgadamente em Nova York,
das economias que levara consigo. Precisamente como fizeram muitos dos
emigrados franceses que depois da queda da Bastilha (1789) em Paris
partiram para o Exterior, levando as quantias de dinheiro que tinham à mão
– animados pela certeza de que a Revolução demoraria pouco –, também
a família Bérard du Pithon esperava voltar prontamente a São Domingos,
julgando que a revolução seria efêmera. Uns e outros se enganaram, e,
esgotados os recursos financeiros, se viram em breve em graves complicações.
A família Bérard teve, pois, de
reduzir consideravelmente o nível de sua representação social,
sentindo-se ameaçada de ter que recorrer a empregos incompatíveis com
sua condição, para subsistir.
Foi nessa triste conjuntura que, após
onze anos de um feliz consórcio, faleceu em 1791 o Sr. Jean Bérard,
deixando viúva a aristocrática Marie Elisabeth Bossard Roudanes. Esta
teve que enfrentar, sozinha e ademais servida por uma saúde precária, as
condições adversas que se lhe deparavam.
Mas a mão da Providência velava
por ela. A "mão da Providência": formosa metáfora para
designar o desvelo com que Deus acompanha a existência de suas criaturas,
e as socorre. Habitualmente a iconografia a representa como uma mão alva
e benfazeja; no caso concreto, a "mão da Providência" era uma
mão negra: a mão de Pierre Toussaint.
Realmente este modesto escravo –
que poderia tão bem tentar esquivar-se, nos Estados Unidos, do jugo de
sua dona – pelo contrário procedeu em relação a ela com uma dedicação
e uma delicadeza de sentimentos que poucos filhos têm até mesmo em relação
à sua própria mãe.
Seguindo um programa abnegado, cujo
cumprimento ele levou até o fim, Pierre Toussaint deliberou trabalhar ele
próprio para que a sua ama não perdesse em nada as condições sociais e
o conforto de vida que correspondiam à educação que recebera.
Para isso, habilitou-se a exercer,
na pequena mas já rica Nova York de então, o ofício de cabeleireiro das
senhoras da alta sociedade. Imaginoso, e dotado de bom gosto, inventava
ele fórmulas variadas de penteado, muito do agrado das suas opulentas
clientes, que lhe pagavam, pois, a bom preço, o serviço. Em pouco tempo,
Toussaint passou a ser disputado por todas as senhoras ricas de Nova York,
obtendo por esta forma os recursos necessários para manter a sua ama.
Entretanto, ele o fez com tal
habilidade, que conseguiu ocultar-lhe que era de seu trabalho que
provinham os recursos de que ela vivia. E isto sem mentir, pois Toussaint
era muito veraz e, como católico fervoroso que diariamente assistia a
Santa Missa – a comunhão diária só passou a ser um hábito dos católicos
fervorosos depois do pontificado de São Pio X (1904-1914) –, Toussaint
evitava qualquer ação que transgredisse os Mandamentos da Lei de Deus.
Todo dia o viam, pela manhã, muito cedo, antes de começar o seu serviço,
ir à Igreja de São Pedro, na Rua Barclay, onde rezava o seu rosário. E
era depois disto que começavam suas atividades profissionais.
Com as condições criadas por
Toussaint, a saúde da Sra. Bérard, que se encontrava abalada, lentamente
se foi restabelecendo, e ela pôde reabrir seus salões.
Toussaint, que durante o dia
trabalhava como cabeleireiro, à noite funcionava como espontâneo copeiro
e, eximiamente trajado, com maneiras muito gentis e aprazíveis, servia
todos os convidados de sua ama.
Entrementes, um refugiado francês
chamado Gabriel Nicolas, hábil músico, cujo talento lhe proporcionara
vida abastada em Nova York, obteve a mão da viúva Bérard, que se tornou
assim Sra. Nicolas.
Aliviada embora por algum tempo com
o novo casamento, o infortúnio voltou a visitar a nobre dama. Com efeito,
em decorrência de uma abstrusa legislação, vários teatros
novaiorquinos foram fechados, com o que desapareceu a principal fonte de
recursos do marido. A fidelidade de Toussaint, entretanto, foi o seu
amparo.
Prosseguiu ele em sua tarefa junto
às senhoras da alta sociedade de Nova York, sobre as quais exercia uma
influência benfazeja. Conversavam, durante o serviço, sobre vários
assuntos, e em tudo ele respondia com tanto acerto e fazia comentários tão
judiciosos, que muitas o tomaram como conselheiro, tendo o hábito de
pedir sua opinião sobre problemas pessoais delicados. Algumas chegavam a
ir à residência dele quando, surpreendidas por algum problema novo,
precisavam receber com urgência de Toussaint a solução judiciosa que
esperavam.
Como se pode imaginar, Toussaint
acumulava recursos. E com estes, poderia adquirir a sua própria
liberdade. Mas, sempre modelar na sua abnegação, preferiu continuar na
condição de escravo, e comprar a liberdade da própria irmã, que com
ele viera de São Domingos! A sua liberdade, Toussaint só a adquiriu
muito depois, em 1807, aos 41 anos.
Com efeito, em julho daquele ano,
pouco antes de morrer, a Sra. Nicolas fez questão de, em comum acordo com
o esposo, conceder a alforria a Toussaint.
E 1811, Toussaint casou-se. E, sem
cessar de prestar seus serviços ao Sr. Nicolas, manteve seu próprio lar.
Foi marido modelar, e a morte de sua esposa, ocorrida em 1851, dois anos
antes da dele, foi para Toussaint um golpe moral do qual ele nunca se
refez inteiramente. A partir dessa ocasião sua saúde, até então
florescente, começou a decair. Pode-se medir por aí a riqueza de
sentimentos de Toussaint.
Essa riqueza de sentimentos chega
quase ao inimaginável. Uma parte da família Bérard se tinha disperso na
Europa, com a Revolução Francesa. Depois, quando caiu o Terror, e os
emigrados começaram a voltar, Toussaint envidou esforços para saber se
esses entes queridos sobreviviam, onde e como.
Qual não foi seu contentamento
quando, através de uma senhora francesa de passagem por Nova York e a
quem Toussaint fora atender, tomou conhecimento de que Aurora Bérard, irmã
de seu antigo senhor e sua madrinha de batismo, não havia morrido, como
supunha, e vivia em Paris. Ela lhe escreveu uma primeira carta tão logo
soube do afilhado, carta que Toussaint respondeu enviando-lhe junto uma dúzia
de lenços de Madras, altamente apreciados pelas damas francesas da época.
Toussaint entreteve longa correspondência com a madrinha, que só cessou
com a morte desta, ocorrida em 1834.
Por sua vez, o primogênito do
casal Bérard, que também sobrevivia em Paris, foi objeto dos desvelos
epistolares de Toussaint.
Como vê o leitor, não se pode
imaginar uma dedicação mais modelar.
Mas a vida de todos os homens é
sacudida por tufões. Estes não faltaram na existência de Toussaint. Um
deles foi uma brusca mudança na moda dos penteados femininos, pelos quais
eles se tornaram muito mais simples, com o que seus serviços
profissionais ficaram desnecessários às suas opulentas clientes. Isto
poderia ter representado para Toussaint uma completa derrocada. Porém
ele, muito habilidoso e jeitoso em tudo, não se deixou abater. Criou logo
um escritório de empregos de domésticas. E a sua influência pessoal era
tão grande que as candidatas a empregos e as casas à procura de
empregadas afluíram em torno dele. Com este novo trabalho, que ele
exerceu com o mesmo primor com que exerceu o primeiro, Toussaint continuou
a manter-se a si e a sua ama, bem como a sua esposa.
* * *
Estes fatos são uma verdadeira
epopéia da dedicação de uma alma católica para com seus familiares,
bem como para com seus amos. Epopéia realizada de modo tão dedicado e ao
mesmo tempo tão brilhante que fazem da vida de Toussaint um inocente mas
atraentíssimo romance. Porém a vida dele contém muito mais elementos próprios
a nos atrair a atenção e servir de tema para altas reflexões de caráter
moral. Tudo isto o leitor encontrará lendo e refletindo detidamente sobre
esta biografia, editada pela Western Hemisphere Society.
Sinceramente lhe aconselhamos que o
faça.
Uma reflexão capital, entretanto,
se apresenta aos nossos olhos. É a antítese fulgurante entre Toussaint e
o igualitarismo radical moderno do qual o comunismo foi uma característica
expressão. Colhido ainda muito jovem pelas labaredas de uma revolução
social que o incitava a revoltar-se contra seus donos, e de outro lado
tendo nascido na dura condição de escravo, Toussaint teria tido fáceis
meios para se libertar desse jugo. Bastar-lhe-ia ter aderido ao movimento
revolucionário que um homônimo seu, Toussaint l'Ouverture, chefiou com
êxito durante muito tempo. Toussaint l'Ouverture foi uma pequena pré-figura
do tão censurável Fidel Castro, o qual levou a revolução social e política
em Cuba até os últimos extremos. E que, depois de 30 anos de uma cruel
ditadura, ainda mantém na miséria e sob os ferros de um verdadeiro
cativeiro a população da Ilha outrora evangelizada pelo grande Santo
Antonio Maria Claret e merecidamente qualificada, por suas belezas
naturais, a Pérola das Antilhas.
Enquanto o comunismo é ateu,
Toussaint era modelo de homem crente e piedoso. Ele aderia, como já
dissemos, a toda a doutrina católica, apostólica, romana e lhe cumpria
fervorosamente os Mandamentos.
De outro lado, a Revolução
comunista é fundamentalmente igualitária e prega o ódio contra todos os
superiores. Toussaint foi o paradigma do homem de espírito hierárquico,
que amou os seus superiores, segundo preceitua o IV Mandamento:
"Honrar pai e mãe". E, enquanto o brado de revolta do comunismo
poderia perfeitamente condensar-se na exclamação de revolta de satanás
"Non serviam", a vida de Toussaint, pelo contrário, resumia-se
nesta palavra que seria digna de um São Miguel Arcanjo:
"serviam". Ele serviu. Serviu aos seus familiares, serviu aos
seus patrões, serviu aos seus clientes, serviu a todos a quem pôde fazer
bem; e ele o fez larga e generosamente. A quem menos ele serviu foi a si
próprio. O feroz egoísmo que Marx procurou insuflar em cada um de seus
seguidores era bem exatamente o contrário do espírito abnegado e
generoso de Toussaint.
Nesta época, pois, Toussaint nos
aparece como um homem que, tendo embora poucas letras, penetrava
entretanto tão bem o espírito da Igreja Católica que, diante do fenômeno
das desigualdades sociais, aceitava inteiramente a doutrina de São Tomás
de Aquino.
Consiste muito resumidamente essa
doutrina em que as desigualdades harmônicas e ponderadas não são um
mal, mas pelo contrário são um bem. São uma condição de ordem, nesta
terra como no Céu. O grande Doutor da Igreja diz que, ao proceder à criação
do universo, Deus era necessariamente movido pelo propósito de fazer
desse universo um reflexo de suas próprias perfeições. Mas que, sendo
essas perfeições múltiplas e infinitas, não havia uma criatura que as
pudesse refletir todas, ao mesmo tempo. Razão pela qual Ele deu o ser a várias
criaturas, incumbidas cada qual de refletir um aspecto de sua perfeição.
Ademais, as perfeições comportam,
nas criaturas, vários graus. E é por meio de perfeições graduadas que
as criaturas melhor refletem a perfeição absoluta que é Deus.
Nessas condições, por sua vez, os
homens – como aliás também os Anjos – foram criados desiguais. Essa
desigualdade é uma condição para que eles reflitam adequadamente a
Deus.
Afirma o Doutor Angélico, São Tomás
de Aquino, na Suma Teológica:
"Nos seres naturais vemos que
as espécies são gradativamente ordenadas: assim, os compostos são mais
perfeitos do que os elementos, as plantas do que os minerais, os animais
do que as plantas e os homens do que os outros animais; e em cada uma
dessas classes encontram-se espécies mais perfeitas do que as outras.
Sendo, pois, a divina sabedoria a causa da distinção das coisas para a
perfeição do universo, também será causa da sua desigualdade. Pois não
seria perfeito o universo se nas coisas só se encontrasse um grau de
bondade" (Suma Teológica I, q. 47, a. 2).
Assim, as criaturas são
necessariamente múltiplas. E não apenas múltiplas, mas também
necessariamente desiguais. É essa a doutrina do Santo Doutor:
"Muitos bens finitos são
melhores do que um só, pois eles teriam o que tem este, e ainda mais.
Ora, é finita a bondade de toda criatura, pois é deficitária da
infinita bondade de Deus. Logo é mais perfeito o universo havendo muitas
criaturas, do que se houvesse um único grau delas. Ao sumo Bem toca fazer
o que é melhor. Logo, era-Lhe conveniente fazer muitos graus de
criaturas.
"Ademais, a bondade da espécie
excede a do indivíduo, como o formal excede o material; logo, mais
acrescenta à bondade do universo a multiplicidade das espécies, do que a
dos indivíduos de uma mesma espécie. Por isso, à perfeição do
universo contribui não só haver muitos indivíduos, mas haver diferentes
espécies e, por conseguinte, diferentes graus de coisas" (Suma
contra os gentios, Livro II, cap. 45).
Intrinsecamente, portanto, a
desigualdade não é um mal. Ela é um bem. E a igualdade absoluta é,
pelo contrário, um mal. Foi por se terem voltado para essa igualdade
absoluta que os anjos rebeldes se levantaram contra Deus, quando este lhes
revelou a Encarnação do Verbo, e a superioridade que sobre eles teria,
portanto, Nosso Senhor Jesus Cristo.
Pelo contrário, São Miguel
Arcanjo, resistindo ao brado de revolta de Satanás, proclamou a santidade
e a perfeição de um universo fundamentalmente desigual como é o dos
Anjos.
Profunda e admirável lição para
os homens contemporâneos que, em sua grande maioria, tantas vezes são
penetrados pelo espírito da igualdade completa, ainda mesmo quando não a
pratiquem em suas ações. E que, tantas e tantas vezes, se revoltam
contra aqueles a quem devem amor, respeito e obediência: seus pais,
mestres, patrões, e demais pessoas constituídas em autoridade na esfera
política, como na social e econômica.
Bem entendido, essa apologia da
desigualdade não importa em elogiar todas as desigualdades, inclusive as
injustas. No que diz respeito aos direitos inerentes à natureza humana, e
que tocam a todo homem como homem, todos são iguais, pois todos são
homens. Mas, na medida em que os homens são acidentalmente desiguais, é
preciso respeitar essas desigualdades, amá-las e servi-las. Essa é a
grande lição que recebemos de Pierre Toussaint e cuja meditação e
imitação recomendamos a todos os leitores da presente obra.
Em nosso continente, em que tantas
vezes as lutas raciais têm trazido discórdias e divisões lamentáveis,
esse grande exemplo, que ajuda os católicos a reverenciar um negro tão
digno de todo o seu respeito e amor, contribui para apagar as discórdias
e as desconfianças mútuas entre as raças, e a consolidar assim a concórdia
entre todos os americanos.
* * * Em suma, a vida de Toussaint foi um reflexo remoto, mas luminoso, do preceito enunciado por São Pedro, que mandava aos escravos de seu tempo obedecerem aos seus senhores, não só quando dignos de respeito e afeto como a Sra. Bérard, mas até quando díscolos: "Servi, subditi estote in omni timore dominis, non tantum bonis et modestis, sed etiam dyscolis" (1 Pt. 2, 18). Abaixo, comentários em "Santo do Dia" de 29 de maio de 1991, a respeito do Venerável Pierre Toussaint
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