Legionário, Nș 706, 17 de fevereiro de 1946
A solenidade de amanhã
As notícias provenientes da Cidade do Vaticano informam que o Corpo Diplomático junto a Santa Sé fez uma "demarche" coletiva para obter da Secretaria de Estado o privilégio de participar do Consistório em que vão ser concedidos os chapéus vermelhos aos Cardeais recentemente nomeados.
A atitude dos diplomatas não terá sido tomada sem o consentimento, pelo menos tácito, dos respectivos governos. Assim, pode-se considerar que quase todas as nações do mundo quiseram expressamente estar presentes àquele ato, manifestando de modo delicado e nobre, seu agradecimento pela honra que o Papa Pio XII lhes concedeu, com a internacionalização ainda mais ampla do Sacro Colégio.
Por sua vez, este gesto vem demonstrar o alto grau de importância moral e política que todos os governos do mundo reconhecem ao Papado. Em toda a longa e gloriosa história do Vaticano, durante a qual tantas cerimônias brilhantes se desenrolaram sob o teto de Pedro, em nenhuma talvez, a universalidade da Igreja se tenha patenteado de modo mais evidente. Aos pés do Trono da Verdade, estarão os embaixadores de quase todas as nações do mundo. E, nos lugares reservados ao Sacro Colégio, figurarão lado a lado Cardeais europeus, americanos, asiáticos e africanos. Nunca se viu na História da Igreja que a Púrpura cardinalícia cobrisse uma tão grande porção da terra. Dir-se-ia que a sombra do báculo de Pedro cresceu, que entre suas extremidades que vão de mar a mar, de monte a monte, dos Alpes ao Himalaia fica o mundo inteiro. O quadro é de uma grandeza apocalíptica. É impossível não pensar nas lágrimas, no suor e no sangue, nas mortificações, nas preces, na paciência e no heroísmo por meio do qual a Igreja ajudada por Deus chegou a tamanha glória. Quando se pensa nos primórdios do Catolicismo, comparado por seu Divino Fundador com o pequenino grão de mostarda, e se vê hoje que a copa da árvore é maior que os mais extensos desertos e as mais vastas nações, são todas as fibras católicas que vibram e se dilatam nos nossos corações. Do esplendor desta magnífica realidade se desprende uma voz, porque os fatos falam. E esta voz, eco de outra Voz, nos diz com firmeza maior do que nunca: "non praevalebunt". Do que adiantou a Nero, a Lutero, ao Comité de Salut Public, aos comunistas, investir contra a Igreja com uma fúria desabrida e ferina? Do que adiantou a Juliano o Apóstata, aos jansenistas, aos modernistas, aos nazistas, procurar infiltrar-se como um cupim silencioso e cheio de lepra, nas próprias fileiras dos católicos? "Non praevalebunt". Não prevaleceram.
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Está dito, porém, que as alegrias, neste vale de lágrimas, nunca serão completas. Uma sombra passa diante de nossos olhos. Se é tal, tão universal, tão incontrastável o prestígio da Igreja, como explicar que ela esteja à margem da Organização das Nações Unidas? Como explicar que, precisamente neste fastígio de sua universalidade, ela seja mantida à margem da universal organização dos povos? Se a circunda uma auréola de prestígio, é impossível não reconhecer que é no exílio, é fora de seu trono natural, que é a presidência das nações cristãs, é fora de tudo isto, que nasce em torno dela este arrebol de glória. Extraordinária expressão de sua força, que brilha até mesmo no isolamento. Mas motivo não menos extraordinário para que temamos por esta humanidade que vê a Luz, mas que não se utiliza dela para "iluminar a casa inteira", para iluminar e dirigir a sociedade universal das nações.
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Como de direito, no longo cortejo dos Cardeais, que com os olhos do coração daqui divisamos, duas figuras fixam particularmente nossa atenção. Já duas vezes, no maior Senado da terra, receberam o chapéu cardinalício ilustres brasileiros. Dom Joaquim Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti e Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra deixaram no Sacro Colégio um sulco cujo brilho ilumina o caminho que hão de seguir Dom Jaime de Barros Câmara e Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota. Mas é necessário acentuar que a missão dos nossos dois atuais Cardeais é ainda mais rica em brilhantes perspectivas, do que aquela que a Providência colocou sobre os ombros apostólicos dos dois Cardeais já falecidos.
O Brasil se apresenta hoje, no concerto das nações, como uma força que nasce. Nossos recursos começam a pesar decisivamente na economia mundial. Nosso potencial humano já é tomado em consideração por todos que fazem estatísticas de guerra. Nossa posição geográfica começa a fazer de nós uma potência de primeira classe, neste "mare nostrum" dos povos civilizados, que é o Oceano Atlântico. Nossa vida intelectual se vai firmando e, em todos os sentidos, começam a aparecer entre nós valores que marcam uma ascensão nas atividades do espírito. Hoje já somos alguma coisa. E, sobretudo, não há quem não veja que amanhã poderemos ser quase tudo.
Este Brasil tão rico em tudo, é sobretudo rico da maior das riquezas. É católico, profundamente católico, e o batismo de Anchieta, que o consagrou a Deus em seus primeiros passos, até hoje não foi repudiado. Aos missionários sucederam os organizadores de nossa vida religiosa já irrevogavelmente firmada no solo agreste do novo mundo. A Hierarquia Eclesiástica se desdobrou aos poucos, e é hoje em nossa terra uma grande falange de pastores, cujos rebanhos crescem dia a dia. Cinco séculos em que Bispos, Clero, Religiosos, fiéis, trabalharam e lutaram para confirmar a graça recebida nas primeiras missões, frutificam nos dias de hoje. E tudo isto promete frutificar ainda mais amanhã.
É fácil imaginar com que carinho, com que predileção toda especial a Santa Sé vê hoje em dia este quinhão inapreciável de seu império espiritual. E é fácil imaginar com que atenção, com que simpatia, com que respeito todos os olhos se voltarão para os dois Prelados que o Sumo Pontífice encarregou da honra incomparável de velar pelos interesses mais delicados, pelos assuntos mais altos e mais nobres, que se referirem ao Reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo nas terras iluminadas pelo Cruzeiro do Sul.
Não fosse um deles o nosso próprio Metropolita, a quem nos prendem os laços de uma filiação espiritual selada com o próprio Sangue de Cristo, e ainda assim, como católicos e como brasileiros, não poderíamos deixar de nos associar a seu júbilo, em situação tão privilegiada em que se aproximarão do Trono de S. Pedro.
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Como de direito, porém, o máximo de nosso filial afeto voa aos pés do Santo Padre. Ubi Christus ibi Deus; ubi Ecclésia ibi Christus; ubi Petrus ibi Ecclesia. Só nos unimos a Deus em Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Homem e verdadeiro Deus. Só nos unimos a Jesus Cristo na Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana que é o próprio Corpo Místico do Senhor. E só estaremos unidos a Nosso Senhor Jesus Cristo, mediante uma união sobrenaturalmente forte, união de vida e de morte, à Cátedra de São Pedro. Onde está Pedro, aí está a Igreja de Deus.
Dizem as notícias telegráficas que o Santo Padre pronunciará nesta ocasião um discurso de grande importância, seguido poucos dias depois de mais outro, igualmente importante. Aguardamos sua palavra com amor e confiança. Amor e confiança que, como de costume, se traduzem num inabalável propósito de adesão e submissão.
Não há melhor meio de testemunhar amor ao Papa, senão obedecendo-lhe. E obedecer significa fazer aquilo com que estamos de acordo, e aquilo que por nossa própria vontade faríamos. Significa aceitar como verdadeiro o que ele ensina e nós vemos que é verdadeiro, e o que ele ensina e a nossos olhos mortais pareceria fraco e errôneo.
Depois de tão universais convulsões em todos os sentidos e em todos os domínios, o que dirá o Santo Padre? Não o sabemos. Mas quando no ato de receber o chapéu cardinalício nossos dois Cardeais brasileiros se prostrarem no chão inteiramente, segundo o velho ritual, para testemunhar sua submissão ao Pontífice, sabemos que o Brasil estará com eles. O Brasil todo, e esta pequena, mas ardente parcela do Brasil católico, que é o "LEGIONÁRIO".