Legionário, N.o 553, 14 de março de 1943

Pio XII

Tendo transcorrido na semana p.p. a festa aniversária da coroação do Santo Padre Pio XII, não podemos deixar de consignar a data nesta coluna, com a expressão comovida dos sentimentos filiais que tão grata efeméride em nós desperta.

O mundo contemporâneo admira certamente Pio XII. Porém, não o conhece bem. Se o conhecesse, é indiscutível que sua admiração subiria de ponto.

Tive a fortuna de conversar, certa vez, com uma personalidade que conhece Pio XII de perto. Foi à luz das informações que me deu, que pude julgar no seu devido valor a alta figura do atual Pontífice.

Todos sentem, todos vêem, todos sabem e admiram o que de heroísmo, de coragem, de nobre fidelidade aos princípios vai no impressionante silêncio que Pio XII tem observado durante a conflagração mundial. Colocado em situação melindrosíssima solicitado por todos os lados, e tendo que tutelar gravíssimos interesses da Santa Igreja postos em jogo no atual conflito, o Santo Padre, se tivesse têmpera menos rija e espírito menos ascético, teria sentido uma dificuldade soberana em fixar sua linha de conduta no atual conflito. Com efeito, sem prejuízo da suprema garantia, da infalibilidade com que o assiste o Espírito Santo, o Sumo Pontífice poderia ter cedido a esta ou àquela pressão, a esta ou àquela solicitação, em assuntos concretos em que as questões de fato avultam extraordinariamente, e se apresentam com uma complexidade quase insondável. No entanto a conduta do Soberano Pontífice tem sido de uma uniformidade e sobranceria impressionante. Nem um passo, nem uma linha, nem uma palavra que possa de qualquer forma ser explorada contra os interesses da Santa Igreja. Realizar este prodígio de equilíbrio em um mundo de tal forma tormentoso, é certamente uma obra-prima diplomática. Mas ela só poderia ser levada a cabo por quem tivesse um alto cabedal de virtudes interiores, capaz de estabelecer contínua correspondência às inumeráveis graças com que Deus assiste a todo o momento o seu Vigário na terra. Dizia-me o interlocutor a que me referi, que o Santo Padre é essencialmente um asceta, e que suas melhores bênçãos vão para os esforços destinados a avivar o espírito ascético entre os fiéis. Julgamos, pois prestar-lhe homenagem estudando este aspecto de sua personalidade.

Com efeito, a linha ascética constitui o próprio substratum de sua personalidade, do atual Pontífice, no que aliás, para a glória de Deus, também já tem brilhado tanto em seus antecessores: Pio XII é um verdadeiro asceta, no sentido mais exato desta palavra.

Seu vulto alto, nobre e esguio, em que todos os gestos, todas as atitudes, são visivelmente objeto de uma constante vigilância; seu rosto afável e acolhedor no qual entretanto se percebe que não há um movimento, nenhuma expressão, nenhum reflexo que não tenha sido objeto de um expresso consentimento da razão e da vontade; seu olhar dulcíssimo no qual se observa facilmente um completo domínio de si, e a fixidez de homem que já morreu para as ilusões da terra e vive somente dos pensamentos do céu; tudo manifesta em Pio XII a alma interior, e mortificada, que é a causa profunda da firmeza de seu pontificado.

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O público tem, em geral, uma idéia errada do que seja um asceta. Pensa que é uma pessoa exímia em se submeter a toda espécie de mortificação material; de se atirar sem vacilação a portentosos jejuns; de usar sem trepidação cilícios pesadíssimos; de viver voluntariamente na mais intransigente pobreza. Evidentemente, tudo isto faz parte da ascese. Mas ascese é mais do que isto.

Fala-se freqüentemente muito em “vida interior”. Infelizmente, porém, poucos são os que conhecem o luminoso e terrível significado que, na linguagem da Igreja,  tem essa expressão. Ela, entretanto, é claríssima. O homem tem, em conseqüência do pecado original, uma inclinação constante para o mal e para o erro. A Santa Igreja nos aponta, porém, preceitos e verdades que devemos praticar e crer sob pena da condenação eterna. Em outros termos, só daremos glória a Deus e só salvaremos nossa alma se crermos em coisas que pesam à debilidade de nossa inteligência, e se praticarmos atos que repugnam à malícia de nossa vontade. Precisamos, portanto, lutar dentro de nós mesmos, contra nossos próprios defeitos, a fim de não praticarmos o que a Igreja proíbe, não crermos no que ela condena; e pelo contrário fazermos o que ela manda, e crermos no que ela ensina. Nunca conheceremos toda a profundeza desse programa de reforma interior, se não compreendermos que a Igreja, mandando que creiamos nisto ou naquilo, que façamos isto ou aquilo, não se contente apenas com nossos atos mas quer uma transformação de nossa própria personalidade. Não basta agirmos como católicos. É preciso que sejamos católicos não só em nossos atos, mas em toda a nossa personalidade.

Uma transformação qualquer supõe, sempre, a observação exata do que existe; a convicção de que o que existe deve ser reformado; o estudo dos meios adequados para a execução da reforma; e, finalmente, os trabalhos mediante os quais a extirpação do que está errado e a implantação do que está certo se opera.

Assim, pois, para que o católico viva vida interior – e disso não está eximido nenhum católico – é preciso que se veja claramente tal e qual é: terrível humilhação, que muitas vezes o homem só leva a cabo mediante duro sacrifício. Em seguida, é preciso que examine sem tergiversação nem vacilação seu estado atual à luz do ensinamento da Igreja, abrindo os olhos claramente, francamente, honestamente, sobre toda a fealdade de seus defeitos, e animando-se assim de um intenso desejo de os reformar. Finalmente, cumpre que se estude a si mesmo meticulosamente, que estude meticulosamente os processos da vida espiritual, e, finalmente, daí deduza os métodos pelos quais se há de reformar, métodos estes que devem ser adotados ao mesmo tempo com humilde prudência e ardente generosidade; e, ao cabo de tudo, está tudo por começar: é preciso deitar o remédio à chaga, chegar o bisturi à parte doente, cortar o que deve ser cortado, retificar o que deve ser retificado, suportar o que se deve padecer, sofrer o que se deve expiar, e renascer de todo este trabalho com mentalidade, personalidade inteiramente outra.

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Vem daí a expressão “vida interior”. O homem precisa estar empenhado numa constante análise de si mesmo. A todo momento, precisa saber como está sua alma; porque está agindo dessa ou daquela maneira; se lhe é lícito proceder por este ou aquele modo; se é conforme a moral católica sentir desse ou daquele modo perante determinado acontecimento. Este esforço se chama “vida” não só porque ele governa toda a vida de um homem, como porque ele é tão intenso e deve ser tão contínuo, que constitui para o homem como que uma existência à parte, que se desdobra num plano mais alto e mais profundo do que sua existência exterior. E é chamado “vida interior”, precisamente porque exige que o homem tenha hábito ininterrupto de se analisar e se governar a si próprio, agindo e vivendo “dentro de si mesmo”, de forma incessante.

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Estou persuadido de que, à vista desta descrição, muitos leitores terão experimentado o pânico que os doentes sentem quando se lhes descreve uma sala de operação; ou o terror dos prisioneiros dentro da sala de torturas.

É porque deixamos expressamente, à parte, uma realidade divina, objetiva e consoladora no mais alto grau. Ensina a doutrina católica que nos é impossível fazer o menor ato de virtude sobrenatural sem a iniciativa e auxílio de Deus. Na alma do batizado, Deus Nosso Senhor age ininterruptamente de modo invisível. Quando sentimos o desejo de praticar uma boa ação, ou quando fugimos de uma ação má, podemos ter a impressão enganosa de que só nos moveram nossas próprias reflexões e volições. Na realidade, Deus é que nos sugeriu o pensamento; Deus é que nos fortificou a vontade; Deus é que, sem destruir nossa liberdade, mas pelo contrário aumentando-a, nos deu plena faculdade de vencer as tendências do mal, rejeitando-as por um ato voluntário e livre. A vida divina brilha esplêndida, por entre as agruras das lutas interiores. Queremos estar com Deus? Entremos dentro de nós mesmos e lutemos conosco para fazer a vontade de Deus. A cada passo, a cada instante, ainda que o não notemos de modo sensível, podemos ter a convicção consoladora entre mil, de que Deus está conosco, fazendo-nos lutar, fazendo-nos vencer desde que tenhamos heroísmo e saibamos generosamente enfrentar e derrubar os obstáculos.

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Compreende-se facilmente em que potência se transforma, pela graça de Deus e generosa cooperação da vontade, um homem assim disciplinado. É esta a única escola da verdadeira grandeza. Todo homem de vida interior é incomparavelmente mais autenticamente um grande homem, do que os homens glorificados em bustos ou estátuas pela nossa civilização quase inteiramente paganizada, que na generalidade dos casos foram muito mais joguetes de paixões e de circunstâncias, do que verdadeiros realizadores de seus triunfos pela graça de Deus.

Pio XII é uma figura desse alto porte, desse grande e nobre e sobrenatural valor. Homem de vida interior, só com vida interior lhe teria sido possível manter a linha nobilíssima que, em continuidade de Pio XI, vem seguindo para a glória da Igreja.