Plinio Corrêa de Oliveira
O apostolado
“O Legionário”, N.º 88, 11 de outubro de 1931 |
|
Discurso pronunciado na inauguração dos trabalhos da Academia Jackson de Figueiredo em 11 de janeiro de 1931 [pelo congregado Presidente Dr. Plinio Corrêa de Oliveira] Senhores Acadêmicos, senhores Candidatos I - Na minha qualidade de Diretor do Departamento de Estudos da Congregação Mariana de Santa Cecília, compete-me presidir aos destinos desta Academia, durante o ano de 1931. É a mim, pois, que cabe inaugurar os trabalhos da Academia, dirigindo-vos algumas palavras a respeito da tarefa que temos diante de nós, e dos deveres em virtude dos quais nos propomos de a desempenhar, por mais que sejam árduos os sacrifícios que ela nos impõe. II - Se falasse, senhores, em um círculo de estudos composto por elementos intelectualmente heterogêneos, se me dirigisse a um auditório não iluminado pelo farol da Fé, ver-me-ia na contingência de vos dirigir as palavras de saudação banais, as promessas sedutoras e enganadoras das plataformas que não se cumprem, a miragem de uma tarefa fácil a desempenhar, a promessa de reduzir ao minimum os esforços, e elevar ao maximum os frutos. Não é esta, porém, senhores, minha situação perante um auditório que sabe o que é sacrifício, que compreende o que é dever. Não nos diz o Cristianismo que todos os nossos esforços são inúteis, mas sim que do mesmo modo por que uma pequena chama pode atear um imenso incêndio, uma pequena dose de amor de Deus pode atear no mundo um grande, imenso abrasamento de amor pelo bem. E, como se não bastassem estas afirmações, vem o recurso da graça e da oração, que faz de nós até participantes da onipotência divina! De párias que éramos no paganismo, o Cristianismo nos eleva a príncipes e a gigantes! Que magnífica vida, que estupendo destino. Vemos, senhores, que importância, que mar de felicidades representa para um homem o ser cristão. E em que estupenda época a Divina Providência nos fez nascer! Por toda a parte ouvimos rufos de tambor e toques de clarim, a chamar os combatentes para a grande luta que se vai travar. Por toda a parte já se engajam as primeiras escaramuças entre as duas imensas (*) hostes do bem e do mal. E as do bem, pequenas, disciplinadas e aguerridas, reeditarão a vitória das Termópilas, em que poucos gregos venceram uma avalanche persa. Mas, para isto, é preciso que compreendamos que, longe de sermos como os pagãos, não devemos fugir ao sacrifício. O paganismo é a caça ao prazer, no fundo do qual só há sacrifício. O Cristianismo é a caça do sacrifício, no fundo do qual há prazer. Mas com a admiração cheia de gratidão e unção religiosa de quem contempla um firmamento fulgurante, inundado de raios de sol que cortam o azul do espaço, e despejam sobre o mundo oceanos de luz e de paz. Para tratar de um assunto como este, Senhores, verificamos a impotência do pincel de nossas palavras, para reproduzir a beleza do que nossa mente percebe. Como os pintores antigos, que pintavam de joelhos, rezando, suas Madonnas tão cheias de unção angelical, assim também, só de alma e corpo genuflexos, o pensador católico olha para estas grandes belezas, pedindo ao Senhor que dê alguma força à sua palavra inerte, alguma vida à frieza tumular de suas frases, para descrever a maravilha de suas obras. Assim como o que distingue a noção de casa da de um monte de tijolos, é que a casa é o monte de tijolos dispostos com ordem, tendo em vista o fim da habitação, assim também o que distingue o mundo cristão do mundo pagão, é que este é, aos olhos de seus sequazes, um monturo de criaturas, e aquele, o cristão, é, para seus crentes, um conjunto admiravelmente ordenado de seres, com o fim determinado da eterna felicidade. Enquanto na concepção pagã do mundo somos apenas um pó miserável, perdido na imensidade, na concepção cristã somos uma das partes de um maquinismo quase perfeito, onde cada peça tem sua função, cada elemento seu valor. A inauguração de nossos trabalhos não deve ser, portanto, Senhores, a Cápua lasciva em que os cartagineses se preparavam para levar a Roma seu último golpe, mas a vigília austera do cavaleiro medieval, que passava a noite inteira na capela a orar, a pedir ao Senhor que lhe desse as forças necessárias para enfrentar os perigos que sua missão lhe traria. Ergamos nossas preces ao Céu, para que nos tornemos fortes perante os inimigos, e olhemos com serenidade o campo em que teremos de lutar. III - Uma das mais consoladoras revelações que o Cristianismo veio trazer ao mundo foi a noção exata do homem no universo, na natureza, na humanidade. O que é o homem, naturalmente falando, no conjunto das coisas? O globo terrestre é dos menores astros da abóbada celeste. Por toda a parte, vê-se ele imerso em um conjunto de outros astros, de outros sistemas, que constituem como que um manto de mistério, a desafiar nossa argúcia. Mais próximo de nós está toda a larga escala de criaturas animadas e inanimadas, racionais e irracionais que nos cercam. E depois de ter nossa inteligência fracassado no exame dos insondáveis abismos que separam os astros, depois de ter nossa imaginação verificado a impossibilidade sequer de representar a imensidão que de toda a parte nos cerca, vai o homem sentir sua deprimente impotência no estudo dos seres pequenos, nos problemas insolúveis que desperta em nós a vida de uma simples célula, sua incapacidade completa em decifrar as origens da vida nos seres ainda os mais elementares em sua estrutura e organização. Depois de nos sentirmos como que aniquilados diante do imensamente grande, tropeçamos nos obstáculos intransponíveis do imensamente pequeno. Tão misterioso é o astro que cintila no céu, quanto o verme que rasteja no pó. IV - E se os mistérios que se divisam no mundo dos seres inanimados e irracionais são tão grandes, que dizer das trevas que cercam nossa razão no estudo dos seres dotados de inteligência? Não só os problemas os mais cruciantes de nossa existência animal nos são desconhecidos, como também as questões as mais dolorosas de nossa vida intelectual. V - E, efetivamente, Senhores, desde os seus primeiros instantes, vê o homem erguer-se diante de si o espectro da dor. Não há escritor, por mais profundo ou por mais banal, que não tenha descrito, entre atônito e temeroso, o terrível combate entre o homem e a dor. A existência humana nada mais é do que uma luta entre o homem e a dor. Luta trágica, luta terrível, em que a dor sempre vence o homem. Lutando com o polvo do sofrimento, mal consegue o homem desvencilhar-se de um dos tentáculos que o oprimiam, logo outro se apodera dele, infligindo-lhe as mais dolorosas contorções. Muito conhecido é o vulto mitológico que, condenado pelos deuses a viver com sede, via subir até seus beiços as águas de que estava rodeado. Mas mal ia beber um gole apenas, que lhe refrescasse a boca ressequida pela sede, o nível das águas descia, e ele ficava impossibilitado de beber. Era, seguramente, um mito inventado pelo paganismo desiludido, que mal via aproximar-se de si o fantasma da felicidade, este se afastava, deixando apenas a ferida incandescente de uma dolorosa desilusão. A banalidade é uma espécie de consagração. As figuras e as imagens, quando se tornam banais, recebem a consagração que lhes presta este conjunto anônimo de inteligências que se chama senso comum. Por isso, julgo-me no direito de lançar mão de uma figura tão usada, que já é de domínio comum: os prazeres pagãos são como as praias de areias movediças. Na atraente beleza de sua alvura sem nódoas, são como que um convite mudo para o infeliz que ousa pisar sobre ela. Mas o solo se abre a seus pés e, sem ponto de apoio, ele está irremissivelmente perdido. Dentro em pouco, o indivíduo está inteiramente sepultado, e a superfície da areia se unifica e recompõe, a sorrir alva e maldosamente para outro incauto. Os prazeres são para o homem o que a água do mar é para o náufrago sedento: quanto mais bebe, mais tem sede. E à força de beber... morrerá de sede. Quem no-lo diz não são os austeros heróis de mortificação cristã, são desiludidos das agruras do paganismo. Se quisermos colher no velho paganismo romano uma prova disto, teremos Petrônio, o elegante sibarita, que depois de gozar de todos os prazeres do corpo e do espírito, suicidou-se ainda jovem, rico, belo e saudável... porque não valia a pena viver. E Anatole France, o grande corifeu do ultrapaganismo moderno, já no declínio de sua vida, depois de ter esquadrinhado com o compasso poderoso de sua inteligência todas as ciências, dizia em um livro: “Rien n'explique la tragique absurdité de vivre - Nada explica o trágico caráter absurdo de viver”. E, afinal, o que é este espectro da dor, de que tanto fugiam os pagãos, e que tanto os perseguia? VI - Eis-nos chegados aos alicerces do Cristianismo, eis-nos em face das questões básicas que a filosofia pagã encarou como um tenebroso antro, e a filosofia cristã admirou como quem depara não como dificuldades impenetráveis, grutas negras de pensamento onde nem os incautos se atrevem penetrar. A humanidade hodierna se contorce por falta da luz dos verdadeiros princípios do verdadeiro Deus. O desencadeamento das paixões precipitou a humanidade sobre a areia movediça dos prazeres, e milhares e milhares de homens arrastam hoje, como a uma cadeia pesada, a grinalda de rosas de suas vidas de festim. Os lares são dissolvidos, o amor casto dos esposos bruxuleia como luz prestes a se apagar. Os suicídios e as moléstias oriundas dos vícios roubam diariamente, a milhares de mães, milhões de filhos. A mulher, tornando-se hiena, não quer mais sentir amor materno, e entrega-se de corpo e alma à infernal bestialidade pagã. Os chefes de família são os líderes do escândalo em suas casas. Os Estados, combalidos, vacilam sobre suas bases, e ameaçam esmagar com o peso de sua queda povos e povos. Ao pudor se opõe a luxúria infrene. À honestidade se substitui a mais torpe ganância. Ao amor se substitui o egoísmo, e à solidariedade se substitui o individualismo. A mulher passa a um simples instrumento de prazer. E o comunismo, enfeixando estas infâmias, pretende aglomerá-las em sistema, com os laços frágeis dos mais evidentes sofismas. Temos uma Fé. Temos também um coração. Se queremos ver cessar esse estado de coisas, saibamos sujeitar-nos ao sofrimento que exige de nós o apostolado. Tirarmos ao Cristianismo o sofrimento é tirar a um corpo a espinha dorsal. Nosso Deus, coroado de espinhos, não indica que a realeza de Deus é a realeza da dor? Aceitemos o sofrimento; o sofrimento por toda a sorte de humilhações; o sofrimento por toda a sorte de vantagens de que desistimos; o sofrimento pelo esforço infatigável pelo bem; o sofrimento pela abnegação que não conhece limites. Privar o Cristianismo do sofrimento é injuriar a Cristo, que quis que fosse de espinhos sua coroa; ser católico e ter medo de sofrer por Deus é fazer deste um mero banqueiro, que nos fornece prazer ao sabor de nossos caprichos, ou lacaio a quem se encomenda felicidade, como se lhe pede um copo de água. É amizade o ter medo de sofrer por um amigo? Não. Logo, não é Cristianismo o ter medo de nos sacrificarmos por Jesus, nosso maior Amigo. Não cometamos a atrocidade de abandonar Jesus no Calvário. Não demos a bofetada de um pecado no rosto que Ele nos apresenta chagado por amor de nós. Não sejamos atrozes, não sejamos hienas, sejamos “mites et humiles corde - mansos e humildes de coração” (cfr. Mt. 11, 29) como Ele. Tudo isso evidencia a necessidade do apostolado. Se amamos a Deus sobre todas as coisas, imolemo-nos por Ele. Se amamos ao próximo como a nós mesmos, demos-lhe a Fé, nosso maior tesouro. (*) Evidentemente, no pensamento do orador imensas são apenas as hostes do mal, como logo em seguida ele esclarece. |