Roma, Nova York e Moscou

 

“O Legionário”, N.º 131, 29 de outubro de 1933

 

Os telegramas dos últimos dias nos têm trazido notícias sobre o reatamento das relações diplomáticas entre a Rússia e os Estados Unidos. A muitos terá causado estranheza a aproximação do país-lider do industrialismo burguês e da rubra república dos soviets. Muito maior, no entanto, foi o pasmo geral com a notícia de que o Vaticano declarara só poder negociar com a Rússia tomando como base as propostas apresentadas pela Chancelaria da Santa Sé em 1922.

Estas duas notícias, que põem em foco a delicada diplomacia dos três eixos em torno dos quais gira o mundo moderno - o Vaticano, a Casa Branca e o Kremlin - merecem alguns reparos.

Preliminarmente, é preciso acentuar que o estabelecimento de relações diplomáticas com um governo qualquer não significa o reconhecimento da legitimidade da investidura deste governo, ou a aprovação dos princípios e da política interna que ele pratica. É este um axioma de Direito Internacional Público, de que a diplomacia do Vaticano tem feito uso em todas as épocas. Assim, por exemplo, em épocas remotas, o Santo Padre  [manteve] nunciaturas apostólicas junto às cortes de dois príncipes que, em luta civil, disputavam a posse da coroa, dispensando a ambos os pretendentes o tratamento de Majestade. Ainda em virtude deste princípio, a Santa Sé não hesitou em aceitar relações diplomáticas com os diversos soberanos protestantes, cujos países haviam abraçado a heresia de Lutero. E, em relação à própria Rússia, no regime imperial, o Santo Padre mantinha um Núncio Apostólico junto ao Kremlin, e aceitava um embaixador russo junto ao Vaticano, a despeito de ser o Czar o maior sustentáculo do cisma russo. A formação de relações diplomáticas é fato que atua tão-somente na esfera internacional, sem a menor repercussão na hostilidade doutrinária entre o Catolicismo e o comunismo, tão irredutível quanto o ódio do bem ao mal.

Ninguém ignora que, de todas as religiões perseguidas pelo regime soviético, a mais visada foi a católica. O que o Santo Padre exige é que o governo soviético, para ser admitido no concerto das nações civilizadas, restaure dentro das fronteiras russas a liberdade religiosa, que é a característica de todos os povos que pretendem ter foros de civilizados.

Enquanto o governo comunista não der este passo, será inútil qualquer tentativa de aproximação.

Mas, indagamos, por que, da parte das autoridades soviéticas, uma tão invencível relutância em permitir a restauração do culto católico?

A resposta não é difícil de se dar. Catolicismo e comunismo são coisas que hurlent de se trouver ensemble (urram de se encontrar juntas). Por toda a parte onde o culto católico for franqueado aos fiéis, a propaganda anticomunista será feita, a propósito de tudo e a propósito de nada, desde o mais alto prelado ao último dos sacristãos ou catequistas. Basta ensinar a existência de um Céu e de um inferno, para afirmar implicitamente a falsidade de todos os “dogmas” leninistas. Basta assistir a uma cerimônia da Igreja, com seu ritual deslumbrante, para adquirir, da autoridade, uma noção santa e elevada, em contraste com a concepção comunista. Se me fosse possível usar uma imagem explicativa, diria que, em qualquer lugar em que se encontre, o bom católico “sua o anticomunismo por todos os seus poros”.

Como a última das preocupações comunistas é a liberdade de pensamento, eles conjuram o perigo com toda a simplicidade: matam os fiéis, saqueiam os templos, e resolvem cirurgicamente o problema religioso. Et tollitur quaestio (E acabou-se a questão).

Já não é assim, porém, que agem as nações burguesas, incoerentes por definição.

O comunismo não deseja a introdução de elementos católicos na Rússia para manter a ordem interna. Os burgueses, tendo todos os motivos para recear que as legações e consulados russos em seus países venham a fomentar a dissensão e a luta social, não se importam, porém, em semear, em todos os países onde dominam, uma verdadeira profusão de agências soviéticas.

Na França, na Inglaterra, na Alemanha, na Espanha, por toda a parte onde funcionam, as legações soviéticas são os mais valentes núcleos de propaganda comunista. E, a despeito disto, os países burgueses tolamente fecham os olhos ao perigo e continuam a brincar com o fogo! E os jornais nos trazem a dolorosa notícia de que os Estados Unidos, a nação industrial e burguesa por excelência, também já pensam em restabelecer relações econômicas com a Rússia!

Na diferença de atitudes mantida pelo Vaticano e pela Casa Branca, em relação ao Kremlin, estão perfeitamente definidos dois estados de espírito.

O Santo Padre vê, diante de si, a horda vermelha que avança. Uma por uma, as nações civilizadas se vão deixando tragar pela propaganda socialista, prelúdio da revolução comunista. Uma por uma, vão reconhecendo os soviets. E, no entanto, ele [o Santo Padre], firme como a rocha de Pedro, continua a manter sua irredutível oposição.

Por outro lado, os Estados Unidos, a Inglaterra, a França, a Alemanha, e a própria Itália, vão cedendo. Os canhões, os exércitos, as esquadras, os aviões, os gases asfixiantes e o ouro, nada lhes parece suficiente para levantar diques à inundação que se aproxima. Cedem, e cedem burguesamente, tolamente, sem ter sequer terçado as primeiras armas, para experimentar a bravura do adversário.

Não tem ouro, não tem canhões, não tem exército, o Santo Padre. Mas ele não cede. Ele, que é a potência espiritual, levanta barreiras com o simples prestígio de sua palavra. Instrui, trabalha, ora, encoraja e reprime. E, lentamente, a contra-ofensiva católica em todo o mundo se vai desenhando. (...)

Diante desta invencível oposição, não se lembrarão, talvez, eles, do non praevalebunt (cfr. Mt. 16, 18: “As portas do inferno não prevalecerão contra Ela”) com que foi dada à Igreja de Pedro a prerrogativa da indestrutibilidade?