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O universo é uma catedral

 

 

Quinto horizonte

 

Figuras numa transesfera

 

1

Imperatriz Sissi da Áustria por Winterhalter

A Imperatriz Sissi

A princesa de Metternich[34], embaixatriz da Áustria junto a Napoleão III, conta em suas memórias que presenciou certa vez uma visita da imperatriz da Áustria ao grande Metternich, seu tio.

A soberana era tão majestosa que ela diz ter visto na Imperatriz a própria majestade real.

Tratava-se portanto de uma figura que ela conheceu em concreto, da qual selecionou alguns aspectos, e os relacionou com um conceito abstrato.

E o conceito abstrato ganhou algo em ser relacionado com isto.

Portanto foi tomada uma idéia, e conjugada essa idéia com aparências sensíveis, formando dessa idéia uma como que pessoa. Uma pessoa da transesfera[35].

 

2

Carlos Magno por DürerTalvez o que a figura de Carlos Magno tenha de grandioso e até de incomparável seja que ele nos dá uma idéia tão sublime do homem na mais alta condição que possa ter na ordem temporal – que é a do imperator católico, guerreiro, meio profeta -, ele nos dá uma tão alta idéia disto, que chegamos a entrever um poder imperial maior que o dele, realizado numa ordem maior do que a dele.

Nós consideramos a imperialidade de Carlos Magno e temos entusiasmo. Nesse entusiasmo nós consideramos de fato algo de que ele participa, mas que é maior do que ele, e que seria, na ordem dos possíveis[36], o imperator perfeito, mas que ainda não é Deus, é uma criatura. É uma criatura possível. Isto facilita depois a meditação sobre Deus.

Há portanto dois Carlos Magnos: O Carlos Magno histórico e o da transesfera[37]. É preciso imaginar um Carlos Magno irreal, mas que ao mesmo tempo é o mais profundo do Carlos Magno real.

 

3

Veneza - O Grande CanalUm dos aspectos mais encantadores de Veneza[38] é permitir imaginar uma cidade cujas vias, sendo sólidas, fossem construídas sobre uma substância que tivesse todas as excelências da água, e que tivesse sobre si um céu como a água reflete e não como o céu é, e cujos palácios fossem como quando são refletidos dentro da água, e não como os palácios são.

[Em Veneza] há uma espécie de paradoxo das excelências da solidez da terra ajustadas às excelências da fluidez da água, constituindo um todo só, que nesta ordem é paradoxal, e por isto remete para algo que é mais do que todas as imagens de beleza que se possam exprimir pelas várias vias. É uma coisa imponderável.

 

4

Catedral de São Basílio - Moscou

 

 

 

 

 

 

Na Igreja de São Basílio[39] há um ponto ideal entre as torres em que se deixa ver a mesma feeria do conjunto, mas carregando mais tonicamente ainda seu próprio significado.

 

 

 

 

 

 

 

 

5

Mont Saint MichelA flecha do Mont Saint Michel[40] foi desenhada por Viollet-le-Duc. E a melhor beleza do prédio é aquela flecha. Mas ela existia na cabeça dos peregrinos e turistas quando iam lá. Ela existia como um possível. Viollet-le-Duc[41] teve apenas o mérito de o realizar. Esse possível ordenava a Abadia, sem ter existido.

 

6

Ouvi uma vez afinar o órgão da Igreja do Coração de Jesus. O homem apertava uma nota e ficava... vuuum... e ele ia afinando até dar no ponto que queria. Eu tinha uma prolongada imersão no mundo, no universo daquela nota. Então, das mil possibilidades dessa nota, que mundos eram, etc.[42]

 

 

Conjuntos na transesfera

 

A realidade não é apenas a visível, mas sobretudo a invisível.

Sempre que se forma um conjunto segundo Deus, quer seja de pessoas, quer seja de coisas, um bosque por exemplo, um conjunto arquitetônico como Chambord ou mesmo o [Museu do] Ipiranga, esse conjunto pode ter um anjo que cuida dele e lhe dá a fisionomia.

Nada me interessa tanto quanto um certo espírito que se evola, por exemplo, do Castelo de Chambord, o qual me leva a pensar indefinidamente naquilo.

 

Museu do Ipiranga - São Paulo
Castelo de Chambord - Vale do Loire - França

Embora Chambord não tenha sido feito por Deus diretamente. Ele pode ter inspirado aquele conjunto arquitetônico, e depois mandado para lá o “anjo Chambord”, o qual como que se evola do castelo.

Em sentido contrário, há conjuntos de cacarecadas, de sujeiras, parecidas com o demônio, dos quais se evolam demônios. Daí o choque entre o “anjo Chambord” e o demônio do lixo, da cacarecada.

 

 

 

 

Deus dispôs que, pela conjunção de vários objetos, houvesse particulares estados de alma. Perceber o significado divino das coisas e viver com os olhos postos nisso, é viver em Deus.

 

Enquanto o egoísmo expulsa os anjos e atrai demônios, esta visão das coisas é uma fonte de puro amor de Deus, de entretenimento muito superior e capaz de dar à alma a verdadeira alegria.

 

Mais para o alto...

 

Os princípios existentes nas várias ordens do ser[43] são a repetição de princípios mais altos existentes na ordem geral dos seres.

Portanto, para conhecer bem a ordem de um ser é preciso conhecer a ordem dos seres que lhe são superiores, porque a ordem de uma camada de seres participa da ordem de outra camada, e assim por diante até o alto[44].

Há uma participação direta e uma participação indireta nessas ordenações. O ser das mais baixas das ordens, por algum lado, participa da ordem imediatamente superior, mas em algo participa diretamente dos fundamentos da ordem geral, da ordem das ordens, de maneira que, perturbada alguma coisa ali, por um efeito imediato, que não passa pelas camadas intermediárias, aquela ordem [inferior] é perturbada.

Há algo que faltava na própria ordem paradisíaca[45]. O espírito do homem pede uma ordem que não é bem a ordem da matéria. A ordem própria ao homem supõe uma junção das possibilidades do espírito e da matéria, mas faz entrever uma esfera puramente espiritual, na qual, independentemente das contingências da matéria, haja uma ordem intelectual mais perfeita que a dos homens.

  

O universo angélico, do qual o universo humano é um reflexo

 

Anjo - Fra AngélicoA ordem angélica é mais perfeita que a ordem dos homens e, comparada com a dos homens, pode parecer quase a ordem que há entre os números ou entre os sons, com os quais todas as harmonias podem se construir:

O anjo maior, arquétipo[46] do menor, é um símbolo do que ele diz ao menor (...) Ele comunica coisas a respeito de Deus, dizendo... e simbolizando.

Nós, os homens, somos tão inferiores aos anjos!

Entretanto, temos esse título de glória: somos a fivela que prende, somos o liame que une o imensamente grande com o imensamente pequeno e onde portanto a harmonia se afirma.

Porque é no liame que a harmonia triunfa[47].

 

Uma ordem inexistente, degrau entre Deus e os anjos

 

É preciso conhecer a ordem dos anjos, para conhecer as ordens inferiores. Mas Santo Tomás afirma a possibilidade teórica de Deus criar seres ab eterno[48]. Estes seres, que não existem, poderiam formar, se existissem, uma determinada ordem, e a essa ordem poderiam estar subordinadas as ordens inferiores [inclusive os anjos].

Portanto, há um degrau entre Deus e o restante da criação, metafisicamente existente na ordem dos possíveis, mas que não foi criado.

Imaginemos que numa república aristocrática se peça a um artista que desenhe um brasão para vários nobres dessa república.

Ele faz o seguinte raciocínio: vou imaginar como seria o brasão dessa república se ela tivesse rei vou desenha-lo, e em função dele, vou fazer os brasões da nobreza. Terminada a execução, o único brasão que não corresponde a nenhuma realidade é o do rei.

Na república não há rei, e aquele brasão não existe na heráldica do país, mas existiu na concepção do artista e existe ordenando os brasões elaborados. Quem queira conhecer bem todos aqueles brasões deve conhecer aquele brasão ideal, não executado, que existe apenas no desenho.

E um bom livro de heráldica deveria trazer esse brasão, dizendo: tudo o que existe é uma participação deste, que não existe.

[Assim, os seres criados ab eterno] constituem uma ordem que não existe senão no pensamento. Mas são padrão do que realmente existe.

Algo dos princípios ordenativos desses seres governa os seres inferiores. Esses princípios existem em Deus, e enquanto tais têm um efeito rector[49] sobre os seres inferiores.

Deus faz esta ordem ideal refletir-se e ter uma tal ou qual realização nesta Terra, por reflexo.

A consideração dos seres criados ab eterno nos dá uma lição de supremacia. Quer dizer, nos dá uma idéia muito alta, muito completa e muito capaz de encher nossa alma, do que é supremo (Deus)[50].

 

Subir sempre

 

A vida do inocente consiste em conhecer a transesfera; julgar as coisas na medida em que se aproximam ou se afastam da transesfera; e lutar na Terra para que a transesfera se reflita nas coisas tanto quanto possível.

Nessa perspectiva, viver “A Alma de todo apostolado” de Dom Chautard[51], comporta cultivar com todo cuidado a contemplação da transesfera, e em a intensificar o mais possível.

 

Há duas maneiras de aprofundar: uma é ir até o fundo da coisa, e outra é elevar essa coisa até o mais alto a que, hipoteticamente, ela possa prestar-se.

 

 

 

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[34] Pauline Sandor, nascida em 26-2-1836 e casada em 1856 com o Príncipe Richard de Metternich, que foi embaixador da Áustria junto ao governo francês.

[35] A contemplação daquela soberana de carne e osso remetia para uma figura ideal, existente numa ordem ideal, que por assim dizer se desprende da realidade concreta. Essas figuras ideais pairam impalpavelmente sobre a Humanidade, constituindo uma esfera que não existe senão no pensamento: uma transesfera.

[36] Ser possível: aquele que não existe, mas poderia existir. A entidade que constitui para uma coisa o fato de ser possível (Paul Foulquié, “Dictionnaire de la langue philosophique”, P.U.F. Paris, 1962).

[37] Assim, ao lado da figura da própria majestade real, imaginada pela Princesa de Metternich, temos, nessa transesfera, o imperador ideal. Esses seres não foram criados, mas poderiam ter sido, e de algum modo, como será explicado, exercem uma imponderável influência sobre a realidade existente.

[38] O autor vai agora imaginar uma cidade na transesfera simbólica. Em seguida, comentará alguns monumentos arquitetônicos e, por fim, uma simples nota musical.

[39] Trata-se da famosa basílica da Praça Vermelha, em Moscou.

[40] Magnífica abadia beneditina medieval, construída sobre um rochedo no fundo da baía do mesmo nome, na Normandia (França).

[41] Eugène-Emmanuel Viollet-le-Duc, célebre arquiteto francês do século XIX (1814-1879).

[42] O Prof. Plínio Corrêa de Oliveira deixou uma grande caudal de descrições e de considerações sobre a transesfera. As limitações de espaço nos obrigam a cingirmo-nos aos exemplos dados.

[43] Ordens do ser: esferas, graus da criação.

[44] Em conformidade com esse princípio, o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira, na busca desta ordem ideal, voltava seu olhar para as esferas da criação superiores ao gênero humano decaído. Era preciso estudar como foi o Paraíso terrestre, de que foram expulsos Adão e Eva, e mais acima, como é o mundo angélico e o Paraíso celeste. É nessas culminâncias que se encontra a matriz para uma ordem humana ideal, para a qual a humanidade deve tender dentro das limitações impostas pelo pecado original, que inclinou para o mal a vontade de todos os homens, exceto Nossa Senhora. – Um dos pólos de atração do Prof. Plínio Corrêa de Oliveira, durante toda a sua vida, foi a procura da ordem ideal. Muitos dos pensamentos sobre o maravilhoso, a sociedade ideal, a ordem ideal, transcritos neste livro, foram extraídos do acervo doutrinário monumental constituído por mais de quarenta anos de reuniões realizadas com esse fim. As anotações delas, guardadas com carinho, constituem manancial de riqueza incalculável para o estudo da ordem do universo considerada em todos os seus aspectos.

[45] O Prof. Plínio Corrêa de Oliveira refere-se ao Paraíso terrestre, de que foram expulsos Adão e Eva.

[46] Tipo é o “modelo ideal reunindo em si os caracteres essenciais de certa espécie de objetos, em seu mais alto grau de perfeição”. Arquétipo é o “tipo supremo, de que os objetos dos quais temos a experiência não são senão cópias; protótipo, padrão, original, modelo, paradigma” (Paul Foulquié, “Dictionnaire de la Langue Philosophique”, P.U.F., Paris, 1962).

[47] Sendo constituído de espírito e matéria, o homem participa não apenas dos três reinos da criação material, como também possui o elemento espiritual que é comum aos anjos. Nesse sentido, melhor do que os próprios anjos, o homem é o resumo de toda a criação.

[48] Ab eterno, desde toda a eternidade, Cfr. São Tomás de Aquino, Summa Theologica, I, 46 a. 2; 61 a. 2. Ensina o Anjo das Escolas: “Que o mundo não existiu sempre, o sabemos só pela Fé, e não se pode demonstrar apoditicamente; o que também foi explicado anteriormente sobre o mistério da Santíssima Trindade. A razão disto está em que o começo do mundo não pode ter uma demonstração deduzida da natureza mesma do mundo” (46, a. 2). O Pe. Jesús Valbuena, O. P., a respeito de quando o mundo foi criado por Deus, observa: “É preciso distinguir e separar duas questões: a) quando, de fato, foi criado o mundo; e b) quando o mundo poderia ter sido criado. Segundo Santo Tomás, a resposta à primeira destas questões só nos é dada pela Fé (...). À questão de caráter puramente especulativo, se o mundo poderia ter sido criado ab aeterno, sobre a qual já se deram muitas e diferentes soluções, Santo Tomás responde na Summa afirmativamente, fundando-se nas mesmas razões que fornece para provar que não se pode demonstrar que o mundo não tenha existido sempre” (Suma Teológica de San Tomás de Aquino, Introdução às questões 44-46,  Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1959, pp. 492-493).

[49] Do latim: Dirigente, governativo.

[50] Isto porque esse ser, embora eterno, mesmo assim estaria ainda infinitamente abaixo de Deus.

Com efeito, teoricamente existiria um degrau no criado entre Deus e os homens. Deus é um espírito todo-poderoso, eterno e infinito; os anjos são espíritos nem eternos nem infinitos. Entre Deus e os anjos, especulativamente haveria lugar para uma gradação, formada por seres eternos, embora não infinitos nem todo-poderoso. Essa gradação, como veremos, foi efetuada por Deus de uma maneira inimaginável e esplendorosa, com o Homem-Deus e Nossa Senhora.

[51] O monge trapista Dom J. B. Chautard escreveu “A alma de todo apostolado”, em que expõe a necessidade de se fundamentar a ação numa sólida vida interior. Trata-se de um dos livros de cabeceira dos propagandistas da TFP. Para o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira, a contemplação dos seres ideais que compõem a transesfera pode fazer parte da vida interior.