A Encíclica "Mystici Corporis Christi", que encheu de
tal contentamento os que ansiávamos por um esclarecimento que pusesse termo a
múltiplos e perigosos erros que circulavam sobre este assunto, não pode deixar
de ser largamente comentada pelo “Legionário” . E, assim, é a ela que quero
consagrar as colunas do artigo de fundo deste dia.
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O primeiro comentário sobre a Encíclica consiste em
que, sobre ela, não se pode ficar somente em comentários. Quem ler com atenção
o texto pontifício perceberá facilmente a extrema complexidade da matéria de
que ela trata, e a série quase interminável de confusões, de erros "serpejantes" - a expressão é do Papa - de ambigüidade
de toda ordem que se têm procurado apoderar do assunto.
Precisamente por isto, nota-se que o Vaticano teve
especial cuidado em evitar pretextos para que, em matéria de tanta monta,
entrasse a "cooperação" de terceiros, desfigurando ao sabor de suas
preferências o texto pontifício. Este cuidado transparece sobretudo através de
dois indícios: a tradução diretamente feita pelo próprio Vaticano, não só para
o português como também para outros idiomas provavelmente, e a cuidadosa divisão
do texto em partes, títulos e subtítulos de forma a evitar, sob pretexto de
maior clareza, interpolações de terceiros. De ordinário, a Santa Sé só toma
estas precauções com documentos de grande valor, em que não quer de modo algum
deixar aberto o menor e mais longínquo pretexto para deformações.
Ora, se a Santa Sé teve receio de que a imperícia
ou a paixão desfigurassem o próprio texto pontifício, é legítimo que também nós
nos acautelemos contra comentários capazes de deformar o pensamento do Soberano
Pontífice. E, para isto, nada melhor do que fazer-se o estudo de qualquer
comentário, tendo sempre o texto do Papa na mão, e diante dos olhos. Nesta
Encíclica, mais do que em qualquer outra talvez, os comentários são feitos não
para dispensar do estudo do texto, como sobretudo para incitar a que se vá à
própria fonte, que é a palavra do Vigário de Cristo.
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Não se julgue que essa recomendação deve ficar na
ordem das coisas vagas e remotamente convenientes. É no próprio texto do
Pontífice que ela se funda.
O ambiente contemporâneo é cheio de contradições e
entrechoques doutrinários violentos: "enquanto por um lado perdura o falso
racionalismo, que tem por absurdo tudo o que
transcende e supera a capacidade da razão humana, e com ele outro erro
parecido, o naturalismo vulgar, que não vê nem quer reconhecer na Igreja de
Cristo senão uma sociedade puramente Jurídica; por outro lado grassa por aí um
falso misticismo que perverte as Sagradas Escrituras, pretendendo remover os
limites intangíveis entre as criaturas e o Criador".
Em outros termos, nota-se no ambiente hodierno uma
série de erros opostos, e em matéria religiosa se dá um fenômeno análogo ao que
se observa na política. Com efeito, quer do campo democrático quer do
totalitário, se elevam vozes a reivindicar o apoio católico. Analisemos as
doutrinas que chegam a nós, confusas e ardentes, através dos clamores da luta:
veremos imediatamente que há erros graves em ambos os campos, e que a luta
entre eles é uma luta de erros e não de verdade contra o erro. Por isto mesmo,
pode-se perguntar onde está o mal menor, se de um lado, se de outro. O
“Legionário” de há muito se manifestou contra o lado das chamadas
"direitas", nas quais vê o mal maior. Mas não há como indagar onde
está o bem, que não se encontra íntegro em nenhum dos campos.
Na esfera política, o resultado foi claro. Poucos
foram infelizmente os católicos que souberam ver na disciplina ardente e
incondicional à infalível autoridade da Igreja, a verdadeira tábua de salvação.
Uns procuraram a fórmula salvadora no nazismo. Outros no comunismo. Outros na forma nazificante,
ou nas bolchevisantes. Poucos foram os que se
lembraram de que "bonum ex íntegra causa;
malum ex quocumque defectu". Se
havia mal nos dois lados, ficássemos só com a Igreja, "íntegra causa"
por excelência.
E daí uma tremenda confusão. Uns, por amor à
autoridade, chegaram ao totalitarismo. Outros, por amor à liberdade, chegaram
até à demagogia. A grande tragédia da luta entre nazismo e comunismo, entre
fascismo e democracia, não foi tanto o extravio completo dos que já eram maus,
mas a ruína, a confusão, a dilaceração interna entre os que eram bons.
Também no campo teológico, o Santo Padre Pio XII nos mostra dois
excessos contrários a se entredegladiarem. Vem agora
a descrição da confusão, feita pela própria pena do Pontífice: "não só
autores separados da verdadeira Igreja espalham graves erros nesta matéria do
Corpo Místico de Cristo, mas também entre os fiéis vão serpejando opiniões ou
inexatas ou de todo falsas, que podem desviar os espíritos da reta senda da
verdade". O perigo é grave. Com efeito, que de mais catastrófico do que o
afastamento dos espíritos "da reta senda da verdade?" Se a Fé é o
fundamento de todas as virtudes, o que mais triste do que o afastamento das
sendas da Fé? O alcance desta afirmação pontifícia só poderá ser devidamente
medido à luz da própria doutrina do Corpo Místico. Diz o Pontífice que
"como membros da Igreja contam-se realmente só aqueles que receberam o lavacro da regeneração e professam a verdadeira fé, nem se
separam voluntariamente do organismo do Corpo (Místico de Cristo), ou não foram
dele cortados pela legítima autoridade em razão de culpas gravíssimas".
Afastar-se da senda da verdade, ou da Fé, é, pois, "não viver neste corpo
único, nem do seu único Espírito divino". Os erros sobre o Corpo Místico
acabam, pois, produzindo este resultado paradoxal: afastam, fazem sair do Corpo
Místico os que erram. Que de pior?
Infelizmente, o perigo não fica aí. Muitos espíritos,
justamente temerosos de se deixarem envolver por esta confusão, não compreendem
entretanto que na Revelação tudo é perfeito e admirável, e passam de um
explicável temor à vista da confusão, para uma atitude de desconfiança em
relação à doutrina a respeito da qual a confusão se estabeleceu. Não que sejam
cegos à beleza desta doutrina. Mas - é o mesmo Pontífice que fala - "consideram esta sublime doutrina como
perigosa, e fogem dela como do pomo do Paraíso, belo mas proibido". E com
isto gravemente se prejudica a piedade dos fiéis, impedida de se nutrir com o substancialíssimo alimento espiritual contido na doutrina
de São Paulo sobre o Corpo
Místico de Cristo. O Pontífice protesta contra este infundado temor da
própria doutrina do Corpo Místico, como se intrinsecamente considerada, e em si
mesma, tivesse erro ou encerrasse perigo, e devesse portanto ser relegada a um
prudente esquecimento: "Não; os mistérios revelados por Deus não podem ser
prejudiciais ao homem, nem devem permanecer infrutíferos, como tesouro
enterrado no campo; senão que nos foram dados por Deus, para proveito
espiritual dos que piamente os contemplam".
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Constitui para nós um grave dever cooperar em toda
a linha para que a confusão cesse neste terreno. Sejamos prosélitos ardentes da
doutrina do Corpo Místico de Cristo. E, sobretudo, insistamos por que todos os
estudos feitos nesta matéria tenham por base e constante ponto de referência a
admirável Encíclica "Mystici Corporis Christi". Com
isto, cessará qualquer dificuldade, e brilhará serena, para a edificação geral,
a genuína doutrina da Igreja.
Da Igreja! Como não compreender, admirar e amar
ainda mais a Santa Igreja Católica, depois da luminosa e claríssima doutrina
ensinada pelo Santo Padre Pio XII sobre o Corpo
Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é a própria Igreja Católica!
A Igreja Católica é o maior tesouro que Nosso
Senhor deu aos homens. É ela o escrínio em que se encerram todos os outros
tesouros que Cristo nos deu. Não sei de coisa mais urgente, mais atual, mais
premente, do que inculcar nos fiéis uma ardente devoção à Santa Igreja.
E, para isto, um estudo exato, dócil, metódico, da
Encíclica sobre o Corpo Místico de Cristo pode concorrer admiravelmente. Aliás,
para só falar dos documentos recentes, temos ainda outro ato do Magistério
Eclesiástico, muito importante, a considerar a respeito da Santa Igreja: é a
Pastoral de Saudação do Exmo. Revmo. Sr. Dom Jaime de Barros Câmara, em que o ilustre Prelado doutrina acerca das
notas distintivas da verdadeira Igreja, pondo ao alcance de todos, de modo
atraente, claro, metódico, soberanamente útil, uma exata apreciação das
características que tornam clara a divindade da Igreja Católica.
Com base nestes dois documentos, pode-se fazer uma
verdadeira campanha de incremento de entusiasmo e ardor para a Igreja de
Cristo, por toda a vastidão do território nacional.