Perspectivas de paz

 

“O Legionário”, N.º 148, 24 de junho de 1934

 

Não sei se escandalizarei excessivamente meus leitores afirmando que, neste momento em que finalmente parecemos ter atingido a ordem civil tão almejada, senti, com surpresa para mim, uma vaga nostalgia ao lançar um olhar retrospectivo sobre as angústias e cruéis incertezas do período revolucionário da onipotência militar.

Não se desfibrou certamente em mim a energia do sentimento constitucionalista que sempre me empolgou. Não se enfraqueceu indubitavelmente em mim a solidariedade que prestei, e presto, a todos os elementos produtivos e realmente úteis da Nação, quando suspiravam ardentemente pela pronta restauração da ordem legal. Seria preciso que se tivesse apagado em minha memória a tremenda ameaça que, para o Brasil sensato, se divisava nos desatinos legislativos e administrativos de uma facção que, conquistando os postos de mando público, timbrou em se intitular “governo revolucionário”, não receando de associar estas duas palavras que hurlent de se trouver ensemble [que urram de se encontrarem juntas].

 Seria necessário que eu já [não] me lembrasse dos dias lúgubres da ocupação militar em que, atrás de cada medida legislativa ou de cada providência de ordem geral, se notava, mal disfarçado, o espectro comunista que acompanhara até São Paulo e Rio, com sua sombra funesta, a entourage [o círculo, o grupinho mais chegado] dos promotores da “arrancada de 30”. Seria necessário, enfim, que eu negasse sentido a toda esta longa série de resistências mudas ou bélicas, com que São Paulo acabou por vencer - não com as armas, mas sem elas e contra elas - todos os obstáculos que nos afastavam da constitucionalização, e nos aproximavam, com velocidade vertiginosa, de Moscou ou ao menos de Xangai.

Lembro-me porém perfeitamente de que, em outubro de 1930, quando ardiam apenas as primeiras chamas da Revolução que vinha do sul, quando tudo parecia anunciar uma guerra civil interminável, que acabaria por arrasar o País e, com ele, não apenas as suas finanças e seu crédito internacional, mas sua unidade e as poucas tradições que ainda conservavam brasileiro o Brasil, eu senti, a par de um déchirement [uma dilaceração] de alma por este Brasil velho que se ia, e ao qual me sentia indissoluvelmente ligado por meu afeto e por todos os traços mais salientes de minha mentalidade, um secreto alívio em ver quebrar-se aquela paz densa e asfixiante em que o burguesismo brasileiro cantava, sem o saber, no esplendor de seus últimos anos de avant-crise [pré-crise], o seu canto derradeiro e estridente de cigarra inchada por seus próprios triunfos e prestes a estourar.

Sob o látego do sofrimento que sobrevinha implacável e cujas primeiras vergastadas eu senti, como poucos talvez, eu via aquela burguesia orgulhosa e otimista abrir enfim os olhos para as conseqüências dos erros que ela própria havia acumulado. Eu a vi, envergonhada e desfeita, reconhecer enfim a veracidade das profecias agourentas dos que lhe mostravam o futuro negro que sua própria insânia lhe preparara. Ela começava a reconhecer que a infelicidade existe, e que há certos sofrimentos na vida, cujo grito o jazz não sufoca, e cuja recordação, sempre presente ao coração ulcerado, não pode ser apagada pelos vapores da champagne.

E o sofrimento veio, em uma teoria  interminável de espectros que desfilavam diante de nós, carregados de ameaças. Ora o comunismo emergia da bruma dos indecifráveis programas revolucionários. Ora a pobreza batia à nossa porta, trazida por crises multiformes, que uma administração desastrada oprimia com dureza insuportável à altivez de um povo que se habituara a ostentar, na sua opulência, a dúplice coroa do poderio político e econômico.

A mais bela das reações e a mais heróica das insurreições teve como remate o mais vergonhoso desfecho. Nem sequer nos estava reservada a grandeza de uma derrota em campo raso. Foi na retaguarda que nos feriram.

Prostrou-nos o punhal e não o canhão que, só ele, era digno de nos vencer.

Chegou, finalmente, aquela hora tremenda em que o braço de Deus pesou sobre nós com uma severidade que, se era irrepreensível na sua justiça, era imensamente dolorosa no seu rigor.

Que faria nessa ocasião o patriciado paulista, aquela ilustre aristocracia rural, que salientava a glória de seus brasões com o valor de seu heroísmo e com o prestígio de sua posição?

Que faria o povo de São Paulo, famoso pela continuidade infatigável de seu labor e pela têmpera rija de seus filhos?

Na história do Brasil, São Paulo fora sempre uma terra de bravos. Nunca, porém, sua bravura fora tão malograda nos seus empreendimentos, e nem sua prosperidade tão rudemente ferida pelas reviravoltas da vida econômica.

Desta crise suprema, aquele povo, [cuja] fibra do idealismo se poderia supor substituída pela ganância burguesa do strugle for life [a luta pela vida], sairia irremediavelmente golpeado na sua grandeza primitiva?

E veio o 3 de Maio a mostrar ao Brasil o que os três anos de martírio haviam feito dos paulistas.

Heróis, eles o foram como sempre, não desanimando ao serem desarmados na retaguarda, mas sabendo, com uma presteza inconcebível, passar da luta militar [para a] eleitoral, trocando o fuzil pela carteira de eleitor, para encetar neste novo terreno mais uma batalha desta guerra em que eles já podiam contar mais de cem derrotas. Para o Brasil, porém, não era novo que São Paulo é valente.

Inimitáveis na sua operosidade, eles o foram quando restabeleceram imediatamente o ritmo compassado de seu labor fecundo, logo após os estertores da agonia de 32. Mas o Brasil já sabia que a operosidade de São Paulo é mais forte que todos os contratempos de sua vida acidentada, e mais rijo do que todos os golpes dos fracassos financeiros.

Católicos, eles o foram como nunca quando elegeram uma bancada unanimemente comprometida com os itens fundamentais do programa da Liga Eleitoral [Católica], e que recebia seu mandato com a condição expressa de o pôr a serviço da Igreja. Não estava aí a grande novidade. Já não soprava na Paulicéia o vento de ceticismo ou de laicismo que enfunara as velas da Revolução Paulista de 15 de novembro de 89. Não era mais aos herdeiros espirituais dos Glicéreos e de outros, que o povo de São Paulo ia cometer a defesa de suas convicções religiosas, mas a representantes expressamente convidados a mostrar ao Brasil que, no sofrimento, renascera um São Paulo maior, porque mais católico.

E vendo eu que o sofrimento nos alteava a Fé, e que só no Calvário havíamos encontrado a Nosso Senhor Jesus Cristo, com o coração ainda cheio dos sustos de ontem, começa a invadir-me um medo ainda maior [do dia] de amanhã.

Tenho medo da paz. Tenho medo da felicidade. Tenho medo de que, mais uma vez, esta ordem legal, pela qual tanto lutei, baixe sobre nós sob a forma de paz estagnada, em que o sibaritismo burguês floresce tranqüilamente. Tenho medo da intoxicação literária que vem do estrangeiro. Tenho medo da perversão de caracteres que o cinema traz. Tenho medo de que toda esta corrente de dissolução à qual São Paulo se havia sobreposto momentaneamente pelo sofrimento, embora os livros e as películas continuassem a entrar, volte novamente a ter livre curso entre nós.

Tenho medo, enfim, de que o otimismo ilusório, trazido pelo imediatismo da paz e da opulência, venha a afastar de Deus os corações que só nEle encontraram remédio em sua aflição.

Agora, é a nós católicos que cabe ainda a principal tarefa. É necessário que continuemos a falar em luta, a falar em reação espiritual, a pregar austeridade, e combater pela palavra e pelo exemplo, enquanto todos se voltam, distraídos e satisfeitos, para seus prazeres.

É necessário que a banalidade amesquinhadora da vida normal que vamos trilhar não diminua em nós a grandeza dos ideais que, ao clarão do incêndio, havíamos entrevisto tão bem.

Lutamos nestes três últimos anos no sentido da corrente que se avolumava e acabou por vencer. Esta corrente tomará agora novos rumos. Mas, enquanto o Brasil vai descansar à sombra da paz de momentos que obteve, continuemos a montar guarda contra os adversários da nacionalidade.