À margem dos acontecimentos
“O Legionário”,
N.º 151, 5 de agosto de 1934
A posição superior e desapaixonada que os católicos
assumiram em face dos acontecimentos que vêm empolgando a nação brasileira,
lhes permite uma visão muito mais clara e mais profunda da realidade, do que
aos que, diretamente envolvidos pelo curso acidentado da vida política, são ao
mesmo tempo espectadores e atores do drama nacional.
Será curioso analisar as causas que, neste “deserto de
homens e de idéias” tão justa e pitorescamente descrito pelo ex-ministro
Oswaldo Aranha, a luta partidária se vai ferindo, de Norte a Sul do País, sem
que uma grande idéia ou programa de palpitante atualidade explique tão intensa
fermentação. E é com legítimo orgulho que nós católicos podemos apontar a nossa
Liga Eleitoral [Católica] como uma exceção, que procura situar-se num campo
elevado, “fora e acima dos partidos”, para daí intervir nas pugnas eleitorais,
tendo em vista tão somente a defesa de seu programa espiritual.
Será curioso analisar causas remotas do desinteresse
geral de nosso povo por questões de programa.
Desde logo, um problema posto em grande atualidade
pelos últimos desmandos abissínios da política européia reclama nossa atenção.
A despeito do que se diz da política brasileira de todos os graus, federal,
estadual e municipal, será ela realmente mais cúpida e menos idealista do que a
da maior parte das potências européias? A julgar pelos últimos dramas de que
foram cenário a Alemanha de Von Schleicher, a Áustria
de Rintelen ou a França de Stavisky,
parece que não. Neste caso, como explicar que a Europa, nas suas lutas
eleitorais, se deixe empolgar no mais alto grau pelas questões de programa,
enquanto o eleitorado brasileiro se conduz, em face das mesmas questões, com
uma indiferença quase total?
À primeira vista, ao menos, parece certo que o apego
de um programa é um índice de idealismo do eleitorado de um partido. Assim
sendo, como explicar que este índice, tão pronunciado nos partidos europeus, é
desmentido pela realidade que nos mostra que seu nível moral é, em geral, muito
inferior aos nossos?
É que na Europa, a vida pública intervém e se entrosa
muito mais estreitamente com a vida particular do que no Brasil. Ainda somos,
felizmente, um País que progride enquanto dormem nossos governos, muito mais do
que retrocede enquanto eles estão acordados. A iniciativa particular
desempenha, na economia em geral de todas as classes sociais, um papel muito
mais relevante e mais ativo do que a iniciativa do Estado. A maioria dos nossos
problemas pode ser resolvido com muito maior vantagem pela iniciativa do
indivíduo, porque a natureza oferece, entre nós, muito maiores recursos à ação
particular do que no velho continente europeu.
Exatamente por esse motivo, os partidos políticos que
militam na Europa têm toda a vantagem em associar ao seu destino os interesses
de alguma classe social que colaborará eficientemente na propaganda eleitoral e
em toda a vida partidária, contanto que sejam defendidos os interesses
particulares.
A vida partidária aparece, pois, não como um domínio
inteiramente paralelo e alheio aos interesses particulares do grosso da
população, mas como um poderoso meio de ação para a defesa dos interesses da
classe.
E, infelizmente, sem aceitar o postulado marxista da
luta de classes, devemos confessar que o interesse, não direi de classes, mas
de grupos e de “clãs” está intimamente associado a uma grande parte dos
princípios de ordem ideológica sustentados por certos partidos.
Como conseqüência, temos de reconhecer que, se a luta
pelas idéias é sempre intensa e extensa na velha Europa, não é freqüente
encontrá-la transformada em mero pretexto de rixa entre interesses antagônicos.
No nosso tranqüilo Brasil, pelo contrário, é força
confessar que o grosso da população tem sua vida inteira orientada de tal
maneira que dificilmente lhe poderá trazer qualquer perturbação uma alteração
de ministério ou uma transformação governamental qualquer. Em geral as
repercussões imediatas de tais acontecimentos ficam restritas ao âmbito
estreito do funcionalismo público, das classes armadas, e de meios comerciais
interessados em negociar com o governo. E a vida pública interessa muito menos,
por este motivo, ao grande número, sempre constituído pelos que são medíocres
no patriotismo como na inteligência. Uma vantagem, ao menos, decorre desta
situação. É que se a luta pelas idéias se trava em uma frente de combate
bastante reduzida, atraindo apenas o interesse dos que são verdadeiramente
idealistas, ou dos jouteurs
[combatentes] intelectuais, ela corre sobre um leito muito mais límpido, não
trazendo nas suas águas a lama dos interesses individuais.
E podemos assim, mais tranqüilamente, formar os
princípios cardeais de nossa sabedoria social brasileira, que é hoje
propriedade de um grupo de raríssimos estudiosos, mas que é o trilho lançado
hoje sobre a história de amanhã, para que sobre ela caminhe, no futuro, o
Brasil.