Legionário, Nš 720, 26 de maio de 1946
A LEI DO INQUILINATO
Em uma das últimas sessões da Assembléia Constituinte, o Revmo. Sr. Padre Arruda Câmara discorreu sobre a lei do inquilinato, e sustentou a tese de que se deveria permitir um forte aumento nos aluguéis presentemente cobrados. A atitude do deputado pernambucano terá causado surpresa a muitos católicos. O senhorio, visto em confronto com o inquilino, é o forte contra o fraco, o rico contra o pobre, o que ganha sem trabalhar, contra o que trabalha e quase não ganha. Parece que a atitude da Igreja deveria ser toda de proteção ao inquilino. Como explicar, então que um deputado católico, e precisamente um sacerdote, vá tomar atitude contrária, e defender o senhorio? Isto, que chocaria em qualquer época, ainda não se torna muito mais chocante, dada a imensa crise de habitação por que passamos?
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Se alargarmos bastante o quadro, teremos uma compreensão mais exata do problema. Consideremos uma grande cidade como São Paulo, com suas doze centenas de milhares de habitantes. O que faz a cidade? Formulada a pergunta do ângulo econômico, a resposta seria à primeira vista: muita coisa. Uns estudam, outros descansam, outros se divertem, e outros ainda trabalham como artistas, empresários, serviçais, para que as diversões funcionem; uns são advogados, médicos, engenheiros, outros se dedicam à compra e venda, à indústria ou à lavoura. Uma pequena minoria não faz coisa alguma. Ou faz coisas de uma consistência e utilidade muito duvidosa. De fato, porém, em qualquer sociedade humana a multiplicidade de aspectos deste quadro se desfaz diante de uma análise mais atenta. Da onde sai o dinheiro com que se pagam os advogados, médicos, engenheiros, professores, artistas, funcionários públicos, etc.? Em última análise, e tudo bem pesado, ou sai da agricultura (a fonte de riqueza por excelência), ou da indústria, ou do comércio. É com o dinheiro obtido em um destes três campos, ou nos três, que a sociedade vive. Todas as outras fontes de lucro são secundárias, dispensáveis, meras quantités negligeables diante destas três principais fontes de riqueza de um país.
Ainda no campo meramente econômico, pois, toda a sociedade humana pode ser considerada como um organismo em que as mais variadas funções existem sempre em relação, e para o serviço de certos pontos essenciais. Exemplifiquemos com a vida rural. Em uma fazenda de grandes dimensões, existe a escola, o botequim, a venda, pode existir a farmácia, o cinema, o club de foot-ball. Estas coisas, evidentemente, ocupam a atividade de muitos indivíduos que não são propriamente agricultores. Nem o porteiro do club, nem o professor primário, nem o limpador do cinema são agricultores. Mas suas atividades estão como que incorporadas economicamente à vida agrícola, da qual inteiramente dependem. Ora, numa grande zona rural, composta de diversas fazendas situada em torno de alguma cidade, a cidade está para as fazendas consideradas em seu conjunto, como dentro de cada fazenda está o semi-vilarejo constituído pela justaposição da escola, do cinema, do club, e das casas de seus respectivos encarregados. É uma mera dependência ou função da vida agrícola. O mesmo se pode dizer da indústria. Em uma grande fábrica, também pode haver como na grande fazenda, farmácia, escola, cinema, creche, etc. São meras atividades subsidiárias da indústria. Uma cidade situada em uma zona de grande concentração industrial, em algum destes horrendos quistos de aço que a siderúrgica acumula, está para o parque industrial da vizinhança, como o vilarejo está para a indústria particular dentro da qual funciona. Uma cidade central é, em via de regra, um complemento necessário para os grandes conjuntos industriais ou agrícolas. Cidades de tamanho proporcionado e vida humana, nos conjuntos dependentes do campo. Infernos de ferro, vidro e poeira, nos conjuntos dependentes das fábricas. Mas, no fundo, toda cidade é um mero complemento de um sistema econômico, agrícola, industrial ou comercial qualquer. E tanto é isto que, trincado este conjunto, a cidade decai. Se, por exemplo, tivéssemos nova crise agrícola, complicada com uma crise industrial, São Paulo o que seria?
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Toda cidade é, pois, um conjunto necessário, em qualquer sistema econômico. E gastar dinheiro para que a cidade exista é cooperar para que exista o conjunto econômico de que a cidade se alimenta.
Exemplifiquemos ainda com a fábrica e a fazenda. Suponhamos que o industrial X, ou o fazendeiro Y não pode gastar dinheiro para construir escola, farmácia, cinema, club, e entretanto as proporções de sua fazenda ou indústria reclamam absolutamente esta despesa. Claro está que a pessoa que construísse estes edifícios colaboraria tão legitimamente para o florescimento da fábrica ou fazenda, quanto se empregasse dinheiro para fornecer a X ou Y arados mecânicos, ou cabos de alta tensão.
De onde se segue que, construir casas nas cidades que são elementos complementares da grande indústria ou grande agricultura, evidentemente é contribuir tão autenticamente para a vida econômica, quanto comprando máquinas. Perguntamos há pouco o que seria São Paulo sem agricultura ou indústria. Seria o caso também de perguntar o que seria a agricultura, e principalissimamente a indústria, se São Paulo não existisse, se o Estado não tivesse capital. Ora, quem aplica dinheiro para construir esta cidade indispensável ao agricultor ou industrial, evidentissimamente tem direito a uma parte proporcional, nos lucros gerais da agricultura ou da indústria. Se isto não fosse assim, ninguém aplicaria dinheiro em prédios, mas só em ações de fábricas, e a cidade não existiria.
De onde se segue que a situação do dono de prédios é de todo em todo idêntica à do dono de ações de uma empresa industrial ou agrícola qualquer. Isto é evidente. E é igualmente evidente que negar a legitimidade de um lucro para o homem que empresta sua casa alugando-a para operários de uma fábrica, é negar a legitimidade do lucro do homem que aluga uma máquina, ou que aplica o dinheiro em uma indústria para que com este dinheiro se comprem máquinas e os industriais obtenham lucro. Em outros termos ainda, todo o regime da propriedade privada está empenhado no problema. Negar que o lucro possa ser tirado da casa, é negar que o lucro possa ser tirado do capital, é sustentar que só é legitimo que o homem possua o que é necessário ao seu uso pessoal. É restringir a propriedade privada muito mais do que Leão XIII permite.
E por aí nós compreendemos bem que o terreno se presta muito a que se faça ouvir a voz de um sacerdote católico.
No próximo artigo, consideraremos a questão em seu aspecto concreto. Sobretudo, em suas relações com a engrenagem, sem entranhas, da inflação e dos lucros extraordinários.