Instituto Plinio Corrêa de Oliveira
A Inocência Primeva e a Contemplação Sacral do Universo no pensamento de PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA |
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Uma visão sublimada e transcendente
da realidade: a trans-esfera ( Para Textos Ilustrativos deste capítulo clicar aqui )
1. O universo dos modelos ideaisUma pessoa, olhando determinada coisa, pode formar ‘em seu espírito uma idéia de como essa coisa seria se fosse de uma excelência que está nos confins do imaginável’. Essa idéia será ‘tanto mais rica e mais definida quanto maior for a inocência da pessoa’. [1]Assim, diante de uma porta encimada por um arco, ela pode ter ‘uma finíssima visualização do arco’, formar a idéia ‘de um arco dos arcos, como aquele que está vendo deveria ser. E é em função dessa noção que ela vai julgar aquele arco, se gosta ou não dele’.[2] ‘Essa noção do arco dos arcos vem através dos sentidos e de algum modo está viva na pessoa. E isto faz com que ela tenha a respeito de quase tudo uma fecundidade em formar noções ideais, muito subconscientes, mas efetivas. E à medida que a pessoa vai conhecendo esse universo, vai tendo em gérmen a idéia de um universo ideal. Este universo ideal, ela sabe que, tal qual imagina, não existe, mas que, de algum modo, algo deve existir’.[3] Esse algo corresponde a uma visão sublimada e transcendente da realidade, que passamos a analisar.
2. Goethe e a catedral de Estrasburgo
A operação de espírito acima descrita não é incomum como, à primeira vista, poderia parecer. Algumas personalidades célebres chegaram mesmo a explicitá-la. ‘Goethe (1749-1832) conta em suas memórias que, estando em Estrasburgo, analisou detidamente a torre da catedral e achou que faltava alguma coisa. Afinal, depois de muito analisar, chegou à conclusão de que, nos ângulos da torre, deveriam ser colocados quatro torreões pequenos, de tal e tal modo, para que ela ficasse inteiramente bonita. Na mesma estadia em Estrasburgo, foi convidado para uma reunião social numa casa de família, bem em frente à catedral. Girando a conversa sobre esta, comentou que a torre deveria ter quatro pequenos torreões assim, assim, assim (e descreveu como ele os concebia). Um homem velho e muito apagado aproximou-se dele e disse: — «Como o senhor sabe disso?» — «É que eu analisei a torre e formei a idéia de que os quatro torreões eram necessários para completá-la». — «Pois eu sou o conservador do museu da catedral e nada sabíamos deles. Mas dias atrás encontramos uma planta do tempo da construção e vimos que o arquiteto tinha a intenção de colocar esses torreões. Se o senhor quiser, passe lá amanhã que eu lhe mostro a planta». Goethe foi e encontrou’ exatamente o desenho como ele tinha imaginado. [4] ** A descrição, feita de memória pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira no curso de uma reunião, confere substancialmente com a narração do próprio Goethe, apresentada ao lado.
3. O cone do monte Fujiyama‘Tomemos outro exemplo muito bonito — e ademais muito adequado, numa sala onde estão numerosos nisseis — que é o do monte Fujiyama. Tem-se a impressão de que ia terminar numa ponta e que houve um fenômeno geofísico qualquer pelo qual essa ponta não se completou. Entretanto, ela fica meio insinuada, de modo que se percebe como seria. E o charme do Fujiyama está em não ter essa ponta que se pode apenas imaginar’.[5]‘Se alguém toma um desenho representando o Fujiyama e procura completar à mão o cone, não consegue pôr ali o cone perfeito que daria toda a beleza do Fujiyama. Quer dizer, percebe-se que seria possível haver um cone, mas que não é como nenhum dos cones que se poriam. Dele se tem apenas uma insinuação. Tem-se algo à maneira de um conhecimento metafísico, que se conhece mais à maneira de negação, dizendo: «Não é este o cone, não é aquele, não é aquele». Tem-se uma idéia de como seria o cone perfeito, mas é de duvidar que alguém fosse capaz de pôr. O lado emocionante do Fujiyama, a meu ver, está nisso’.[6] ‘Imagine-se, não obstante, que um artista conseguisse recompor, numa pintura ou desenho, o pico do Fujiyama. O monte ficaria plenamente ele mesmo porque o artista teria acrescentado o pico; mas ele só teria alcançado sua plenitude porque esse pico foi concebido na cabeça do artista. ‘O artista que completasse o Fujiyama com o píncaro próprio, de modo tal que ele não perdesse nada de sua beleza, teria comunicado ao monte algo de sua genialidade de artista. E o Fujiyama como que viveria e adquiriria alma pelo fato de ter recebido do artista um complemento que ele, Fujiyama, não tem’.[7]
4. O homem deve morar mentalmente no «cone Fujiyama» de todas as coisasAssim, ‘o cone mais bonito do mundo é um cone que não existe’. Existe apenas numa espécie de esfera ‘etérea e não definível, na qual todas as belezas do Fujiyama e de todos os cones se concentram. ‘É nessa zona da realidade que o homem deve morar mentalmente, para se aproximar de Deus. E considerar um exílio cada vez que tem de descer para o concreto, porque o concreto não é o auge da realidade. O auge da realidade’ é essa esfera etérea na qual colocamos, como possíveis existentes na mente divina, o tal cone e seus símiles. ‘E é quando se mora mentalmente nesse lugar que é possível tratar todas as coisas que acontecem no terra-a-terra como coisinhas’[8] vistas do alto de uma esfera mais elevada da realidade, cuja noção vamos assim, pouco a pouco, definindo.
5. Catedral de Notre-Dame: as torres que ninguém ousou completar‘Outro caso muito conhecido é o das torres de Notre-Dame. Sabe-se que não foram acabadas. Aquilo é tão bonito que, de um lado, é-se levado a dizer que não precisava ser colocado nada mais. Mas o arquiteto tinha intenção de completá-la, apenas se perderam os planos. ‘Depois que se sabe que as torres de Notre-Dame deviam ser completadas, fica-se olhando para elas, olhando, olhando... Algo o edifício nos diz dessas torres que não existem, porém nada do que vamos imaginando nos satisfaz, por causa de um modelo noturnamente existente em nosso espírito e que nos entusiasma. Esse entusiasmo pelo que conhecemos apenas negativamente nos dá algo da centelha do absoluto.[9] * * Sobre o conceito de absoluto, ver Parte II, cap. 5. ‘Por mais que se tente completar as torres de Notre-Dame — talvez um grande arquiteto consiga — não se chega a nenhuma solução satisfatória. Isso quer dizer que, à maneira de negação, tem-se uma certa noção da torre que se poria lá. Mas não é nenhuma das que cogitamos’.[10] ‘O que Goethe fez com os torreões da catedral de Estrasburgo não faria com Notre-Dame, menos ainda com o cone do Fujiyama. O que tem a catedral de Notre-Dame que a mim me delicia, me subjuga e me assume, é que aquilo, como está, é tão bonito, que se diria que não se pode pôr nada mais além daquilo. Ora, era para pôr! Logo, o acréscimo tem que ser um bonito de tal ordem que fosse o contrário, na linha não grega, do que aquelas torres truncadas têm numa linha clássica, quase grega. Quem o fizer merece um prêmio. ‘Viollet-le-Duc o fez em ponto pequeno, com aquela agulha atrás da catedral que ele restaurou e cuja altura aumentou. Não se atreveu, porém a completar as torres da frente…’.[11] * * Eugène Viollet-le-Duc (1814-1879), arquiteto francês, restaurou um grande número de monumentos da Idade Média.
6. O Monte Saint-Michel transmite uma centelha do absoluto‘Onde creio que Viollet-le-Duc acertou foi na abadia do Mont Saint-Michel. A meu ver, o golpe de gênio da vida dele. O «cone do Fujiyama» do Monte Saint-Michel ele encontrou. E o mundo inteiro, quando vai lá, vai ver a agulha que Viollet-le-Duc pôs, não vai ver aquela montanha de pedras’.[12] ‘Ao se observar uma foto do Monte Saint-Michel, é impossível não sentir entusiasmo diante daquela flecha da Abadia. O entusiasmo incide propriamente ali. Sem a flecha, o conjunto perde muitíssimo. O mesmo não ocorre com a catedral de Notre-Dame, que é um escrínio, em que cada parte é bonita. No Monte Saint-Michel, não: é bonito só porque Viollet-le-Duc — grande especialista em coisas da Idade Média — soube pôr aquela torre central, com aquela flecha, que dava uma unidade maravilhosa à construção dispersa e fazia com que aquilo fosse o ponto de atração de turistas do mundo inteiro. ‘Onde está a centelha do absoluto ali? Um observador atento percebe que o edifício todo tende para aquele unum, e que o edifício é belo em razão daquele unum. E aquele unum parece desprender-se da terra e ir para o céu. Sobe, sobe… acaba numa flecha tão fininha que dá a impressão de que se dissolve no ar e chega até o seio de Deus. É, portanto, algo tão bonito que, por ter certa analogia com as belezas de Deus, nele se vê a Deus. Essa sensação do absoluto é uma centelha do absoluto’.[13]
7. «Mito»: sentido mau e sentido bomNa literatura indigenista em voga na segunda metade do século XX, ‘a palavra mito cobre duas faixas que se sobrepõem: um histórico maravilhoso, evidentemente mitológico, e que, portanto, inclui as respectivas legendas; mas, ao mesmo tempo, uma visão transcendente das coisas, a qual mostra o aspecto-símbolo do ser mitificado. Esta segunda componente corresponde a algo de verdadeiro na noção de mito, em consonância com a boa doutrina’.[14] É neste último sentido, legítimo, que será tomada aqui a palavra mito. É de constatação corrente que todas as áreas de civilização têm seus homens-mito, que ‘simbolizam certos traços de caráter e fatos que efetivamente não se deram na vida desses homens’. Em outras palavras, ‘há um modo de ver o homem-mito que transcende o próprio homem. Corresponde a uma concepção que freqüentemente se tem a respeito de pessoas que personificam o que elas simbolizam. Quer dizer, elas simbolizam uma realidade superior que resulta de uma vue de l’esprit — um produto de nosso espírito. Tal fato decorre da necessidade que sentimos da individuação’ ou personificação de certos princípios ou valores.[15] O homem-mito ‘se situa, pois, numa esfera transcendente, uma super-esfera, da qual ele comunica aos homens a sua transcendência. Essa transcendência é o mito. Então, a idéia de mito traz consigo a idéia de uma trans-esfera’.[16] * * De acordo com as regras gramaticais em uso, a palavra trans-esfera dispensa o hífen. Pareceu-nos melhor mantê-lo, para sublinhar o sentido especial com que a palavra é aqui empregada. Analisemos três exemplos insignes de personagens históricos míticos.
8. Carlos Magno, modelo ideal de imperador católico‘Falando-se de governantes, ainda hoje Carlos Magno continua presente. É um modelo ideal. Os reis se sentiam na obrigação de seguir esse modelo. O modelo ideal de rei governou mais do que os reis de carne e sangue que regeram a Europa’.[17] ‘Talvez o que a figura de Carlos Magno tem de grandiosa, e até de incomparável, seja a idéia tão sublime que ele dá, de um imperator católico, guerreiro, meio profeta. Ele sugere uma idéia tão alta desta condição que se chega a entrever um poder imperial maior que o dele, realizado numa ordem maior do que a dele: um imperator perfeito que não é Deus, é uma simples criatura’.[18] Seria uma criatura possível, mas que, de fato, jamais existiu como é correntemente imaginado. Há, portanto, dois Carlos Magnos: o Carlos Magno histórico e o da trans-esfera. Imagina-se um Carlos Magno irreal, mas que, ao mesmo tempo, é mais profundo que o Carlos Magno real. E esse Carlos Magno irreal atua. Sua lembrança gera conseqüências. A História do mundo certamente seria algo diferente se, depois de sua morte física, o Carlos Magno da trans-esfera também desaparecesse. A legenda acabou transformando Carlos Magno no Imperador da trans-esfera.
9. Santa Joana d’Arc, virgem e guerreira heróicaTambém Santa Joana d’Arc é, por assim dizer, uma heroína da trans-esfera. Queira-se ou não, até hoje ela pesa no curso da História da França.* * A propósito da abolição do franco, eis o que escreveu um comentarista: «Uma moeda nacional tem uma história rica, longa e movimentada. A moeda francesa, por exemplo, foi sucessivamente o écu, o louis, o assignat, para depois se tornar o franco. O franco fazia parte da alma de todos os franceses. Nas suas filigranas havia um brilho de Vercingetorix, Carlos Magno, Louis XIV, Joana d’Arc, Napoleão. Aposentar uma moeda como essa é como se tivesse sido aposentada a história da França» (Gilles Lapouge, Moeda única faz aniversário sem festa, O Estado de S. Paulo, 2 de janeiro de 2003). Portanto, a humilde donzela da batalha de Orleans, decorridos muitos séculos de sua morte, ainda comove os espíritos a propósito da definição da moeda francesa! 'É muito bela a conjunção dessas duas virtudes: a castidade e o heroísmo. O maior exemplo dessa conjunção nós temos em Santa Joana d’Arc, a virgem e guerreira heróica, nascida na Lorena. A castidade é uma virtude cheia de delicadeza, cheia de fragilidade. A coragem é uma virtude cheia de fortaleza, cheia de intrepidez. A junção desses opostos forma uma verdadeira maravilha. São como duas partes de uma ogiva que se unem para formar um todo harmônico muito bonito’.[19] ‘Santa Joana d’Arc está numa posição em que ela é mais ou menos inatingível. Se alguém quiser falar contra ela, nem todas as simpatias da mídia servem para atenuar a má impressão que esse indivíduo causa contra si. Imagine que se fique sabendo que tal literato está escrevendo uma série de artigos contra Santa Joana d’Arc... está liqüidado! Escrever uma série de artigos contra Santo Inácio de Loyola, que eu admiro talvez mais do que Santa Joana d’Arc, isso não desdoura tanto o indivíduo. Mas Santa Joana d’Arc, na sua couraça, com seu gonfalon Mon Dieu et Saint Denis, e com aquilo tudo, está nos páramos da inatingibilidade. Ninguém pode lançar uma estocada contra ela sem se quebrar a si próprio. São desígnios de Deus sobre as várias glórias terrenas post-mortem dos bem-aventurados’.[20]
10. Dom Sebastião, um rei virgem capaz de ressuscitar a Idade Média agonizanteDom Sebastião (1554-1578), rei de Portugal, foi com certeza uma figura da trans-esfera. Desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir, no norte da África, e julgou-se que haveria de voltar a qualquer momento, para continuar sua missão histórica. ‘Para mim, o homem símbolo de Portugal é um nome que nunca pronuncio sem emoção, porque tenho a impressão de que sobre ele pousaram todas as graças para as quais Portugal era chamado: Dom Sebastião. ‘Dom Sebastião tem aspectos por onde ele parece mais um anjo do que um homem. Qual é a figura que se encontra na História que, morta, deixa atrás de si uma lenda como a sebastianista? ‘Os portugueses entenderam, nebulosamente, que aquilo não podia terminar assim, e ficou uma esperança de pé, de algo que viria, e que — por falta de expressão talvez — eles cometeram o erro de dizer que era Dom Sebastião que voltaria. Mas era a confiança de que a obra começada com Dom Sebastião não terminaria e um dia recomeçaria’.[21] ‘Portugal teve a nobreza de reconhecer em Dom Sebastião, o rei de seus sonhos. ‘Como todas as outras nações da Europa, Portugal já começava a ser carunchado pelo Renascimento. Mas algo de fundamentalmente anti-renascentista florescia lá. E quando esse rei voltasse da África, com sua fronte aureolada pela glória de não sei quantas vitórias, depois de ter estendido o poder de Portugal pelo norte da África, no zênite da Europa brilharia um príncipe medieval. A honra da Cavalaria agonizante refulgiria de novo; a tese de que o poder temporal existe para o serviço do poder espiritual, resplandeceria de novo, e diante de um tipo humano magnífico empalideceriam os tipos humanos conspurcados que a Renascença aplaudia. ‘Em Alcácer-Quibir havia um rei virgem, um modelo do varão católico, um modelo capaz de ressuscitar a Idade Média agonizante. Esse homem morre no desconhecido. ‘Os portugueses sonharam com Dom Sebastião, mas para Portugal veio algo de incomparabilíssimamente mais alto: veio Nossa Senhora. Não veio o rei virgem, mas veio a Virgem das virgens. ‘E assim como Portugal deveria ter dado, no tempo da Renascença, na pessoa de Dom Sebastião, uma mensagem ao mundo, Nossa Senhora, tomando o território português como trono, deu ao mundo aquela mensagem [aos pastorinhos de Fátima], que não era de saudades, mas uma mensagem de advertência, uma mensagem de increpação, uma mensagem de esperança. Uma mensagem seguida de mistério, como está acompanhado de mistério aquilo que poderíamos chamar o mito de Dom Sebastião. ‘Mistério: uma Rainha que desce dos céus, uma esperança que é excedida além do limite de toda esperança, isso tudo constituiu o pontilhado que vai entre a morte de Dom Sebastião e o aparecimento de Nossa Senhora em Fátima’.[22]
11. Trans-esfera: uma realidade sublimada, na qual se vêem melhor os reflexos de DeusOs exemplos dados nos encaminham para a conceituação de trans-esfera: ‘A idéia de trans-esfera pode ser objeto de uma análise do ponto de vista filosófico e teológico. ‘O que é esta esfera? Não é uma esfera nova da realidade, mas algo que o espírito humano concebe como um produto do espírito*. * Seria, segundo a terminologia da filosofia escolástica, um ens rationis, isto é, um ser ou ente que é concebível, porém não realizável fora do espírito (cfr. Regis Jolivet, Vocabulaire de la Philosophie, Emmanuel Vitte Éditeur, Lyon-Paris, 1946, 2ª ed., verbete être). ‘É uma imagem que o espírito humano cria para si, de uma ordem irreal, hipotética, não existente, formando-se às vezes de modo muito efêmero, por certos aspectos da natureza, por atitudes de indivíduos, etc., que não constitui, portanto, uma ordem real. São aspectos fugazes, são lampejos que as coisas tomam e com os quais o homem constitui um modo habitual de ver todos os seres como se estivessem numa trans-esfera. ‘Ele sabe que essa trans-esfera, como ele a vê, de fato não existe. Mas sabe que, quando os homens todos caminham muito rumo a Deus, todas as coisas da realidade tomam estavelmente aspectos susceptíveis de serem sublimados, de modo a constituir uma visão transcendente da realidade, uma trans-esfera. Assim, a trans-esfera é um possível existente apenas na mente divina, que nos compete desenvolver e explicitar, e no qual vemos muito mais marcantemente os reflexos de Deus. ‘De maneira que a trans-esfera é um possível em Deus, não criado; porém um possível virtualmente já criado, do qual nós temos certa noção a partir de seres criados ou de obras feitas pelos homens. De algum modo, esse possível vive em nós… desde que não sejamos tão miseráveis que nada em nós tenha restado daquele possível que nos tornaria mais parecidos com a nossa própria transcendência’. Isto é, com aquele modelo ideal de nós mesmos para o qual devemos tender. ‘Por pouco que esse possível subsista em nós, ele aflora daqui, de lá e de acolá, à maneira de um mundo que não está inteiramente vivo, mas que tem semividas. Às vezes, esse possível reluz mais diante de nossos olhos e nos faz perceber, como um plano vagamente delineado, a idéia do palácio interior que cada um deve construir. Se favorecido de um modo especial pela graça, esse possível pode reluzir aos nossos olhos de modo também especial e nos apresentar uma idéia mais rica de nosso palácio interior. ‘Então a essa visão sublimada da realidade nós chamaríamos de trans-esfera’.[23]
12. A graça nos solicita a ver todas as coisas na trans-esfera‘Mas, de fato, a trans-esfera não é só isso. É isto enquanto uma vue de l´esprit favorecida e animada pela graça; porque a graça nos convida a realizar isso. Porém, habitando nessa vista de nosso espírito, há algo da vida do próprio Deus, que é a graça — acidente sobrenatural criado, participativo da vida divina em nossa alma — e que nos solicita a ser assim, e a ver todas as coisas assim. ‘Portanto, na trans-esfera há muito mais uma vue de l´esprit com algo de vivo em nós, que nos projeta numa ordem de vida que é a ordem sobrenatural, onde nos tornamos de algum modo cidadãos da cidade que ainda não construímos. E onde a cidade que ainda não construímos de algum modo vive em nós’.[24] * * Diz o Apóstolo São Paulo: «Nostra autem conversatio in caelis est» — «A nossa morada está nos Céus» (Filip 3, 20).
13. Trans-esfera, espelho das melhores coisas que há no mundo real‘A trans-esfera é, pois, uma vue de l’esprit. Como não temos a visão direta de Deus, somos obrigados a imaginar uma região da ordem do ser onde todas essas coisas se representam, e que, pela Teologia, sabemos que existem em Deus. É uma espécie de imagem criada de Deus, simbólica, que se estabelece no espírito de cada um de nós, sem sabermos bem exatamente que remete a Deus. Em todo caso, é uma vue de l’esprit muito legítima. ‘Toda perfeição, inclusive e notadamente a da virtude, ali se representam. E, assim, todo ato de virtude nos remete muito facilmente para a trans-esfera. Quer dizer, acentua em nós a riqueza dessa vue de l’esprit imaginada por nós. ‘A trans-esfera é, pois, uma suprema representação da suprema realidade. É uma espécie de espelho sumo de todas as melhores coisas que há no mundo real, apresentadas nos seus melhores aspectos. Forma uma espécie de nebulosidade suma, brilhante, confusa, que é, no fundo, uma imagem de Deus’.[25]
14. A trans-esfera influencia a conduta dos homens‘A esse conjunto de considerações haveria a acrescentar algo mais. É que esta vista do espírito é movida por uma esperança nas vias da Providência, esperança animada por anjos e favorecida por moções internas da graça. De modo que essa vue de l’esprit se move em direção a um futuro existente no além, que atrai o homem. ‘Mas esse futuro existe mesmo, ou não existe? Como possível existe, como causa agente existe, na medida em que raízes desse movimento da alma se encontram na natureza criada. Portanto, essa vue de l’esprit é o ato inicial que nos conduz ao píncaro da realidade. ‘Assim, a trans-esfera influencia de um modo superior a conduta dos homens, pela influência que nossos estados de alma têm sobre os demais homens e sobre os fatos, sob o governo da graça e a ação dos anjos. A orientação fundamental desses estados de alma rumo a um certo ponto rege, em muito larga medida, as ações humanas. Em medida até decisiva, nos povos como nas almas em estado ascensional. ‘Essa seria a noção do que é a trans-esfera: verdadeira vida a influenciar os vivos, um pouco como o mundo dos mortos influencia os vivos; mas, então, à rebours, em sentido contrário. Como também os vindouros nos influenciam, porque o presente é o suspense entre o passado e o futuro’.[26]
15. A trans-esfera, numa definição sintéticaO que foi dito pode ser sintetizado numa definição:
Na definição acima, por obras dos homens devem entender-se não só os edifícios e monumentos por eles construídos, como suas ações, seus gestos, suas atitudes, seus atos heróicos, etc. Assim, a trans-esfera de certa forma abrange todas as vias de contemplação sacral anteriormente analisadas. As considerações feitas sobre a virtude da admiração (cap. 2); os ambientes, costumes, civilizações (cap. 3); o senso do simbolismo (cap. 4); a procura do absoluto (cap. 5); a quarta via de Santo Tomás e a teoria da «participatio» (cap. 6); a transparência e a transcendência (cap. 7); as sublimidades do mistério (cap. 8); o universo dos possíveis (cap. 9) desfecham na noção de uma trans-esfera e nela encontram o seu unum.
16. Acontecimentos que repercutem na trans-esferaMas assim como a trans-esfera influencia a conduta dos homens nesta Terra, também alguns acontecimentos terrenos — positivos ou negativos — repercutem numa trans-esfera. Por que isto? ‘Porque, por pouco que seja, moveram a História em algo’.[27] Um fato pode ‘repercutir na trans-esfera’ por sua perversidade. Os exemplos abundam. Característica foi a bofetada de Anagni. A vítima foi o Papa Bonifácio VIII. ‘Guillaume de Nogaret e Guillaume de Plaisance — os agressores — agiam por ordem de Filipe IV, Rei da França, a filha primogênita da Igreja. Ele, por não querer tolerar ninguém acima de si, revoltou-se contra o Papa’. Essa revolta foi ‘simbólica da revolta da ordem temporal, na sua mais alta expressão, que era a realeza, contra a ordem espiritual, na sua mais alta expressão, que era o Papado’.[28] Foi um símile do pecado de Lúcifer. ‘Meus olhos caíram fortuitamente sobre essa imagem de São Miguel desferindo o golpe de espada em Lúcifer.* É evidente que seu brado — Quis ut Deus? (Quem como Deus?) — tocou eminentemente na trans-esfera. Nesse sentido, foi admiravelmente trans-esférico’.[29] * Trata-se de uma cópia em bronze (existente na sala de reunião) da imagem de E. Frémiet, colocada no alto do Monte Saint-Michel, na França. ‘É preciso compreender que, por detrás da trans-esfera, estão os anjos, como por detrás da sub-esfera estão os demônios’.[30] Repercutem, pois, na trans-esfera, em sentido inverso aos gestos bons, atos revolucionários como o dos anarquistas que, durante a Revolução da Sorbonne, em 1968, hastearam uma bandeira negra na agulha de Notre-Dame, em Paris. É desnecessário salientar que a revolução protestante, a revolução francesa e a revolução comunista repercutiram na trans-esfera. Mas outros fatos ou acontecimentos históricos, carregados de força simbólica, também poderiam ser citados, dado seu caráter arquetípico. A Sagrada Escritura nos apresenta muitos acontecimentos que repercutiram na trans-esfera, como, por exemplo, a censura «tibi non licet!» (não te é lícito!) de São João Batista a Herodes. ‘Ela tocou na trans-esfera. Diretamente. Por quê? Porque foi com tão alto amor que ele declarou tão alta proibição, que aquilo fez abalar Jerusalém inteira’.[31] ‘Em minha opinião, aqueles anacoretas antigos que ficavam no deserto, ou então os monges beneditinos primitivos que atraíam as cidades para onde moravam, atuavam intensamente na trans-esfera’.[32] O martírio de Garcia Moreno — o presidente católico do Equador que morreu assassinado bradando «Dios no muere» — certamente repercutiu na trans-esfera, quer por sua dignidade de mártir, quer pelo fato de ser chefe de Estado. ‘Este caráter acrescenta algo a seu martírio. O Equador tocava em Deus pelo ato de um chefe de Estado fiel à sua missão’.[33] Um exemplo brasileiro: a famosa cena imortalizada por Pedro Américo, em que se vê Dom Pedro I proclamando a Independência do Brasil. Sem dúvida não ocorreu exatamente como está no quadro. Mas o artista captou algo da realidade, e essa realidade até hoje nos influencia. Pode-se dizer, portanto, que a cena, e também Dom Pedro I, tal como foi visto por Pedro Américo, pertencem a essa visão transcendente da realidade que denominamos trans-esfera.
17. Trans-esfera e Corpo Místico de CristoAs ações eminentes dos homens, bem como o menor dos atos de virtude repercutem, pois, na trans-esfera. Isso tem uma explicação ‘do lado teológico’: A trans-esfera ‘seria como uma espécie de ponto etéreo flutuando por cima da humanidade, e no qual se encontram todas essas ações. Como num satélite, em que o sinal sobe e desce, e volta para Terra. ‘Esta impressão que a imaginação tem, corresponde de fato a uma verdade teológica, no seguinte sentido: esse ponto etéreo não existe, mas há algo em Deus, que é o Livro da Vida,* aquilo que será, se se quiser, a memória de Deus, ou o conhecimento que Deus tem do fato externo, e pelo fato daquilo, por assim dizer, repercutir em Deus, repercute depois na Terra. * São Paulo se refere àqueles «cujos nomes estão inscritos no Livro da Vida» (Filip 4, 3); cfr. também Apoc 3, 5; 13, 8; 17, 8; 20, 12; 20, 15; 21, 27. ‘Assim, por detrás e acima da idéia de trans-esfera — para falar numa linguagem teológica mais precisa — existe uma idéia do Corpo Místico de Cristo e das repercussões que nele se produzem, partindo do princípio de que o Corpo Místico de Cristo forma um só com Nosso Senhor Jesus Cristo, e que abrange todos nós. Desse modo, aquilo que em nós se passa, de algum modo toca nessa realidade concreta, histórica, que é o Corpo Místico de Cristo, a Comunhão dos Santos e Deus Nosso Senhor’.[34] ‘A trans-esfera não se confunde com o Corpo Místico de Cristo, mas é uma concepção, uma vue de l’esprit banhada pela graça, e que é o melhor reflexo de Deus para cada um’.[35] ‘Não creio numa inteira restauração da civilização cristã enquanto as almas não estiverem totalmente abertas para os esplendores da trans-esfera’.[36]
Fontes de referência: [1] 10-9-1981. [2] 10-9-1981. [3] 10-9-1981. [4] 5-9-1974 e 10-9-1974. [5] 5-9-1974. [6] 5-9-1974. [7] 14-6-1977. [8] 1974 (sem dia e mês especificado). [9] 5-9-1974. [10] 5-9-1974. [11] 5-9-1974. [12] 5-9-1974. [13] 5-9-1974. [14] 2-6-1977. [15] 2-6-1977. [16] 2-6-1977. [17] 5-2-1969. [18] 23-12-1982. [19] 5-3-1977. [20] 14-9-1991. [21] 10-9-1976. [22] 5-8-1978. [23] 2-6-1977. [24] 2-6-1977. [25] 25-6-1978. [26] 2-6-1977. [27] Cfr. 28-5-1978. [28] 14-11-1969. [29] 28-5-1978. [30] Cfr. 28-5-1978. [31] 28-5-1978. [32] 28-5-1978. [33] 28-5-1978. [34] 4-6-1978. [35] 4-6-1978. [36] 25-6-1978.
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