Deus e a Constituição

 

“O Legionário”, N.º 76, 8 de março de 1931

 

Conta-se que um célebre professor de escultura ateniense deu certa vez a seus alunos, para concurso, a tarefa de esculpirem uma mulher que fosse um modelo consumado de beleza física.

Apresentados os trabalhos, dois se salientaram dos demais pela habilidade de sua composição. Um era de autoria de um persa que concretizara no mármore o ideal de beleza de seus conterrâneos: uma formosa e riquíssima mulher, adornada com fazendas maravilhosamente ricas, estofos preciosos e jóias sedutoras. O grego apresentou uma obra simples: dotada da serenidade clássica de seus traços helênicos, uma ateniense majestosa no porte, altiva no olhar, formosa em todos os detalhes de sua beleza impecável. Era seu traje apenas uma simples túnica que a cobria até os pés.

Depois de muito pensar, o professor concedeu ao grego o prêmio da vitória. E ao persa, que lhe perguntara indignado qual a causa da preferência, respondeu apontando-lhe sua obra: “Se a esculpiste rica, é porque não a soubeste fazer bela”.

Em matéria de questões doutrinárias, sigo integralmente o modo de ver do professor ateniense, quando procuramos envolver nossos argumentos na roupagem suntuosa de eloqüentes imagens, ou nos fazemos compreender mal ou alongamos sem necessidade um trabalho que em menos tempo se leva com igual proveito.

É certo que há pessoas que só lêem artigos devidamente açucarados por meia dúzia de floreios de imaginação. Não podem suportar a aridez de certas questões.

Estas pessoas lembram certos meninos preguiçosos que, sem se darem ao trabalho de estudar, se julgam com direito a todos os prêmios. Quem não tem a força de vontade de ler um artigo árido sobre uma questão também árida, e recorre infalivelmente aos trabalhinhos adocicados em que o sentimentalismo mutila os raciocínios, e a brevidade e superficialidade da argumentação deformam as idéias, NÃO TEM O DIREITO DE FORMAR OPINIÃO SOBRE ASSUNTOS COMPLEXOS. É quase uma questão de probidade intelectual.

Se a exposição que passarei a fazer parecer muito árida, julgo que estou no meu direito. Não penso que devemos fazer com questões importantes o que fazem certos tratados de física para moças, que à força de quererem tornar amena a matéria, vão tão longe que perdem algo de seu caráter científico, para se aproximarem um pouco da prestidigitação.

Vamos diretamente ao assunto. A questão é a seguinte: trata-se de saber se a futura Constituição brasileira deve ser promulgada em nome de Deus.

Em relação ao problema da existência de Deus, pode o homem tomar três atitudes: ou o homem afirma, na plenitude de sua certeza, que há um Deus; ou nega com certeza não menor que Deus existe; ou duvida, perante a complexidade dos argumentos apresentados pró e contra a existência de Deus, e neste caso, ou é positivista (abandonando completamente a esperança de encontrar a verdade em matéria religiosa) ou está em um período de formação, e espera que mais cedo ou mais tarde resolverá a questão. Mas, em qualquer caso, ou afirma, ou nega, ou duvida.

De cada uma destas posições decorrem atitudes absolutamente diferentes na orientação geral que cada qual dá à sua vida. Se o homem crê em uma religião, conforma sua existência inteira com esta crença. Se um homem não professa religião alguma, conforma todos os seus atos com sua descrença. Se duvida, conformará com sua dúvida todo o seu proceder.

Se tivéssemos um Estado todo composto por indivíduos pertencentes a uma mesma religião, claro está, portanto, que todas as instituições, todas as leis, toda a vida da nação seria orientada de acordo com estas crenças. E podemos dar como exemplo não somente os Estados medievais, profundamente imbuídos de Catolicismo, como também os Estados unanimemente pagãos (todos os países da Antigüidade, excetuadas a Judéia e certas regiões do Oriente e da África de hoje).

Se tivéssemos um Estado unanimemente ateu, toda a vida pública seria orientada (ou desorientada...) pelo ateísmo. Temos como exemplo a Rússia de nossos dias.

Se tivéssemos um Estado unanimemente positivista, teríamos uma nação tal e qual o Brasil hodierno.

O Estado não pode deixar de tomar uma atitude qualquer em face do problema religioso.

Efetivamente, ou ele introduz a invocação a Deus na Constituição, o ensino religioso nas escolas, o caráter de sacramento no casamento, etc., e neste caso ele age como um Estado crente; ou ele considera falsa a Religião, põe como preâmbulo de sua Constituição uma afirmação solene de ateísmo, etc., e procede como um Estado ateu; ou ele silencia a respeito do problema religioso, ladeando-o sem o negar, e sem o afirmar, e procede como um Estado onde impera a dúvida.

Qualquer uma das atitudes que ele adota, será sempre contrária ao modo de ver de uma parcela mais ou menos importante da opinião pública, nos nossos Estados modernos, esfacelados na sua unidade moral e religiosa. Esta afirmação é tão compreensível que dispensa demonstração.

Ora, dado que o Estado é forçado, pela natureza das coisas, a tomar uma atitude qualquer (seja ela de crença, descrença ou dúvida) em face do problema religioso, é evidente que a única solução admissível é plasmar as instituições do país segundo a opinião religiosa da maioria de seus habitantes.

Claro está que, em caso algum, se justifica a opressão manu militari (1) ou outra qualquer atitude violenta em relação às minorias dissidentes, que merecem toda a brandura que a caridade lhes outorga, desde que elas não ultrapassem os próprios limites traçados pela lei e pelo Direito Natural.

Consequentemente, em um país como o nosso, em que o povo é católico, catolicíssimo até, em que a Igreja Católica é a única força organizada existente, no dizer do insuspeito Dr. Plinio Barreto, no “Estado de S. Paulo”, as instituições devem ser católicas, o ensino deve ser católico, o casamento religioso deve ter, para os católicos, valor jurídico, tudo enfim deve ser católico (2).

Provado isto, está provado, é claro, que ao menos a elementaríssima invocação do nome de Deus, pedida, segundo dizem, pelos Rev.mos e Ex.mos Srs. Arcebispo e Bispos de São Paulo, se justifica plenamente.

 

Notas:

 

(1) Com a mão militar, isto é, com a força militar.

(2) Claro está que nem por isto devemos proibir aos protestantes e outros acatólicos que dêem, particularmente, aulas de sua religião a seus filhos, que se casem perante um juiz de paz, e não perante o sacerdote católico, etc. No entanto, rejeitamos formalmente a tese de que, uma vez dadas aos católicos as regalias a que têm direito, sejam as mesmas concedidas às outras “igrejas”.

Efetivamente, como demonstramos, o Catolicismo, como Religião da imensa maioria, deve ter uma situação privilegiada no Brasil. Nos países em que a imensa maioria pertença a outra religião que não a nossa, deve esta ocupar uma situação proeminente, que os católicos devem esforçar-se por respeitar. Quer isto dizer que devem as minorias católicas preferir o protestantismo oficial ao agnosticismo oficial, o que, aliás, tem sido escrupulosamente feito.

Já reproduzi, em artigo anterior [cfr. A ciência e o indiferentismo religioso, O “Legionário”, n.º 61, 13-7-30] o significativo fato de ter o Cardeal-Arcebispo católico de Londres protestado contra uma tentativa de se desoficializar a “Igreja” oficial protestante da Inglaterra. E o Cardeal dava como razão que,  a Inglaterra país de maioria protestante, justo era que tivesse lá o protestantismo suas garantias e suas regalias. (Conforme consignado no artigo em referência, o Cardeal Newman alegava que era mais vantajoso para o Catolicismo ter oficializada uma religião inimiga, a ter, prestigiado pelo Estado, o agnosticismo.)