Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Igreja e poder temporal

 

 

 

 

Legionário, 20 de fevereiro de 1944, N. 602, pag. 5

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Telegrama de Londres nos dá notícia das declarações de Lord Trenchard, segundo as quais “à custa de um grande número de perdas, seria inadmissível qualquer esforço para impedir a destruição de Roma”. Diante desta tremenda ameaça que paira sobre a Santa Sé, nosso coração de católicos se confrange e não podemos deixar de pensar que essa situação de falta de garantias para o Soberano Pontífice, que se encontra nas mãos das hordas nazistas, é fruto da usurpação dos Estados pontifícios e dessa “diferenciação da esfera própria da sociedade política e de seu objeto temporal”, tão do agrado daqueles que limitam a “esfera própria” da Igreja às quatro paredes da sacristia.

Muito oportuno se torna, portanto, relembrar algumas verdades sobre o poder temporal da Santa Sé, através das páginas do livro “O protestantismo comparado com o Catolicismo em suas relações com a Civilização europeia” (1842-1844) do grande Balmes:

Padre Jaime Balmes (1810-1848), presbítero, filósofo e apologista espanhol

Poder temporal - Por muito tempo esta palavra tem sido o espantalho dos reis, a senha dos partidos anticatólicos, o laço onde têm caído muitos homens de boa fé, o alvo contra que, com mais liberdade, têm assestado seus tiros os descontentes políticos, os escritores ofendidos, os canonistas adustos; e nada mais natural, pois, que nesta matéria achavam largo campo para desafogar seus ressentimentos e verter suspeitosas doutrinas, certos de que aparentando zelo pelo poder dos monarcas encontrariam, para os azares que pudessem oferecer-se, decidida proteção nos palácios dos reis. Não é aqui o lugar de discutir uma matéria que tem dado campo a tão acaloradas e eruditas disputas. E seria isto tanto menos oportuno quanto não é natural que, na atualidade, potência alguma nutra receios com respeito a usurpações temporais da Santa Sé. Esta, que, digam o que disserem seus inimigos, tem mostrado em todas épocas, até humanamente falando, mais prudência, mais tino, sofrimento e cordura que nenhum outro poder da terra. Tem sabido também nos dificílimos tempos modernos colocar-se em tal posição que, sem diminuir sua dignidade, sem a apartar de seus altos deveres, a deixa não obstante desembaraçada e flexível para se haver conforme reclamem as circunstâncias diferentes.

É indubitável que o poder temporal do Papa se havia, com o decorrer dos tempos, elevado a tão grande altura, que já não era somente o sucessor de São Pedro, senão um consultor, um árbitro, um juiz universal de cujas determinações era perigoso dissentir, até em negócios meramente políticos. Com o movimento geral da Europa, este poder se havia debilitado algum tanto. Contudo, quando o protestantismo apareceu, conservava tal ascendente nos ânimos, inspirava tais sentimentos de veneração e respeito, e dispunha de meios tão poderosos para defender seus direitos, sustentar suas pretensões, apoiar seus juízos e fazer respeitar seus conselhos, que ainda os monarcas mais poderosos da Europa consideravam como inconveniente de muita gravidade, num negócio qualquer, ter como adversário a corte de Roma; por cujo motivo procuravam sempre, com grande afinco, captar sua benevolência e alcançar sua amizade. De maneira que Roma havia se constituído em centro geral de negociações, e não havia assunto importante que pudesse subtrair-se à sua influência.

Tanto se tem declamado contra esse poder colossal, contra essa pretendida usurpação de direitos, que só parece que os Papas foram uma série de profundos conspiradores, que com seus manejos e artifícios a nada menos aspiravam que à monarquia universal.

Já que se tem querido blasonar de espírito de observação e de análise dos fatos, era necessário reparar que o poder temporal dos Papas se robusteceu e estendeu quando ainda não se achava verdadeiramente constituído nenhum dos outros poderes. Assim, chamar-lhe usurpação é não só uma inexatidão, senão também um anacronismo.

*

O transtorno geral em que se achavam sumidas todas as sociedades europeias com a irrupção dos bárbaros, na informe e monstruosa amalgama que se fez de raças, costumes e tradições, não ficou nenhuma base sobre que pudesse estabelecer-se a civilização e a cultura, nenhum ponto luminoso que iluminasse aquele caos, nenhum elemento bastante para fecundar de novo as sementes de regeneração que jaziam sepultadas no meio das ruínas e do sangue, senão o cristianismo. E assim é que dominando, humilhando, aniquilando os restos das outras religiões, se eleva como solitária coluna no centro duma cidade arruinada, como tocha brilhante no meio dum horizonte de trevas.

Bárbaros como eram os povos conquistadores e exaltados com seus triunfos, dobram, contudo, a cerviz debaixo do cajado dos pastores do rebanho de Jesus Cristo. E estes homens tão novos para eles, que lhes falam uma linguagem superior e divina, adquirem sobre os ferozes caudilhos daquelas horas um ascendente tão eficaz e duradouro, que não bastou para o destruir o decorrer dos séculos. Eis aqui a raiz do poder temporal. E bem se compreende que elevado o Papa sobre todos os demais pastores no edifício da Igreja, como a soberba cúpula sobre as demais partes dum magnífico templo, seu poder devia também levantar-se sobre o poder temporal dos simples Bispos, lançando além disso raízes mais profundas, mais robustas, mais travadas e estendidas. Todos os princípios de legislação, todas as bases de sociedade, todos os elementos de cultura, tudo quanto havia ficado de artes, de ciências, tudo estava nas mãos da religião, e tudo se colocou muito naturalmente à sombra do sólio pontifício, pois que este era o único poder que se exercia com ordem, concerto e regularidade, o único que oferecia razões de estabilidade e firmeza.

Sucederam-se umas guerras às outras, uns transtornos a outros transtornos, umas formas a outras formas, porém o fato grande, geral, dominante, foi sempre o mesmo. E é coisa de rir ouvir tanto falador apelidando um fenômeno tão natural, tão inevitável e sobretudo tão proveitoso, “série de atentados e usurpações contra o poder temporal”.

Para que um poder seja usurpado é mister que exista, e onde existia então? Nos reis, joguetes, e a cada passo vítimas de orgulhosos barões? No povo, tropa de escravos que, graças aos esforços da religião, se ia lentamente emancipando? Que reunindo-se para resistir aos senhores, levantando a voz para reclamar a proteção dos reis, ou pedindo à Igreja auxílio contra os atropelamentos e vexações duns e outros, era não mais que um confuso embrião de sociedade, sem regras, fixas, sem governo, sem leis?

Com que boa-fé se tem podido comparar os nossos tempos com aqueles tempos, querendo-se aplicar regras de deslindar, só admissíveis em sociedades que tendo já desenvolvido os elementos de vida e civilização e assentadas sobre bases firmes e duradouras, ordenam as funções dos poderes sociais, entrando em minuciosos detalhes, sobre o limite das respectivas atribuições?

Não se devia ter esquecido que discorrer doutra maneira é pedir ordem ao caos, regularidade às ondas duma tormenta. Também não se devia ter esquecido um fato geral e constante como fundado na mesma natureza das coisas, fato de que dá repetidas lições a história de todos os tempos e países, e que se tem mostrado dum modo muito notável nas revoluções dos povos modernos, o qual é que sempre que há na sociedade uma grande desordem, se apresenta um princípio forte para a contrastar.

Começa-se a luta, repetem-se, avivam-se, multiplicam-se os choques, porém afinal cede o princípio de desordem ao princípio de ordem e por muito tempo fica dominante na sociedade o que obteve o triunfo. Este princípio será mais ou menos justo, mais ou menos racional, mais ou menos violento, mais ou menos apto para preencher o objeto de seu destino. Porém, seja qual for e como quer que for, sempre prevalece, a menos que durante a luta não se apresente outro melhor e mais forte que possa substituí-lo.

Pois bem, na Idade Média este princípio era a Igreja cristã, e era Ela a única que o podia ser. Porque em seus dogmas tinha a verdade, em suas leis a justiça, em seu governo a regularidade e a prudência. Era Ela então o único elemento de vida, a depositária do grande pensamento que devia reorganizar a sociedade. E este pensamento não era abstrato e vago, mas sim positivo e prático, aplicável, como descido da boca dAquele cuja palavra fecunda o nada e faz brotar a luz do meio das trevas. Assim devia suceder que tendo os seus dogmas penetrado o coração da sociedade, também se devia apoderar dos costumes a sua moral pura, fraternal e consoladora e que as formas de governo, os sistemas de legislação, participassem mais ou menos de sua poderosa influência.

Isto são fatos, nada mais que fatos, e analisando-se com eles outros, como é que o centro desta religião que com tão legítimos títulos ia estendendo seu proveitoso predomínio, estava nas mãos do Pontífice romano, bem claro é que seu poder se devia achar elevado sobre todos os outros poderes da terra.

*

Depois de contemplar esse magnífico quadro que a nossos olhos desenrola a fiel e simples narração da história, deter-se nos efeitos ou vícios de alguns homens, alegar demasias, erros ou vícios, patrimônio inseparável da humanidade, andar em busca deles através de larga série de tenebrosos séculos, amontoá-los, reuni-los num ponto de vista para que firam com mais forlça e surpreendam a credulidade e ignorância, insistir sobre os mesmos, exagerando-os, desfigurando-os e cobrindo-os de negras cores, é ter mui curta vista, é conhecer muito escassamente a filosofia da história. E, sobretudo, é mostrar espírito parcial, vistas pouco elevadas, sentimentos mesquinhos e rancorosos. É preciso dizê-lo em alta voz, para que se ouça, é preciso repeti-lo uma e mil vezes, para que não se olvide: não se respeitam os limites que não existem, não se violam as leis quando se formam, não se introduzem perturbações na sociedade quando se faz desaparecer o caos que a envolve. Isto fez a Igreja, isto fizeram os Papas”.


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