O pequeno e grande testamento deixado por Dom José
Gaspar de Afonseca e Silva
não pode passar sem um registro e um comentário. Ele servirá para que, nesse
exemplo de desprendimento e austeridade do Bispo, se edifiquem os fiéis e seja
mais um título para admirar a Igreja os que tem a desdita de viver fora do
aprisco do Bom Pastor.
Quando na Idade Média, a civilização cristã
ameaçava desviar-se dos seus rumos pelo exagerado apego dos homens ao dinheiro
e aos prazeres que pelo dinheiro se obtém, a Divina Providência suscitou São
Francisco de Assis e as gloriosas
famílias religiosas que fundou para escandalizarem santamente o mundo pelo
exemplo impressionante de uma pobreza intransigente e uma invariável
mortificação. O exemplo valeu, e arrastou atrás de si multidões inteiras. A
Europa se regenerou ao calor da mortificação franciscana, deslumbrada pela indigência do ''Poverello''
muito mais do que se deslumbrariam pagãos ante os tesouros do mais rico dos
potentados orientais. E a experiência demonstrou mais uma vez que o melhor meio
de abater qualquer vício consiste em lhe opor o exemplo completo e
intransigente da virtude contrária. Neste nosso século argentário, em que o
vulto das posses de cada qual parece ser o único padrão pelo qual se medem
todos os valores humanos, o exemplo de desprendimento e pobreza, dado
invariavelmente pelos Bispos da Santa Igreja de Deus, agora repetido de modo
tão singelo, tão lacônico, tão despretensioso por Dom José Gaspar de Afonseca e
Silva, tem um perfume evangélico que não se pode perder. É preciso que esta
pobreza voluntária seja registrada e comentada. Desperdiçar esta ocasião é
desperdiçar um dom de Deus, Autor de todo o bem.
Dom José não morreu simplesmente pobre: a expressão
“pobre” pode indicar apenas uma insuficiência de bens, e Dom José Gaspar morreu
sem bens de nenhuma espécie. É esta realidade que seu testamento revelou.
Segundo o Direito Canônico, o Bispo faz jus a certos proventos para a sua subsistência. Estes
proventos, ele os pode aplicar como entender, e pode, portanto, regular de tal
forma sua despesa que lhe sobre alguma economia para as eventualidades ou
ocasiões que tiver em vista. “É digno o operário de seu salário”, nos diz o
Apostolo. E o Operário por excelência, isto é aquele a quem Deus cometeu o
encargo de trabalhar em Sua vinha, é digno evidentemente “mercede sua”. Nada impediria, pois, que Dom José procurasse acumular para si
um patrimônio individual. Ademais, está bem viva entre nós a recordação de
quanto foi estimado o pranteado Arcebispo. Implica isto em dizer que Dom José
foi presenteadíssimo. Pertenciam a todas as classes
sociais as pessoas que porfiavam por lhe oferecer algum mimo, a título de
homenagem de respeito e simpatia. Nada impediria que ao menos o Arcebispo
conservasse para si a posse dos objetos que recebeu. Entretanto, não tendo
economias próprias, e possuindo apenas alguns objetos de seu uso, moço ainda e na
pujança de sua saúde, antes de partir para o Chile quis fazer seu
testamento. Para que? Para que ficasse bem claro que nem sequer estes objetos
lhe pertenciam, porque ele os doara à Arquidiocese. Era a renúncia meticulosa,
intransigente, deliberada a qualquer propriedade. Era uma expressão daquele
desprendimento que Dom José professara praticar entrando na Ordem Terceira de
São Francisco, da qual era membro ilustre. Numa época de tão geral
apego a todas as coisas terrenas, perece-nos bem importante frisar este
exemplo. Vendo Dom José cercado do decoro habitual que a magnitude das funções arquiepiscopais exige absolutamente, serão poucos os que o
possam ter conhecido debaixo deste ponto de vista.
Serei indiscreto pondo em relevo mais um pormenor,
dentro desta ordem de idéias? Todos conheceram a grande sensibilidade de Dom
José. Podem, pois, imaginar que satisfação lhe causaria qualquer alegria entre
os de sua família. Estimadíssimo em São Paulo, e dispondo de todas as relações,
seria suficiente uma pequena palavra de sua parte para franquear aos seus
acesso à situações promissoras. Dom José entretanto se manteve ainda aí dentro
de sua linha de rigoroso desprendimento. E a evidência dos fatos revela que não
só sua autoridade jamais se moveu neste sentido, mas que os seus jamais
quiseram invocar os títulos de tão honroso parentesco para galgarem
apressadamente situações largamente lucrativas ou lisonjeiras.
Dom José deixa, pois, atrás de si um sóbrio exemplo
de desprendimento. Seu testamento o proclama de modo iniludível, e, em luminosa
continuidade com os recentes exemplos de Dom Duarte e Dom Leme, edifica todos os
fiéis.