Uma grande esperança

“O Legionário”, N.º 185, 24 de novembro de 1935

 

Será difícil avaliar toda a oportunidade de um livro que, sob o título de “Heroes”, o Seminarista Pio Ottoni Jr. acaba de publicar em São Paulo. Em uma época em que pululam os maus romances e em que todos os enredos giram necessariamente em torno de contos de amor, o livro de Pio Ottoni Jr. vem constituir uma feliz exceção, apresentando-nos uma série de contos, cujos enredos, sempre muito interessantes e às vezes até empolgantes, se afastam invariavelmente do lugar comum em que se debate quase toda a literatura contemporânea.

Poucas pessoas terão, talvez, sentido tão profundamente quanto eu, a inexorável monotonia da maior parte dos romances que nossas livrarias despejam diariamente às centenas sobre o público. Como todo o mundo, ou quase todo o mundo, tive uma época em que o romance gozou para mim de muito prestígio: foi no período áureo dos meus já distantes quinze anos, em que devorara horas a fio as tortuosas aventuras de Posson du Terrail. Depois disto, porém, uma saciedade crônica me invadiu de que, felizmente, até hoje não me curei. Lembro-me que, certa vez, procurei ler um romance, aliás de excelente autor. Não consegui fazê-lo. A banalidade dos personagens e do enredo, parecidos com todos os personagens e todos os enredos sobre que já me havia debruçado, me enchia de tédio e, quando menos esperava, meu pensamento estava distante, a cogitar de assuntos inteiramente alheios ao pobre livro que tinha nas mãos.

Pois a despeito disto, li com interesse todos os contos de “Heroes”, e nenhuma vez minha imaginação sentiu a tentação de vagabundear em assuntos que me salvassem do tédio...

É que o autor de “Heroes” possui um raro talento para compor enredos. E este talento se manifestou principalmente na perícia com que soube extrair temas realmente atraentes e de ambientes até agora quase inexplorados.

Mas além de ótimo arquiteto de enredos, o Clérigo Pio Ottoni é psicólogo de grande valor. E foi esta qualidade que fez, ao meu ver, do “Celito” o melhor dos seus contos.

Celito” é um menino educado em casa com carinhos e hábitos quase femininos, na moleza de uma família rica e excessivamente afetuosa, e que cai, de repente, em toda a realidade brutal e dolorosa da vida de colégio.

Só para os inconscientes, a vida de colégio pode ser considerada como uma sucessão ininterrupta de prazeres inofensivos e inocentes folguedos. Um colégio é um mundo em miniatura, e todas as paixões e perfídias humanas bem como toda a nobreza de que um coração formado é capaz, apontoam lá com uma sinceridade desabrida, que a vida se encarregará de polir futuramente.

Naquele turbilhão de vida, o gênio de Celito se manifesta de modo doloroso. “Gaté” [mimado] em casa, revolta-se contra as injunções dos regulamentos colegiais, contra os colegas, contra os mestres. Um temperamento excessivamente vivo o leva para atitudes de revolta que freqüentemente deplora sem saber conter. E, no albor de sua vida, Celito já é um pária da sociedade, colocado no Colégio “fora da lei”, e tratado com dureza pelos Mestres, que não compreendem o molejo secreto que causa na sua pequena alma de criança tantas desgraças.

Um professor mais psicólogo, vindo de fora, descobre a situação real em que Celito está prestes a naufragar. E, à custa de muita bondade, vence suas desconfianças e se transforma em seu confidente. E, em uma dessas confidências, ouve do pequeno esta dolorosa afirmação: “Padre, eu não dou para nada!”

Santo Agostinho, nas suas Confissões, tratando do período de sua infância, chama a atenção dos leitores para o erro muito comum de se consideram como insignificantes os acontecimentos que pontilham a existência das crianças. Elas nos fazem sorrir, a nós adultos. Mas para uma criança, têm a importância de acontecimentos sensacionais.

Essa mania sentimental de se considerar a alma de uma criança como um mar tranqüilo, conduz freqüentemente aos mais funestos resultados. Realmente, a superfície do mar parece, às vezes, tranqüila. Mas sabe Deus os maremotos que se agitam no fundo, as correntes que o atravessam nas suas camadas mais profundas, os abismos que a superfície tranqüila encobre! Quantas vezes é assim a alma de uma criança!

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Com todas estas qualidades, o Sem. Pio Ottoni aparece, logo de início, como uma grande esperança.

Na Messe do Senhor, será o pastor das ovelhas incompreendidas, será o ceifador que não se limitará em colher espigas, mas em apanhar no chão o grão esquecido que outros deixaram cair sem perceber, e que alguns pisam pelo caminho.

Desses operários, precisa-os muitos a Messe do Senhor.

Que Nossa Senhora ajude o Pastor que o Senhor prepara para trabalhar na sua Messe, auxiliando-o a arcar com as terríveis responsabilidades de tantos talentos, que lhe são dados para que os faça render cem por um!