Plinio Corrêa de Oliveira
Nova
et Vetera
Legionário, 30 de janeiro de 1944, N. 599, pag. 5 |
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Diz Nosso Senhor que todo homem instruído no que respeita ao reino dos céus “é semelhante a um pai de família, que tira de seu tesouro coisas novas e velhas”. Daí o título desta secção que hoje se incorpora às páginas do LEGIONÁRIO. Será uma crônica de transcrições. Escolhemos para inicia-la um capítulo do velho e atualíssimo livro de Louis Veuillot, “Le Parfum de Rome” (O Perfume de Roma). Modesta homenagem de um jornal ultramontano ao maior ultramontano leigo de todos os tempos. ***
Estátua de Carlos Magno na basílica de São Pedro, Vaticano, Agostino Cornacchini, 1725 Em uma das salas do Vaticano, vi a figura de Carlos Magno: Carolus Magnus, Romanae Ecclesiae ensis clypeusque – Espada e escudo da Igreja romana, da Igreja de Jesus Cristo! – Posso dizer que essa inscrição em afresco, num recanto do Vaticano, me faz compreender a glória. Falemos ainda de Carlos Magno. Em Roma, ele está bem vivo. As relações de Carlos Magno com o Papa Adriano são um episódio encantador da história. Dão bem a estatura de Carlos Magno, porque nelas vemos sua humildade. Um herói, um conquistador, um imperador humilde, eis o que sai por completo das proporções humanas. Napoleão I, alta figura, gostava de ser chamado o Carlos Magno moderno; tinha o sentimento da grandeza. Entretanto, ele antes nos traz à memória Frederico da Prússia. Entre Carlos Magno e Napoleão, a diferença ressalta sobretudo na maneira de proceder para com o Papado. Carlos Magno, chegando às portas de Roma, depois de haver reposto Pedro na posse de todo seu território, pediu permissão ao Papa para entrar na cidade.
A primeira laje de pórfiro que se encontra na nave (da Basílica) de São Pedro é aquela sobre a qual Carlos Magno se ajoelhou na soleira da igreja de Latrão. O tratado de Tolentino não é o equivalente dessa estreia, e a linhagem de Napoleão não corresponde à linhagem de Carlos Magno. As cartas de Napoleão a Pio VII, tão conciliante, tão doce, tão desarmado, são duras, injuriosas mesmo, e ameaçadoras. A ameaça não ficou sem efeito. O casamento do irmão Jerônimo com uma jovem da América foi um incidente terrível. Napoleão exigiu sua ruptura. O Papa não viu nenhum meio de consegui-la. Napoleão foi adiante, descasou e casou de novo seu irmão. Carlos Magno, aos vinte e oito anos, havia acreditado poder legitimamente repudiar Himiltrude e se unir a Hermengarda. O Papa, guarda das santas leis, o incita a abandonar a concubina e de novo se unir à esposa: Carlos Magno obedece. É sempre belo obedecer à lei divina, e isto é belíssimo quando se tem bastante poder humano para viver sem ela. Ademais, esta atitude é muito sábia: porque a obediência à lei dispensa da obediência à força. Carlos Magno teve a humildade de obedecer ao Papa, mas não teve a humilhação de obedecer aos saxões. * Carlos Magno não é somente mais piedoso que Napoleão, mais esclarecido em sua fé, mais largo em suas vistas e em suas obras. Ele é incomparavelmente mais civilizado. Suas cartas ao Papa são de uma urbanidade requintada. Ele próprio traçava o programa das formas de que seus embaixadores deviam usar ao se dirigirem ao Vigário de Jesus Cristo: “Eles saudarão primeiramente o Papa em nome de seu filho, o rei Carlos e em nome de sua filha, a rainha, em nome dos filhos e das filhas do rei e de toda a casa real, em nome dos Sacerdotes, dos Bispos, dos Abades e dos Religiosos, e enfim da universalidade do povo dos Francos. “Os embaixadores lhe dirão: ´O rei considera como alegria e prosperidade o ter recebido notícias de vossa saúde conservada por Deus, e a boa situação de vosso povo, Populi vestri´. Napoleão escrevia a Pio VII: “Vossa Santidade é Soberano de Roma, eu, porém, sou seu imperador”. Ele pretendia ter herdado este título de Carlos Magno! Quanto a exigências, ordinariamente Carlos pedia orações para seu povo e para si próprio. Temos a resposta que uma vez foi dada a seus embaixadores: “Ao excelentíssimo senhor nosso filho e companheiro espiritual Carlos, rei dos Francos e dos Lombardos, patrício romano, Adriano, Papa. “Vossas palavras reais, muito estimadas por Nós, Nos fizeram conhecer a prosperidade perfeita de Vosso Alto Poder, de vossa esposa, de vossos filhos e de vossos principais fiéis, que são também nossos. Nós respondemos graças ao Redentor do mundo. Bendizemos a Deus quando vemos as vitórias que Ele vos concedeu, e como os povos cruéis e inimigos foram por vós levados à verdadeira Fé da Igreja Católica. Pela proteção de Deus e intervenção dos apóstolos Pedro e Paulo, eis as cabeças submetidas, os chefes subjugados; a inspiração divina e Vosso Poder conduzem toda a nação saxônica às fontes sagradas do batismo. “Cada vez mais nós glorificamos, portanto, a divina Clemência, porque, sob vosso reino e o Nosso, povos pagãos são elevados à verdadeira religião e à Fé perfeita, ao mesmo tempo que submetidos a vós. Aí está o sustentáculo de Vosso Poder fundado em Deus. Fiel às promessas que haveis feito a vosso protetor São Pedro e a Nós, e as cumprindo com um coração puro e devotado, ajudado pelo alto, vós subjugastes as mais valorosas dessas nações. Elas se rendem agora; colocam-se por si mesmas sob vosso cetro. Assim, para a salvação de suas almas, no dia do Juízo, diante do tribunal de Cristo, vós apresentareis muito dignas oferendas, obtereis méritos infinitos. “Para recompensa dessas obras, vitórias de vossa perseverança, desejais, Excelente Senhor, que rendamos públicas ações de graças a Deus, e que em uma ou duas férias cantemos litanias solenes. Semelhante desejo Nos é perfeitamente agradável. Por conseguinte, dando uma ordem apostólico a todos os países que se acham em comunhão com a vossa Mãe, a Igreja Romana, decretamos que se reze conosco, sob a proteção de Deus, na vigília do bem-aventurado João Batista, na festa dos santos mártires, e na vigília do bem-aventurado Pedro. Que, desta forma, Vosso Poder transmita ordens a todos os países ultramarinos em que exista uma nação cristã a fim de que essas litanias de três dias sejam celebradas. Determinamos esta medida de tempo para as Cristandades longínquas colocadas fora de vosso domínio. “Quanto a Nós, não somente decidimos celebrar estes dias de súplicas, mas segundo nosso costume, desejando rezar sem interrupção por Vosso Poder, resolvemos compor louvores ao Redentor do mundo, a fim de que as nações que foram levadas à Fé por vossas batalhas, nela se conservem para sempre por vosso poder, e que Deus afaste de vossos domínios e dos Nossos as doenças e a peste, de tal sorte que em vossos dias e durante os Nossos, o povo que nos está confiado viva em grande abundancia, alegria e prosperidade e que vós mesmo, Rei, vossa rainha e vossos nobres filhos, gozando de um longo reino aqui na terra, mereçais um reino sem fim nas celestes moradas. E possa, por vossos trabalhosos combates, vossa Mãe a Santa Igreja ser cada vez mais exaltada!” * Assim se correspondiam o grande Rei e o grande Pontífice. E as vitórias da nação dos Francos eram um motivo de ações de graças para todos os cristãos que existiam sobre a terra. O Papa ordenava que se rezasse pelo rei Carlos, mesmo aos povos que não se achavam sob seu domínio. É que, com efeito, o herói da Igreja era o libertador de todos. Suas leis, inspiradas em Nosso Senhor, aliviavam os corpos do peso da servidão, as almas do peso do erro; sua espada, que derruba os ídolos, resguardava, de longe, as nações que não lhe pertenciam. * Quando o Santo Padre Adriano passou a uma vida melhor, o rei Carlos desejou escrever seu epitáfio. Compôs um pequeno poema que foi gravado sobre pedra e conservado na basílica do Príncipe dos Apóstolos. A nobre lápide não ficou encoberta nas criptas da basílica reconstruída, com os escombros do antigo edifício. Ela se acha enquadrada sob o vestíbulo, à esquerda, não longe da Porta Maior. * Diz-se que Carlos Magno era a antítese perfeita de Nero. Podemos compará-los na pessoa, nas obras, na vida, na morte, por toda a parte o contraste é gritante. E o império de Carlos Magno é também a antítese acabada de toda esta ordem de fatos, de ideias e de coisas que se chama cesarismo, e que foi o império de Nero. Carlos Magno reina para Deus; é o chefe do povo cristão e se aplica em o conduzir na luz, na justiça e na paz. É para Deus que combate, que pune, que perdoa, que estuda, que constrói, que faz todas as coisas. É plenamente, como se intitulava, “Rei e governador pela graça de Deus e pelo dom de sua misericórdia, devoto defensor da Igreja de Deus e seu humilde campeão”.
O Prof. Plinio venera o trono de Carlos Magno, por ocasião de sua viagem a Aachen (Aix-la-chapelle), em outubro de 1988 Sua memória ficou como uma benção entre os povos. Foi sepultado na basílica de Aix-la-Chapelle (ou Aachen, em seu nome alemão), sua casa de ouro, que havia construído “e diligentemente enriqueceu com relíquias de Santos”. Os peregrinos ali afluem de todos os lados com uma grande piedade, entretidos pelos favores que Deus concede à sua intercessão. Sua festa é celebrada na maioria das dioceses da Alemanha, por consentimento da Igreja, desde o pontificado de Alexandre III, como a do principal propagador da Fé no Norte. Assim dizem os breviários citados no Anuário litúrgico do sábio Abade de Solesmes. A igreja de Aix-la-Chapelle canta na face de seu túmulo glorioso: “Carlos é o forte soldado de Cristo, o chefe de invencível coorte. “Purga a terra; sua espada corta o joio e protege a seara. “Eis o grande imperador, o bom semeador de uma boa semente, o agricultor prudente. “Converteu os infiéis, derrubou templos e deuses; sua mão quebrou os ídolos. “Subjugou os soberbos, fez reinar as santas leis; mas à justiça ele deu por companheira a misericórdia. “Ó rei triunfador do mundo, tu que reinas com Jesus Cristo; ó pai santo, ó Carlos, intercede por nós; “A fim de que puros de todo pecado, no reino da glória, nós, teu povo, nos tornemos habitantes do céu com os bem-aventurados!” * Assim era o imperador feito pelo Papa, e que somente o Papa podia fazer. Se não mais houver um Papa independente, os povos de Cristo poderão ver ainda os Alexandres, os Césares, os Átilas, mas não mais verão Carlos Magno. E é este um ponto a ser considerado no estudo da questão romana.
Monumento localizado junto à praça em frente à catedral de Notre-Dame, em Paris, representando Carlos Magno ladeado por seus pares Roland e Olivier |