Plinio Corrêa de Oliveira
Na era da repetição e da chibata
Legionário, n.° 773, 1° de junho de 1947 |
|
Dizia Napoleão que a melhor figura de retórica é a repetição. Para um europeu do século XIII, cônscio de sua dignidade natural de homem, e de sua dignidade sobrenatural de cristão, esta proposição não seria verdadeira. No período áureo da Escolástica, a razão e a fé é que tinham valor. Mas, uma vez realizada por Lutero a cisão espiritual do mundo cristão, o pensamento do Ocidente entrou em desagregação. As seitas e escolas se multiplicaram, a confusão começou a surgir de todos os lados, e a humanidade, abandonando a senda da verdadeira filosofia e da verdadeira fé, começou a tatear nas trevas, em busca da verdade, e encontrando quando muito, aqui e ali, verdades fragmentárias e incompletas, que não satisfaziam sua ânsia de plenitude. O homem descreu da fé e por fim descreu também da razão. Era inevitável que ele acabasse por perder o hábito de crer e até de raciocinar. Estava preparado para o homem-massa, o homem sem convicções, sem princípios firmes, sem personalidade, o homem amorfo e vazio feito para ser dirigido por demagogos, por ditadores, por carrascos. Demagogos, ditadores, carrascos, o século XIX os produziu em profusão. Napoleão mesmo foi um ditador que tinha um tanto de demagogo e algum tanto de carrasco. O século XX requintou sobre o século anterior: sua produção em matéria de homens públicos quase não tem sido senão esta. E quando algum homem de outro feitio aparece, põem-no de lado. É que não tem inteiramente o cachet do século... Para este homem-massa, que já começava a se generalizar no tempo de Napoleão, é verdade que a única figura de retórica é a repetição: as idéias não entram no espírito do homem-massa pelo raciocínio, mas pela simples osmose da parede timpânica. Se Napoleão tivesse sido mais franco, ele teria provavelmente acrescentado que, nos raros casos em que a repetição não convence o homem-massa, há outro processo mais convincente: é a pancada. Nos séculos da demagogia e de tirania, um homem bem espancado, um homem bem destroçado é em geral um homem convencido. * * * É isto que explica a onipotência das duas grandes forças do século, a propaganda e a polícia (*). Hoje em dia, a propaganda não se faz com raciocínios, mas com slogans. O que é um slogan? É uma frase dita de modo que sua repetição impressione sem enfastiar. Todos os estilos de eloqüência têm sua técnica própria. A eloqüência moderna é a repetição. E o processo da repetição é o slogan. A repetição é eloqüente quando o slogan é cantante, curto e rico. Há slogans para todos os gostos: slogans afáveis para captar a simpatia dos temperamentos moderados e afetivos, slogans cômicos para atrair a atenção dos espíritos bonacheirões ou sarcásticos, slogans espetaculares para agradar os temperamentos espalhafatosos e impressionáveis, slogans melodramáticos para lisonjear as almas ávidas de aventuras e tragédias. O orador próprio desse gênero de retórica é o speaker (locutor). A voz quente, ribombante ou tristonha conforme o caso, ele sabe servir-se das palavras do slogan como o bom violinista sabe produzir melodias na corda inerte do violino. Em sua laringe, o slogan adquire modulação, temperamento, vida enfim. O speaker conquista as almas por etapas. Primeiramente, agrada ao ouvido: pronuncia sua frase de tal maneira que o ouvinte sinta gosto em a repetir e, mesmo, a repete inconscientemente, como se cantarola uma ária, sem perceber. Depois, o locutor conquista a simpatia do ouvinte: como é curioso o slogan, como seria agradável, ou divertido, ou simpático que o pensamento contido em fórmula tão interessante fosse verdadeiro. Por fim o slogan vence: tem de ser verdadeiro o pensamento, pois o jornal até já disse! O rádio até já disse! Não espanta que, para os speakers, a vida seja hoje bastante deleitável. Eles que se precavenham, porém, porque uma desagradável surpresa os aguarda dentro em breve. A ciência moderna, que tem trazido tantas modificações nos costumes de hoje, ameaça perturbar ainda algum dia a vida dos speakers, ou pelo menos de alguns deles. E, como não quero mal a esses amáveis rapazes, de quem só tenho recebido gentilezas quando me acolhem em suas emissoras para me passar o microfone, vou dar-lhes por estas linhas o salutar aviso. A televisão vem a caminho. Dia mais, dia menos, ela aí estará. E será preciso que o speaker não seja somente ouvido, mas também visto. Então aos trinta anos, ou no máximo quarenta anos, o speaker deverá aposentar-se. Isto na hipótese de que alguma excessiva protuberância ou depressão nasal não force sua aposentadoria logo ao chegarem os primeiros aparelhos de televisão.
Demóstenes, orador grego (384 a.C. - 322 a.C.) É bem provável que surja por aí alguma nova arte de maquiar os speakers para efeitos de televisão. Os oradores antigos se preparavam para as grandes demonstrações públicas à maneira de Demóstenes, falando às ondas. Nosso locutor moderno se prepararia em pequeno salão vizinho ao estúdio do microfone. Porá cabeleira, tirará os óculos, ajeitará o bigode e "retificará" as sobrancelhas. Um pouco de pó, creme, e eis o homem remoçado. É um orador completo, ao menos para o gosto do século XX. Mas, dirá alguma alma timorata, isto não pode ser. O que pensarão do locutor os seus admiradores, quando o virem pela rua, sem a camuflagem que emprestava a seu semblante tanta eloqüência, e às suas frases tanta força persuasiva? * * * A pergunta não merece resposta. Desperta apenas um sorriso de compaixão, tal a ingenuidade que ressuma. Nas últimas eleições tivemos um candidato que afixava cartazes espetaculares, ostentando a fisionomia de um jovem "glostorado" [neologismo originário de um fixador para cabelos masculinos, em voga na época, n.d.c.], inteiramente a gosto dos subúrbios, com a idade aparente de 25 anos. Como os subúrbios têm muito eleitorado, o cartaz era muito "técnico". De fato, porém, os jornais têm publicado reiteradas vezes a fotografia atual do candidato, que possui hoje uma larga face de uns 45 anos, na qual a sombra da maturidade baixou em largas ondas. Nem se poderia suspeitar que este é o mesmo jovem dos cartazes. Vinte anos se passaram entre o cartaz e a realidade de hoje. Mas ninguém se incomodou com isto. Nem sequer um sarcasmo se fez a este propósito, na numerosa família dos jornais que hostilizam tal candidato. Portanto, se algum speaker quiser tentar o mesmo "golpe", nada tem que temer.
Assim pois, o rádio, o jornal, o slogan podem tudo. Tudo, não, quase tudo. Porque há sempre uma classe de renitentes, mal-humorados, de "marginais" segundo a péssima expressão que se vai tornando consagrada. Esses são os que não gostam: não gostam do slogan, não gostam do rádio, não gostam do jornal, não gostam de nada do que gostam os outros. Como convencer a estes? A repetição parece irritá-los. Raciocinar é perder tempo. Depois, o resultado do raciocínio é muito duvidoso. Às vezes acontece até que se sai envergonhado. Então o melhor processo qual é? Semear o terror. Uma polícia bem organizada, onipotente, que tem microfones ocultos em todas as cortinas, todos os tapetes, todos acolchoados, que tem espiões em todos os ônibus, todos escritórios, sabe bem quais são os descontentes. Aos mais brandos, paralisa-se por meio do terror branco. Seus requerimentos são indeferidos, suas promoções canceladas, suas aspirações contrariadas. Tudo se frustra em redor deles. Marcam passo. E se insistem em se manifestar descontentes, retrocedem. Aos poucos, todos se vão calando. Uns porque se cansam. Outros, porque se sentem sem influência para continuar a falar. Outros, enfim, porque entrevêem a causa de seus males, e acham prudente mudar de jeito. Acontece que as idéias que temos e não exprimimos, por isto mesmo que não as exprimimos tendem por vezes a se estiolar e a murchar em nós. E, aos poucos, o descontentamento dos descontentes vai baixando de ponto. Chega até a desaparecer. Para que descontentar-se? Não adianta... Há alguns que persistem. Mas são minoria. Minoria pequena, ruidosa mas que se vence de outro modo: é o campo de concentração. Ali se dissolvem os últimos resíduos de descontentamento. E está tudo acabado. * * * É o que explica que as ditaduras do século XX, as vermelhas como as pardas, têm dominado afinal por estes dois meios. Simplesmente com os Dips e Deips (**), e com a intimidação policial, têm elas feito tudo quanto quiseram. Seria uma perigosa ilusão que imaginássemos que a ação destes meios foi, na Europa, apenas superficial. Ela impressionou a fundo os povos, destruiu resistências que pareciam insuperáveis e despertou fanatismo que tem sobrevivido a tudo. Onde o remédio? Enganam-se os que pensam em apenas abrir os cárceres, demitir os policiais e quebrar os microfones. O remédio por excelência consiste em recristianizar o homem-massa do século XX, fazendo dele uma pessoa humana racional e cristã. Mas estas coisas, hoje em dia, quem as entende? (*) Nota: Os negritos são deste site. Para se compreender mais a fundo o pensamento do Autor sobre o assunto, convém que se leia o que escreveu em sua obra-mestra “Revolução e Contra-Revolução”, Parte I, Cap. XII, N. 1, sobre o caráter pacifista e antimilitarista da Revolução que pretende que a ciência aboliria as guerras, as forças armadas e a polícia (cfr. http://www.pliniocorreadeoliveira.info/livros.asp) (**) Nota: No período do Estado Novo (1937-1945), o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) e os DEIPs (Departamentos Estaduais de Imprensa e Propaganda) acabam por dominar a produção de jornais cinematográficos, eliminando os concorrentes e levando ao desaparecimento a maioria das produtoras independentes. A propaganda (governamental ou privada) era a base de sustentação dos filmes documentais.
|