Demos em nosso último artigo os dados doutrinários
mais essenciais para a intelecção da "questão romana". Vamos agora
aos dados históricos e políticos.
Quando o Santo Padre viu invadida a
Capital dos Estados Pontifícios, retirou-se ao Palácio Vaticano, onde exerceu por mais de 50 anos o governo da Santa
Igreja universal. Considerando criminosa e portanto inteiramente destituída de
eficácia moral e jurídica a ocupação de Roma, o Santo Padre se recusava a entrar em relações normais
com o governo usurpador. Por isto também o Santo Padre não ingressava mais em
território submetido à jurisdição da Casa de Savoia, o que seria reconhecer o domínio piemontês. Isolado no
Vaticano, o Santo Padre continuou a reclamar os Estados de S. Pedro, e por
isto, quando os Pontífices, durante esse meio século de cativeiro, entravam na
Basílica do Vaticano para as grandes cerimônias, em magnífica "sedia gestatoria",
cingindo a tiara, precedidos e seguidos de aparatoso cortejo, o povo os
aclamava invariavelmente com seu duplo título espiritual e temporal: "evviva il Papa-Re!".
A situação era certamente muito digna. Mas, ao
mesmo tempo, era a mais precária e perigosa que se possa imaginar. Se bem que
as tropas italianas jamais houvessem transposto os limites dos jardins vaticanos e dentro deste território o Papa continuasse a
manter uma pequena guarda própria, aos olhos da lei italiana - a famosa
"lei das garantias" - por qualquer deliberação dos poderes temporais
competentes o Papa poderia ver invadida sua moradia, ocupados seus tesouros,
confiscados seus arquivos. Com efeito, a "lei das garantias" concedia
- note-se o termo - concedia ao Papa as honras de rei sem nenhuma realidade de
poder. Por este título, concebe-se que tivesse um palácio e uma corte. Mas esta
lei poderia ser substituída a qualquer momento por outra em que se revogava a
"concessão" dessas honras ao Papa que ficaria assim degradado para a
situação de mero particular. Como explicar que um mero particular tenha
embaixadores acreditados junto a si, cinja uma coroa, se faça aclamar como Rei,
dê audiências sentado em um trono, tenha uma corte, tenha um pequeno exército?
A invasão reduziria o Pontífice praticamente a
quase nada. Esse “quase nada” poderia a qualquer momento ser abolido por um
golpe de mau humor de qualquer maioria eleitoral efêmera nascida da demagogia
das eleições.
De fato esse quase nada era a mesma coisa que nada.
* * *
Infelizmente, não faltaram aos Pontífices durante
esse tempo cruéis humilhações. O governo maçônico da Itália confiscou todo o
seu patrimônio, e eles tiveram de pedir esmolas ao mundo inteiro. Muitas nações
se negaram a reconhecê-los como soberanos, e retiraram as embaixadas que tinham
junto a eles. Quando o primeiro Papa eleito depois da ocupação - foi Leão XIII - participou às
potências sua ascensão, algumas responderam com um desdém ultrajoso.
A Rússia nem respondeu: o Papa era só um particular, e
os governos não acusam recebimento de comunicações particulares, como esta.
Em todos os tratados de Direito Internacional, em
todos os Congressos Jurídicos, em todos os Parlamentos, através de toda espécie
de livros, jornais, revistas, discutia-se sobre se seria legítimo, jurídico,
razoável manter embaixadores junto ao Pontífice, e se ele não deveria ser
considerado um mero particular. Pode-se bem imaginar o escândalo, a depressão,
o verdadeiro desânimo que as almas tíbias sentiam, vendo o Vigário de Jesus
Cristo, que ocupara de direito e de fato, o lugar supremo na Cristandade,
arrojado agora à situação de mero particular. Por outro lado se os governos não
reconhecessem o Papa, com quem tratariam os negócios referentes ao clero em
cada país? Com os respectivos bispos? Quem não vê o golpe profundo que para a
unidade de direção dos assuntos da Igreja representaria a exclusão da Santa Sé
de qualquer atuação ou intervenção direta em assuntos tais? Quem não vê as
dificuldades daí decorrentes para o episcopado, que tem hoje toda a autoridade
internacional do Papado em seu apoio, e que ficaria desprotegido diante dos
desmandos e demasias do Poder Temporal?
Em todos os sentidos a situação sobre [ademais de]
ser precária, era sombria.
* * *
Cinqüenta e muitos anos durou esta ordem de coisas.
Mais de cinqüenta anos de humilhações, de apreensões, de sofrimentos. Foi então
que Mussolini ofereceu à Santa Sé
- sem o menor intuito de fazer, aliás, senão um gesto útil à sua política - o
Tratado de Latrão.
Esse Tratado reconheceu a soberania do Papa sobre o
território do Vaticano, e alguns imóveis situados fora deste, inclusive a vila
de Castel Gandolfo. Assim, para só atendermos a suas conseqüências internacionais, certas
alterações de imenso alcance se operavam automaticamente na situação do
Pontífice:
a) passava a ser chefe indiscutível de um pequeno
território, e como tal nenhum sofista lhe poderia negar a qualidade de
soberano;
b) os membros mais graduados da corte pontifícia
eram considerados súditos do Papa e assim dotados de toda liberdade para o
exercício de sua missão;
c) essa situação não decorria de uma lei italiana
sempre sujeita à revogação do parlamento, mas de um tratado que não se poderia
rescindir licitamente sem acordo de ambas as partes;
d) e, assim, salvo o caso de uma violação
escandalosa do Tratado, o Papa teria toda liberdade de ação.
* * *
É preciso distinguir claramente entre regime
fascista e o Tratado de Latrão. Um péssimo regime
pode fazer com uma potência externa um ótimo tratado. O fascismo foi um péssimo
regime. O Tratado de Latrão produziu resultados
inestimáveis para a Igreja e para a Itália.
Com efeito, só um cego poderá não ver que a
situação internacional do Papado cresceu consideravelmente em solidez, em
esplendor e em influência com o pacto lateranense. A
Igreja, ao mesmo tempo, dava mostras com isto de um vigor que reanimou todos os
zelos afrouxados e entusiasmou a iniciativa de todas as almas fervorosas. O
Tratado de Latrão coincidiu com um renascimento
católico no mundo inteiro. Ele aumentou o viço e a santa ousadia desse
renascimento. Ele foi o marco inicial de uma verdadeira primavera católica, que
continua a produzir seus frutos sob o inverno inclemente do totalitarismo
nazista, fascista, russo ou mexicano.
Pio XI se contentou - foi
ele que o disse - com o mínimo que poderia exigir. Essa moderação pontifícia
provocou a imediata conclusão do acordo. O acordo deu todos os resultados que
acabamos de enumerar. Como então, ousa o LEGIONÁRIO falar em uma "questão
romana" em nossos dias?
* * *
E como ousaria ele não falar nessa questão nos dias
que correm? O Santo Padre Pio XI teve de se contentar
com o mínimo necessário, e disso auferiu os melhores resultados em seu heróico
e intrépido pontificado. Diante da tristeza dos atuais acontecimentos, nada
pode impedir, entretanto, que em nosso zelo de filhos desejemos mais que esse
"mínimo" para a garantia e salvaguarda do Pai comum de todos os
fiéis.
Com efeito, a situação atual do Pontífice tem algo
de verdadeiramente desconcertante. O Sr. Winston Churchill acaba de revelar na
Câmara dos Comuns que o Estado-maior teutônico está na criminosa e infame
disposição de fazer de Roma uma nova Stalingrado. Isto quer dizer que todo o mundo guerreará em torno da
sagrada pessoa do Santo Padre, que as bombas poderão chover de um lado e do
outro, e que o Santo Padre estará precisamente no meio do bombardeio.
Ora, por outro lado, nenhum ataque direto foi feito
ao Vaticano. Percebe-se claramente que ambos os beligerantes, receosos do
imenso prestígio internacional que tem hoje a Santa Sé, não querem por preço
algum dar um passo diretamente voltado contra o Papa. Este continua a receber
de ambos os lados todas as garantias. Contra ele, nada se fará. Mas o que fazer
se os alemães ficarem em Roma?
* * *
Se o Santo Padre tivesse todo o território que
possuía no início do reinado de Pio IX, e que se estendia através de toda a
península desde o Adriático até o Mediterrâneo, seria impossível a tristíssima ambigüidade dessa
situação. Ninguém poderia por em risco os territórios do Papa sem os invadir.
Invadindo-os, haveria com isto uma seqüela de conseqüências políticas
inapreciáveis. Estão longe de nós os dias funestos de Garibaldi, em que se assistiu com relativa indiferença a invasão do
território do Papa. Hoje, o fato causaria uma revolta mundial. Morreu o
liberalismo religioso. Estas coisas não se toleram mais. E ninguém poderia
fazer o jogo miseravelmente hipócrita de Hitler: respeitar o território vaticano,
e entrincheirar-se em Roma para resistir. Quer dizer, tomar ares de santo e
fazer do Pontífice um alvo de bombardeio. Ocupar Roma, invadir Roma, bombardear
Roma são termos que devem significar necessariamente atacar o Papa. Do
contrário, o Romano Pontífice não poderá sentir-se em segurança no pequeno território
que ocupa. Ou temos o Papa com uma zona tecnicamente delimitada de modo tal que
essas farsas não se podem repetir, ou estaremos continuamente expostos a
alarmes de toda ordem.
* * *
Contra isto se farão duas objeções. E a primeira
delas será que queremos o impossível, isto é, uma segurança absoluta para o
Pontífice, que, em última analise, não seria absoluta como nada neste mundo.
Assim, Hitler poderia bem ter invadido o Vaticano. Se
lhe conviesse, não invadiria os territórios romanos por mais vastos que fossem?
Por que fazer a esse sacripanta a honra de pensar que agiria de outro modo?
E a isto responderíamos: por que imaginar que Hitler, mesmo agora, não quer invadir o Vaticano? Por que
fazer a esse sacripanta a honra de imaginar que ele não folgaria em praticar
esse crime horrendo? Se ele não ataca o Vaticano é porque não lhe convém,
porque seu medo de uma reação moral é maior ainda que seu imenso ódio a Igreja.
Por isto, ele também não ousaria investir contra um território pontifício maior
que o atual. Um território maior significaria pois, nas atuais condições, uma
distância maior entre o Papa e o campo de batalha, uma precaução a mais para a
segurança do Pontífice.
Essa segurança não seria absoluta? Não tornaria
fisicamente impossível a invasão? Talvez. Como as chaves não tornam impossível
o ingresso de bandidos. Nem por isto, entretanto, as casas deixam de ter
chaves.
Outra objeção seria esta: queremos então despedaçar
a Itália? O momento é
inoportuno de todos os pontos de vista, para reivindicar para o Papa esta ou
aquela porção de território concretamente demarcado.
Desejamos de todo coração que o Pontífice possa ter um território compatível
com as circunstâncias criadas pela técnica militar atual, de sorte a ficar em
torno de si com uma zona neutra que o ponha fora do alcance de bombardeios de
quem quer que seja. É este o desejo expresso há dias pelo órgão católico de
Lisboa, isto é o que essencialmente como católicos devemos desejar. Mas,
evidentemente, nos sentiremos felizes se tal se puder conseguir sem prejuízo de
preocupações temporais que, guardadas todas as proporções, são sumamente
respeitáveis e dignas de toda a consideração.