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O universo é uma catedral

 

 

Segundo horizonte

 

Compare-se a esta frieza de linha e de substância [da arquitetura moderna] – nada mais “frio” que o cimento – o recolhimento, o aconchego, a harmonia das casas velhas de Warwick, cada uma das quais parece considerar o transeunte com um plácido sorriso impregnado de bonomia familiar, e conter em si o calor de uma vida doméstica animada e rica em valores morais. Casas simples, despretensiosas, agradáveis de ver, imagem da própria existência quotidiana de seus habitantes. Casas obedecendo a um mesmo estilo, mas tendo cada uma sua nota de originalidade, discreta e vivaz.

 

Fazendo o turismo do sossego

 

Todas as tardes, feita a sesta, ia eu da calma do campo para a da cidade[9], trocando, não um cansaço pelo outro, mas uma forma de sossego pela outra. E assim fiz meu “turismo do sossego”.

Quando bate o sino, seus sons descem harmônicos e se espraiam na praça ajardinada, onde encontram, nas pessoas e nas coisas, a mesma ressonância dos tempos idos.

O passado ali não embolorou, nem o presente enlouqueceu, nem o futuro amedronta. Vive-se bem, a vida de todos os dias.

 

Duas cidades espelham duas eras

 

 

New YorkA cidade moderna é de contornos imprecisos, é como um tumor que se vai estendendo de lá para cá e para acolá, de maneira tal que numa certa direção ela cresceu muito, e noutra existem ainda parques que vão quase até o seu centro.

A cidade medieval nos dá a impressão de uma moeda bem cunhada. Ela está repleta de casas, num recinto delimitado por um muro e realçado por torres.

O limite é definido e claro: para além do muro, campo; para dentro dele, cidade.

O muro é o resplendor da cidade, que tem em torno de si uma coroa feita de muralhas, assegurando-lhe a possibilidade de se defender por si própria e de manter sua autonomia.

Vista assim em seu conjunto, a cidade dá a impressão de uma caixa de tesouros. Porque o que emerge de dentro dela são coisas preciosas: as torres das igrejas, as pontas das catedrais com as rosáceas e os vitrais, as torres de um ou outro palácio etc. Dir-se-ia que entre suas torres havia uma espécie de competição para atingir o céu.

Muralhas de ÁvilaAs ruelas da cidade medieval estão para os quarteirões de nossos dias, quadrados e cortados em ângulo reto, mais ou menos como a caligrafia está para a datilografia: a letra datilográfica é irrepreensível; a letra manuscrita muitas vezes é irregular; e até feia, mas tem a expressão de uma alma. Esses quadriláteros urbanos, o que exprimem?

As almas dos homens sem alma...

 

É difícil conhecer a Verdade e o Bem quando os sentidos não são tangenciados pela Beleza.

 

A despreocupação, a naturalidade, a intimidade e o aconchego fazem o encanto próprio da vida pequeno-burguesa. E é o que nesta sala se nota.

Ela constitui um mundo fechado.

Dentro dela, o homem se sente numa atmosfera moral específica, inteiramente diversa da rua, para a qual talvez dê a janela, mas que fica psicologicamente a mil léguas do pintor e do modelo.

Ambiente fechado sim. Porém não ambiente vazio e sem vida. Nele penetram várias claridades de várias espécies. Da janela vem uma luz esplêndida, que inunda o modelo e se transforma em suave e inteligente penumbra junto do pintor. Um chão de mármore serve para multiplicá-la um pouco, e dá a este ambiente quase pobre uma nota agradavelmente contraditória, de riqueza e distinção.

Casa da Câmara - Mariana - MGA alma humana precisa de compartimentos fechados em que organize ambientes, feitos segundo suas próprias necessidades, como o corpo precisa de casa e agasalho para não deperecer.

Quem não notará a força, a estabilidade, a lógica da índole portuguesa, neste edifico cheio de bom senso, de equilíbrio e de graça, que é a Casa da Câmara e Cadeia de Mariana, reproduzida nesta página? Entretanto, quem não notará nela a marca brasileira, expressa na simplicidade, numa certa fisionomia de casa de família, numa bonomia especial, sem vulgaridade aliás, que distingue tudo quanto é autenticamente nosso?

Obra cultural complexa, sensata, robusta, produto de gerações inteiras de homens de bom senso e bom gosto – no caso do Brasil, de homens gozando do dom dos dons que é a verdadeira Fé – que nos importa preservar do cosmopolitismo iconoclasta dos dias que correm.

Profeta Ezequiel - Aleijadinho - Congonhas do Campo - MGO olhar de lince de Ezequiel parece transpor os séculos, analisando um futuro remoto, que seus lábios vigorosos estão prontos a anunciar para os homens.

Daniel, tão varonil quanto Ezequiel, tem, entretanto, uma fisionomia mais suave. Seu olhar meditativo parece fitar a paisagem sem vê-la, como se ela tivesse sido interceptada, numa zona ideal do espaço, por todo um mundo de visões augustas e piedosas que deslizam diante dele.Profeta Daniel - Aleijadinho - Congonhas do Campo - MG

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Considerações sobre um chopp sem “colarinho”

 

Eu tinha a idéia – que não sei se era meio infantil ou verdadeira – de que o chopp autêntico deve ser coroado em cima por uma camada, não muito grossa, de espuma.

O chopp que não trouxesse esse colarinho era parecido com uma camisa que não tem colarinho. Essa era uma primeira reserva minha com [aquele] chopp.

Olhando o chopp contra a luz, (...) tinha essas bolinhas de gás muito pequenas e em número pequeno.

Eu achava que uma forte dose de bolhas de certo tamanho eram indispensáveis para preparar a língua a sentir o sabor da bebida.

De onde uma certa reserva minha com aquele chopp.

Tomo um gole do chopp convenientemente gelado – eu não tinha caído no infortúnio de viver fugindo dos gelos, eu gostava de tudo quanto era gelado e ventoso, era sobretudo o grande entusiasta dos ventos; dos ventos, das cervejas e dos gelados.

Tomava um gole daquilo e sentia o gosto muito bom, mas a falta do picante, de um número suficiente daquelas bolhas e falta de colarinho, faziam com que o chopp não tivesse verve.

Não havia conversa com o chopp, era um chopp monótono, nhenhenhém.

Alguns segundos ou minutos depois de bebido o chopp sem embargo desses defeitos, eu notava que restava um sabor na boca que era mais gostoso do que o próprio chopp.

Era por assim dizer o pós-sabor, que era mais ou menos como é para a reflexão o sabor que a conclusão tem alguns minutos depois de ter sido descoberta e concluída. Isso me reconciliava com aquele chopp.

Não há matéria para suportar melhor os encantos, ser portadora dos encantos do glacial do que o chopp. Não há sorvete, não há coisa alguma. O chopp tem um conúbio natural com o gelo que é especial e o relève muito.

Também é verdade que o chopp, como tudo o que existe, é um esboço de um ser ideal que poderia ser mais perfeito.

Ser perfeito significa duas coisas: primeiro, não ter defeitos; em segundo lugar, alçar as qualidades ao máximo.

 

Eu não terei entendido esse chopp se não conseguir imaginar o chopp perfeito. Depois de ter concebido esse chopp perfeito, ver que não estou tomando senão este chopp [em concreto], mas que ele me faz compreender um ser possível que é a alegria de minha vida.

 

Aquela cor do chopp é muito bonita, não há dúvida, mas se ela fosse carregada de um dourado mais consistente... Falta-lhe um pouco de ouro a mais.

De outro lado, o chopp é uma linda morada para a luz. A luz que entra nele e fica, torna-se mais bonita do que dentro da água. Olhe que não é dizer pouco, porque a água, sob certo ponto de vista, seria a morada ideal da luz. Mas não é: o chopp pode ser uma morada mais bela.

Uma vida vivida assim é muito mais entretida. Um menino sentado diante de um copo ou uma caneca de chopp pode muito melhor se entreter do que olhando pela janela estupidamente. Porque um chopp diz muito mais que uma janela.

A caneca de chopp é um comentário dele. Esse comentário não é feito por alguém, mas por um ambiente.

Um conjunto de pessoas sente o mesmo a respeito do chopp e um artista, com mais capacidade de exprimir o que todos sentem, o exprime através de uma caneca.

No chopp eu via a possibilidade de ser muito mais do que era, e esta possibilidade me falava de Deus.

É preciso ir habituando o espírito a degustar deste modo muitas coisas. Uma pessoa que gosta só de chopp, que só sabe interpretar chopp, acaba bêbado. É preciso fazer essa operação de subida para o maravilhoso a respeito de um número grande de assuntos, e então a temperança muito mais normalmente se instala.

 

O inimaginável, esse velho conhecido

 

Catedral de ColôniaSempre que vejo a fachada da Catedral de Colônia, percebo no mais fundo de minha alma o encontro de duas impressões aparentemente contraditórias.

De um lado, é uma realidade tão bela que, se eu não a conhecesse, não seria capaz de sonhá-la.

Mas, de outro lado, algo diz em meu interior: essa catedral deveria mesmo existir!

E essa fachada inimaginável é para mim, ao mesmo tempo, paradoxalmente, uma velha conhecida.

 

O belo é símbolo do bom, e a verdadeira beleza simboliza o bem. Desta maneira, a verdadeira arte simboliza a moral.

O conhecimento completo está numa espécie de vértice, na base do qual estão o conhecimento simbólico e artístico, e o conhecimento abstrato.

 

 

Uma luz que é mãe

A Virgem Azul - Catedral de Chartres - Vitrais O vitral é feito para dar ao homem como que a ilusão de que ele abriu um buraco na pedra e está vendo Deus.

A claridade do vitral é uma claridade tamisada, recolhida, uma claridade irmã ou mãe da alma, em que a alma se sente bem tratada, à vontade para tomar distância e colocar-se no seu prisma próprio para olhar todas as coisas. E não reduzida a todo momento à brutalidade do concreto que a luz comum impõe.

A luz de um vitral é como se um afago materno me tomasse a alma, me circundasse e dissesse:

- “Meu filho, agora seja você mesmo, tome distância de todas as coisas e olhe as coisas à luz de si próprio. Essa luz de si próprio não é a luz de seu egoísmo, é a luz de sua inocência”.

 

Deus estabeleceu misteriosas e admiráveis relações entre certas formas, cores, sons, perfumes, sabores, e certos estados de alma.

 

Belo e Sublime, Sagrado e Sacral

 

O sublime é uma beleza que está fora da proporção do homem; é a beleza da sacralidade.

A sublimidade é o aspecto das pessoas e das coisas por onde elas mais se assemelham a Deus.

O sublime é o ponto terminal de tudo o que é qualidade.

O oxigênio da alma é a sublimidade!

A observação embebida de amor analítico que anseia por exprimir-se é propriamente a contemplação.

Sacro é aquilo que está absolutamente acima de outra coisa.

Para se subir até a sacralidade, é preciso usar a escadaria da desigualdade.

Trata-se de um valor supremo por estar no âmago da noção de religiosidade.

Como o sagrado pertence à Igreja, sacral é o modo de a sociedade temporal ser sagrada.

É a sacralidade que cabe à sociedade temporal; a diluição do sagrado – por assim dizer – que toca ao mundo profano[10].

O mundo profano é susceptível de ser visto e organizado de modo inteiramente sacral, enquanto profano.

 

Amem o que é sublime, que os filhos da sublimidade seguirão seus passos.

 

 

 

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[9] Da fazenda Morro Alto para a vizinha cidade de Amparo, Estado de São Paulo, em 1970.

[10] Sacral, sacralidade: para o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira, a sacralidade tem uma profunda relação com as desigualdades do Universo e se apóia sobre os seguintes princípios:

  1. O Universo – mais ainda, toda a ordem do ser – é hierárquico.

  2. Ele é insondavelmente desigual de um grau para outro, e infinitamente desigual em relação a Deus.

  3. O mais alto, a um ou outro título, é sempre causa, modelo, mestre e regente do mais baixo.

  4.  A título próprio, só Deus é causa, modelo, mestre e regente das criaturas. Portanto, todas as hierarquias se reportam a Deus, que é infinitamente nobre, sublime e elevado.

  5. A escala dos seres é uma escala fechada, no sentido que o mais alto, que é Deus, toca no último, no ínfimo. Deus e as ordens superiores estão, a um ou outro título, presentes nas ordens inferiores. Portanto não se trata de uma ordem estraçalhada e descontínua, mas harmônica, que se fecha.