Bastidores à mostra
O “Legionário”
n.º 149, 8-7-1934
Tem sido objeto de freqüentes cogitações dos
pensadores católicos a posição que devem assumir no estudo comparativo do
passado e do presente.
Entendem uns que a Igreja deve orientar o pensamento
humano no sentido de uma volta enérgica ao que já foi. Acham outros que ela
deve empunhar com firmeza o bastão de comando dos acontecimentos presentes,
repudiando definitivamente um passado que, se lhe ornou com muitas jóias o
diadema de glórias, cravou-lhe também muitos espinhos agudos na fronte
veneranda. Entre estas duas opiniões extremas está o pensamento dos que querem
evitar ao mesmo tempo uma ruptura criminosa com o passado e um repúdio
desdenhoso do presente. Antes de tudo, é necessário ser sincero, ser objetivo,
ser verdadeiro.
A Igreja, que sobrevive a todas as idades e a todas
as paixões, não tem interesse em se ligar indissoluvelmente ao passado, ao
presente, ou ao futuro. Mas estudando o passado, auscultando o presente,
preparando o futuro, Ela tem o sincero empenho de retirar, da lição dos fatos,
as normas de sabedoria que devem orientar os católicos na aplicação de seus
princípios.
Se, portanto, o historiador ou o sociólogo católico
exalta os benefícios do passado ou estigmatiza os vícios do presente, ele não
deve por [isto] permitir que sua atitude seja interpretada como reflexo do
suposto “saudosismo” incorrigível da Igreja. É preciso tomar sempre as cautelas
devidas para que a ninguém pareça que, instituição oriunda de um passado
remoto, só neste passado e nas suas condições mesológicas
peculiares pode a Igreja viver. Quanto mais a Igreja verbera a decadência moral
do século, tanto mais ela afirma, implicitamente, a integral atualidade de sua
ação. É exatamente quando se aponta o mal, que mais do que nunca se afirma a
oportunidade do remédio.
Foi necessário que dois imensos escândalos
estourassem simultaneamente em duas das mais civilizadas nações européias, para
que se conhecesse ao vivo a impureza das lavas incandescentes que borbulham no
subsolo da sociedade contemporânea.
Ainda não estavam abafados os últimos ecos do
rumoroso caso de Lindberg, que mostrou ao mundo
estarrecido a misteriosa impotência da polícia americana diante de não sei que
máfias (...); ainda não estava encerrado o inquérito sobre o escândalo Kreuger, que desvendou aos olhos do público todo o sale tripotage
[sórdida mixórdia] de uma camorra dourada de estadistas, banqueiros e
notabilidades internacionais, funcionando em engrenagem com outras camorras
douradas de personagens ilustres; e já o affaire
Hanau, a inominável trapaça de deputados, senadores e
magnatas, atraía todas as atenções para o escândalo da “Gazette
du Franc” e mostrava a
extensão alarmante da corrupção contemporânea.
Foi então que arrebentou o inominável escândalo de Stavisky [nota: Alexandre Stavisky
(1866-1934), natural da Ucrânia, estava na raiz de um caso de fraude no Crédito
municipal de Bayonne, descoberto em dezembro de
1933], em que uma população tradicionalmente republicana, democrática e
liberal, como a da França, saiu pelas praças públicas a dar morras à
democracia, ao Parlamento e ao Governo, acumpliciados com os defensores
intransigentes dos bandidos que o clamor público perseguia. E à luz dos
incêndios que então o populacho ateou, pudemos surpreender por minutos a
fisionomia de uma outra república francesa, a verdadeira filha de 1789, despida
da maquillage
oficial com que a apresentam as agências telegráficas: um Parlamento
sistematicamente submetido a forças de bastidores, vivendo em simbiose de patifarias
com um governo cúmplice de Stavisky. Sobre toda esta
corrupção, o lema de igualdade, liberdade, fraternidade, escarnecendo da nação
defraudada e algemada, que os documentos oficiais chamam soberana!
Ainda estávamos abatidos e humilhados pela visão macabra
de uma tal decomposição moral grassando no seio da Primogênita da Igreja, como se comprazia em chamar à França de
antanho, e já o estampido das balas que abateram Von Schleicher
e Roehm desviaram nossa atenção da França para a
Alemanha, onde se rasgava violentamente o abscesso de uma crise interna do
regime hitlerista. E o que vimos nós dentro deste cenário de uma Alemanha que
se pretendia renovada? Além de uma imoralidade que uma folha católica não pode
registrar, a corrupção instalada nos mais altos graus da hierarquia hitlerista,
tão ufanosa de sua capacidade reformadora! Ou os conchavos indignos com
potências estrangeiras, os intuitos subversivos e ambiciosos, os banquetes no
comando geral das tropas hitleristas, a famosa cena do automóvel que chegou com
dez copeiros portadores de um banquete que até Galba,
Othão e Vitelo invejariam, etc., são verdadeiros, e
nesse caso vemos a impotência moralizadora visceral de qualquer ação meramente
política; ou então todos os fatos são falsos, a ambição de Hitler foi o único
móvel dos fuzilamentos, e a mesma tese se confirma com vigor ainda maior. Em
qualquer caso, porém, dessa chaga que se abriu, um intenso odor de gangrena se
alastrou por todo o mundo.
Não contestamos a utilidade das soluções políticas.
De que valem elas, porém, se não tiverem em seu apoio a força moralizadora do
Catolicismo?
A democracia voltou-se contra a Igreja. Hoje ela cai
sobre a ruína do país que a engendrou, vítima da corrupção completa dos
caracteres.
O hitlerismo soube golpear a hidra liberal. Mas das
sete cabeças do monstro, uma ele poupou: a da impiedade. E é esta,
precisamente, que hoje o devora.
Quando, finalmente, tomarão os povos o caminho de
Roma, onde os aguarda a Cátedra Apostólica, que só ela nos mostra a via, nos ensina a veritas e nos dá a vita? [“Ego sum via, veritas et vita” – “Eu sou o caminho a
verdade e a vida” (Jo. 14, 6)]