Como de costume, a Ação Católica de São Paulo
promoveu este ano a realização de Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, na Fazenda Taipas, que os RR.PP. Jesuítas possuem em Itaici. É um velho hábito dos redatores do LEGIONÁRIO
associarem-se a esses piedosos Exercícios, que vão do sábado de Ramos até o
Sábado de Aleluia. Assim, é em minha pequena cela de Itaici
que cumpro o dever, hoje realmente penoso, de escrever um artigo para os
leitores do LEGIONÁRIO. Penoso sim, porque os Exercícios Espirituais devem ser
uma concentração. Um artigo é precisamente o contrário disto, é uma dispersão.
Devo, entretanto, absolutamente, escrevê-lo. Com efeito, estamos quase todos de
retiro, e se o diretor não der o exemplo, o LEGIONÁRIO não sairá. É preciso,
pois, que me desobrigue desta tarefa. De que modo? "En laissant trotter la machine", diria Mme. de Sevigné se no tempo dela já
se usasse, em lugar das elegantes penas que seus nobres dedos de marquesa
deixavam "trotter"
sobre o papel, as horrendas máquinas de escrever modernas. Vou "laisser trotter la machine". E como o que direi não tem paralelo e
nem mesmo sombra de paralelo com o que escreveria a ilustre marquesa, terei ao
menos esse minguado pretexto a apresentar: a diferença está em que ela escrevia
ao correr da pena, eu ao correr da máquina. O que resultará desse processo de
redigir? Uma miscelânea provavelmente. De qualquer maneira, comecemos.
* * *
A Fazenda de Taipas se encontra em Itaici, pequena localidade situada entre Jundiaí e Indaiatuba.
Não chegamos sem alguma aventura em Itaici. Jundiaí apresenta um vivo
contraste: saímos do excelente vagão de aço da Paulista, para nos aboletarmos em um vagãozinho
arcaico da Ituana. E, como era sábado, sobravam na Ituana os passageiros, as bagagens, as pontas de cigarros
atiradas pelo chão, e todas as coisas que podem tornar incômoda uma viagem. E a
aventura veio. Um amigo deixou no trem da Paulista a mala cheia de preciosos manuscritos. Grande comoção. Veio
ou não veio a mala? Quando o trem já estava em movimento, e depois de prolongadas
indagações, chegou-se ao resultado: não veio. Longos debates sobre o modo de
reaver a preciosa arca: discussões geográficas, discussões táticas, horários,
entroncamentos, telegramas, telefonemas, recurso a amigos prestativos que
residiam neste ou naquele ponto do percurso. Finalmente chegou-se a Itaici, onde o pobre amigo esperou longamente um trem que o
conduziu a Campinas onde só no dia
seguinte recuperou a mala. Todos estávamos esfalfados, porque muitos haviam
viajado mal acomodados, outros estavam transidos de fome, todos ansiosos por
chegar. Mas apenas desembarcados, a metamorfose foi completa. Começamos a tomar
contato com os encantos de Itaici. O ar subtil,
saturado de aromas vegetais, fresquíssimo, nos
invadia os pulmões. A tranqüilidade bucólica pairava sobre o ambiente, tão
serena, tão ampla, tão geral, que não a perturbavam os apitos, os chiados, os
ruídos das caranguejolas da Ituana. Todo este aparato
ferroviário pode ter parecido terrível a nossos bisavós. Mas como já conhecemos
coisa muito mais ruidosa em nossos dias, achamos ingênua essa barulheira de
ferro velho. Até isto tem sua placidez para quem vem dessa Babel de ruídos que
é São Paulo. E enquanto essas primeiras impressões se definiam e se
fixava, os encarregados da Fazenda Taipas tomavam as malas, os primeiros
retirantes subiam a pé a encosta que conduz à sede, e um trole providencial,
aliás muito meu conhecido, me levou para a sede, com o Pe. Mariaux, por uma longa volta pitoresca, sob o céu estrelado. O
apetite se anunciava categórico. Isto me fez lembrar de passagem que Itaici fôra, outrora, um ponto de
entroncamento famoso pela munificência de um Chicão,
que aqui vendia quitutes célebres aos passageiros. Mas do Chicão
não há nem vestígio. Aliás, não tive tempo de pensar muito nisto. O ambiente
novo, a conversa sempre animada do Pe. Mariaux, tudo
me ocupou agradavelmente até que, a uma volta da estrada eu divisasse, toda
iluminada, a sede da fazenda. Taipas pertenceu por certo a algum antigo tronco
de boa genealogia paulistana. A sede solarenga e espaçosa deve datar do
Império, se não remontar aos tempos coloniais. Mas recentemente, foi anexada à
sede uma ala com quartos para os retirantes. Um dos salões foi adaptado, e é
hoje uma vasta capela, com entrada lateral independente. Na fachada do
edifício, há um terraço com adornos de madeira trabalhada, em estilo do início
deste século. Infelizmente, caiu um pitoresco torreão que havia no lado
direito. Era o refúgio dos retirantes mais pensativos, ou inclinados à solidão.
No alto dele, havia um sino que anunciava os ofícios à toda a redondeza.
Tirando essa pequena mudança, Itaici está
precisamente como nos anos anteriores. Foi, apenas, pintada de novo. A sala de
jantar continua igualmente simpática, vetusta e patriarcal. Na capela, o mesmo altar-mor em estilo de arco de triunfo romano com seu
elegante tabernáculo de madeira trabalhada. No pomar, a mesma esplêndida
alameda de mangueiras, conduzindo a um algodoal. E, sobretudo, a vista que se
descortina da fachada graças a Deus está inteiramente inalterada. A harmonia do
esplêndido panorama não foi desfigurada por nenhuma fábrica, nenhuma ponte
boçal em concreto armado, nada enfim que nos chame à realidade insípida da vida
de todos os dias. Ao longe, Itaici, com seu casario
escasso e esparramado, suas vielas, sua ferrovia ainda menor à distância,
parece um brinquedinho, e anima toda a paisagem. A
lua, infelizmente, não foi visível naquela primeira noite. Entretanto, ela
costuma ser magnífica, em Itaici, quando aparece
sobre os montes.
No meio de mais estas impressões, instalamo-nos e
jantamos. A refeição é presidida pelo Pe. Mariaux.
Está também conosco o Pe. Viotti. A conversa corre animada. É a última que se terá, ao
menos legitimamente, nesta semana. Instintivamente, começo a observar o Pe. Mariaux, campo de observação para mim já antigo e sempre
novo. Louro, muito alto, hercúleo, exuberante de saúde, gestos largos, mãos de feld-marechal, ele causa sempre uma primeira impressão de
robustez e determinação, que aos pouco se vai completando com elementos
psicológicos novos. Não conheci personalidade mais rica em aspectos
contrastantes e todavia harmônicos. Por exemplo, ele é a um tempo distraído e
atento. Com muita facilidade, imerge de uma reflexão própria, inteiramente à
margem da conversa geral. Com igual facilidade, interrompe o fio de suas
elucubrações para fazer uma intervenção inesperada na conversa, interessando-se
pelo assunto como se não tivesse pensado todo tempo senão nisto. De repente,
desinteressa-se de novo e continua no rumo de suas preocupações, de onde não há
o que arranque se ele quer fechar-se. Quando muito, se obtém dele alguma
cortesia estritamente protocolar e formal, que no fundo exprime seu desejo
tenaz de continuar a refletir. Mas há uma coisa que o tira sempre dessas
reflexões: é o detalhe prático, a providência de momento, a necessidade de
dirigir alguma coisa ou de prestar serviço a alguém.
A saúde física do Pe. Mariaux
não é senão um reflexo, o reflexo
incompleto de sua saúde mental. Poucas vezes se contempla um funcionamento tão
perfeito das potências da alma. Quem o vê no comando acha-o tão vigoroso, que pensa
que por certo lhe faltará às vezes subtileza. É preciso vê-lo então na
discussão. É com uma espécie de prazer de especialista que ele trata dos mais
árduos problemas teológicos, comprazendo-se em suas subtilezas como um artista
que gosta de lidar com cristais finíssimos, sem se cortar. Entretanto, não se
pense que essa dialética subtil e ágil é um mero especulativo. Suas observações
sociais e políticas são finíssimas, suas tendências artísticas muito delicadas.
Ele está "chez soi" em
cada uma destas atividades e as desempenha de tal modo que parece dar só para
ela. Por vezes, vou ter com ele em sua pequena sala de trabalho na Rua Bela
Cintra. Tratamos de algum assunto dos mais intrincados, inesperadamente, bate à
porta algum menino do colégio. É um brasileirinho dos
autênticos, franzino, trigueiro, cheio de subtilezas, que vai falar com seu
louro e hercúleo diretor. O contato entre os dois é o que há de mais
interessante. Dir-se-ia que esse homem setentrional nada compreenderá das mil e
mil dobras psicológicas do temperamento infantil destes trópicos. Puro engano.
O menino já entra com a fisionomia a transbordar confiança. O Pe. Mariaux o olha com uma solicitude a qual nenhum pormenor
escapa. Sabe o nome de todos, nomes lusos, sírios, italianos, que sei eu!
Lembra-se muito bem do tema de cada um: este precisa restituir uma tesoura,
aquele dar notícias de um trabalho, aquele outro explicar porque tem faltado.
Parece que tem cada um uma ficha na cabeça do Pe. Mariaux.
O assunto se desenvolve com uma naturalidade fantástica. Quando o menino sai da
sala, o caso, simplicíssimo ou complexíssimo, está
resolvido. E o tertius
que assiste a cena fica a pensar onde ele terá encontrado recursos psicológicos
para conseguir isto tão bem! Mas para o Pe. Mariaux
tudo já está posto à margem, e ele já voltou inteiramente para a questão de que
tratávamos. E aí ele ao pé da letra bombardeia o interlocutor com uma tal
fecundidade de argumentos, de explicações, de objeções, que se tem a impressão
de que ele passou o dia inteiro descansando, e só agora começou a trabalhar.
Entretanto, cenas destas, entremeadas com freqüentes tiradas de humor, podem
dar-se até muito tarde da noite!
E, no meio de tudo isto, umas lacunas curiosas. Por
exemplo, andando em um lugar onde várias vezes já esteve, perde de repente o
caminho. Outras vezes, esquece-se de uma coisa - que no fundo nunca o
interessou, já se vê - como se nunca na vida lhe houvesse sido exposta. E,
quando finalmente se inteira da questão são aquelas exclamações que variam
segundo o assunto, mas são mais ou menos as mesmas para cada assunto: "ah, sei, aquele homem", ou então "uno (sic) escândalo", ou finalmente "um momento
senhor, um momento", quando quer tomar fôlego para "investir"
contra o interlocutor.
Às vezes é truculento, outras irônico (sobretudo
quando tem alguma desconfiança), outras, caprichoso e... tudo depende das
circunstâncias apreciadas, aliás, com um rigor de princípios admiráveis.
* * *
Ontem, o Pe. Mariaux
bateu à minha porta. Perguntou-me se faltava alguma coisa. Sabendo-o exausto,
arranjei um subterfúgio para lhe dizer sem mentira, que não faltava nada. No
fundo, estava achando suas práticas substanciosas - é obvio, tratando-se dele -
mas bem curtas. Mas nada ousei dizer, receando abusar de suas forças. Ele é uma
dessas pessoas que habituam os amigos a pensar que são feitas de carne e osso.
Afinal, ele insistiu e eu lhe dei minha impressão clara. Ele me demonstrou,
então, que tem falado de cada vez uma hora ou mais. Como explicar isto?
Eloqüência? Não, no sentido rasteiro da palavra. Nenhum floreio, nenhum assomo
de poesia tola. Mas uma exposição animadíssima, muito fluente e em um português
impecável gramaticalmente. Substância densa. As exposições são em pleno ar
livre. Enfim, tudo se passa de tal modo que, se não fosse o relógio, se teria
idéia de que o Pe. Mariaux desta vez está com
preguiça de falar.
* * *
Está na hora. As horas com o Pe. Mariaux são coisa rigorosa. É preciso estar pronto, e não
haverá tempo para escrever mais. Aqui ficam, em pleno retiro, estas impressões
incompletas. Elas refletem o entusiasmo de todos os retirantes pelo grande
pregador, e seu reconhecimento ao Revmo. Reitor do
Colégio São Luiz, Pe. Bannwarth, pela gentil e excelente hospitalidade.
Ser-se jornalista e retirante é impossível. Sai daí
um retiro mutilado por um artigo, um artigo inesperadamente cortado - e muito a
tempo, que ia ficando longo - pelo retiro. Mas o LEGIONÁRIO se escreve para
leitores católicos, que compreendem com simpatia defeitos como estes.