Legionário, N.º 603, 27 de fevereiro de 1944

A QUESTÃO ROMANA - II

Demos em nosso último artigo os dados doutrinários mais essenciais para a intelecção da "questão romana". Vamos agora aos dados históricos e políticos.

Quando o Santo Padre viu invadida a Capital dos Estados Pontifícios, retirou-se ao Palácio Vaticano, onde exerceu por mais de 50 anos o governo da Santa Igreja universal. Considerando criminosa e portanto inteiramente destituída de eficácia moral e jurídica a ocupação de Roma, o Santo Padre se recusava a entrar em relações normais com o governo usurpador. Por isto também o Santo Padre não ingressava mais em território submetido à jurisdição da Casa de Savoia, o que seria reconhecer o domínio piemontês. Isolado no Vaticano, o Santo Padre continuou a reclamar os Estados de S. Pedro, e por isto, quando os Pontífices, durante esse meio século de cativeiro, entravam na Basílica do Vaticano para as grandes cerimônias, em magnífica "sedia gestatoria", cingindo a tiara, precedidos e seguidos de aparatoso cortejo, o povo os aclamava invariavelmente com seu duplo título espiritual e temporal: "evviva il Papa-Re!".

A situação era certamente muito digna. Mas, ao mesmo tempo, era a mais precária e perigosa que se possa imaginar. Se bem que as tropas italianas jamais houvessem transposto os limites dos jardins vaticanos e dentro deste território o Papa continuasse a manter uma pequena guarda própria, aos olhos da lei italiana - a famosa "lei das garantias" - por qualquer deliberação dos poderes temporais competentes o Papa poderia ver invadida sua moradia, ocupados seus tesouros, confiscados seus arquivos. Com efeito, a "lei das garantias" concedia - note-se o termo - concedia ao Papa as honras de rei sem nenhuma realidade de poder. Por este título, concebe-se que tivesse um palácio e uma corte. Mas esta lei poderia ser substituída a qualquer momento por outra em que se revogava a "concessão" dessas honras ao Papa que ficaria assim degradado para a situação de mero particular. Como explicar que um mero particular tenha embaixadores acreditados junto a si, cinja uma coroa, se faça aclamar como Rei, dê audiências sentado em um trono, tenha uma corte, tenha um pequeno exército?

A invasão reduziria o Pontífice praticamente a quase nada. Esse “quase nada” poderia a qualquer momento ser abolido por um golpe de mau humor de qualquer maioria eleitoral efêmera nascida da demagogia das eleições.

De fato esse quase nada era a mesma coisa que nada.

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Infelizmente, não faltaram aos Pontífices durante esse tempo cruéis humilhações. O governo maçônico da Itália confiscou todo o seu patrimônio, e eles tiveram de pedir esmolas ao mundo inteiro. Muitas nações se negaram a reconhecê-los como soberanos, e retiraram as embaixadas que tinham junto a eles. Quando o primeiro Papa eleito depois da ocupação - foi Leão XIII - participou às potências sua ascensão, algumas responderam com um desdém ultrajoso. A Rússia nem respondeu: o Papa era só um particular, e os governos não acusam recebimento de comunicações particulares, como esta.

Em todos os tratados de Direito Internacional, em todos os Congressos Jurídicos, em todos os Parlamentos, através de toda espécie de livros, jornais, revistas, discutia-se sobre se seria legítimo, jurídico, razoável manter embaixadores junto ao Pontífice, e se ele não deveria ser considerado um mero particular. Pode-se bem imaginar o escândalo, a depressão, o verdadeiro desânimo que as almas tíbias sentiam, vendo o Vigário de Jesus Cristo, que ocupara de direito e de fato, o lugar supremo na Cristandade, arrojado agora à situação de mero particular. Por outro lado se os governos não reconhecessem o Papa, com quem tratariam os negócios referentes ao clero em cada país? Com os respectivos bispos? Quem não vê o golpe profundo que para a unidade de direção dos assuntos da Igreja representaria a exclusão da Santa Sé de qualquer atuação ou intervenção direta em assuntos tais? Quem não vê as dificuldades daí decorrentes para o episcopado, que tem hoje toda a autoridade internacional do Papado em seu apoio, e que ficaria desprotegido diante dos desmandos e demasias do Poder Temporal?

Em todos os sentidos a situação sobre [ademais de] ser precária, era sombria.

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Cinqüenta e muitos anos durou esta ordem de coisas. Mais de cinqüenta anos de humilhações, de apreensões, de sofrimentos. Foi então que Mussolini ofereceu à Santa Sé - sem o menor intuito de fazer, aliás, senão um gesto útil à sua política - o Tratado de Latrão.

Esse Tratado reconheceu a soberania do Papa sobre o território do Vaticano, e alguns imóveis situados fora deste, inclusive a vila de Castel Gandolfo. Assim, para só atendermos  a suas conseqüências internacionais, certas alterações de imenso alcance se operavam automaticamente na situação do Pontífice:

a) passava a ser chefe indiscutível de um pequeno território, e como tal nenhum sofista lhe poderia negar a qualidade de soberano;

b) os membros mais graduados da corte pontifícia eram considerados súditos do Papa e assim dotados de toda liberdade para o exercício de sua missão;

c) essa situação não decorria de uma lei italiana sempre sujeita à revogação do parlamento, mas de um tratado que não se poderia rescindir licitamente sem acordo de ambas as partes;

d) e, assim, salvo o caso de uma violação escandalosa do Tratado, o Papa teria toda liberdade de ação.

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É preciso distinguir claramente entre regime fascista e o Tratado de Latrão. Um péssimo regime pode fazer com uma potência externa um ótimo tratado. O fascismo foi um péssimo regime. O Tratado de Latrão produziu resultados inestimáveis para a Igreja e para a Itália.

Com efeito, só um cego poderá não ver que a situação internacional do Papado cresceu consideravelmente em solidez, em esplendor e em influência com o pacto lateranense. A Igreja, ao mesmo tempo, dava mostras com isto de um vigor que reanimou todos os zelos afrouxados e entusiasmou a iniciativa de todas as almas fervorosas. O Tratado de Latrão coincidiu com um renascimento católico no mundo inteiro. Ele aumentou o viço e a santa ousadia desse renascimento. Ele foi o marco inicial de uma verdadeira primavera católica, que continua a produzir seus frutos sob o inverno inclemente do totalitarismo nazista, fascista, russo ou mexicano.

Pio XI se contentou - foi ele que o disse - com o mínimo que poderia exigir. Essa moderação pontifícia provocou a imediata conclusão do acordo. O acordo deu todos os resultados que acabamos de enumerar. Como então, ousa o LEGIONÁRIO falar em uma "questão romana" em nossos dias?

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E como ousaria ele não falar nessa questão nos dias que correm? O Santo Padre Pio XI teve de se contentar com o mínimo necessário, e disso auferiu os melhores resultados em seu heróico e intrépido pontificado. Diante da tristeza dos atuais acontecimentos, nada pode impedir, entretanto, que em nosso zelo de filhos desejemos mais que esse "mínimo" para a garantia e salvaguarda do Pai comum de todos os fiéis.

Com efeito, a situação atual do Pontífice tem algo de verdadeiramente desconcertante. O Sr. Winston Churchill acaba de revelar na Câmara dos Comuns que o Estado-maior teutônico está na criminosa e infame disposição de fazer de Roma uma nova Stalingrado. Isto quer dizer que todo o mundo guerreará em torno da sagrada pessoa do Santo Padre, que as bombas poderão chover de um lado e do outro, e que o Santo Padre estará precisamente no meio do bombardeio.

Ora, por outro lado, nenhum ataque direto foi feito ao Vaticano. Percebe-se claramente que ambos os beligerantes, receosos do imenso prestígio internacional que tem hoje a Santa Sé, não querem por preço algum dar um passo diretamente voltado contra o Papa. Este continua a receber de ambos os lados todas as garantias. Contra ele, nada se fará. Mas o que fazer se os alemães ficarem em Roma?

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Se o Santo Padre tivesse todo o território que possuía no início do reinado de Pio IX, e que se estendia através de toda a península desde o Adriático até o Mediterrâneo, seria impossível a tristíssima ambigüidade dessa situação. Ninguém poderia por em risco os territórios do Papa sem os invadir. Invadindo-os, haveria com isto uma seqüela de conseqüências políticas inapreciáveis. Estão longe de nós os dias funestos de Garibaldi, em que se assistiu com relativa indiferença a invasão do território do Papa. Hoje, o fato causaria uma revolta mundial. Morreu o liberalismo religioso. Estas coisas não se toleram mais. E ninguém poderia fazer o jogo miseravelmente hipócrita de Hitler: respeitar o território vaticano, e entrincheirar-se em Roma para resistir. Quer dizer, tomar ares de santo e fazer do Pontífice um alvo de bombardeio. Ocupar Roma, invadir Roma, bombardear Roma são termos que devem significar necessariamente atacar o Papa. Do contrário, o Romano Pontífice não poderá sentir-se em segurança no pequeno território que ocupa. Ou temos o Papa com uma zona tecnicamente delimitada de modo tal que essas farsas não se podem repetir, ou estaremos continuamente expostos a alarmes de toda ordem.

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Contra isto se farão duas objeções. E a primeira delas será que queremos o impossível, isto é, uma segurança absoluta para o Pontífice, que, em última analise, não seria absoluta como nada neste mundo. Assim, Hitler poderia bem ter invadido o Vaticano. Se lhe conviesse, não invadiria os territórios romanos por mais vastos que fossem? Por que fazer a esse sacripanta a honra de pensar que agiria de outro modo?

E a isto responderíamos: por que imaginar que Hitler, mesmo agora, não quer invadir o Vaticano? Por que fazer a esse sacripanta a honra de imaginar que ele não folgaria em praticar esse crime horrendo? Se ele não ataca o Vaticano é porque não lhe convém, porque seu medo de uma reação moral é maior ainda que seu imenso ódio a Igreja. Por isto, ele também não ousaria investir contra um território pontifício maior que o atual. Um território maior significaria pois, nas atuais condições, uma distância maior entre o Papa e o campo de batalha, uma precaução a mais para a segurança do Pontífice.

Essa segurança não seria absoluta? Não tornaria fisicamente impossível a invasão? Talvez. Como as chaves não tornam impossível o ingresso de bandidos. Nem por isto, entretanto, as casas deixam de ter chaves.

Outra objeção seria esta: queremos então despedaçar a Itália? O momento é inoportuno de todos os pontos de vista, para reivindicar para o Papa esta ou aquela porção de território concretamente demarcado. Desejamos de todo coração que o Pontífice possa ter um território compatível com as circunstâncias criadas pela técnica militar atual, de sorte a ficar em torno de si com uma zona neutra que o ponha fora do alcance de bombardeios de quem quer que seja. É este o desejo expresso há dias pelo órgão católico de Lisboa, isto é o que essencialmente como católicos devemos desejar. Mas, evidentemente, nos sentiremos felizes se tal se puder conseguir sem prejuízo de preocupações temporais que, guardadas todas as proporções, são sumamente respeitáveis e dignas de toda a consideração.