Edifica a toda a população da Arquidiocese de São
Paulo a piedade filial com que o Ex.mo e Rev.mo Sr. D. José Gaspar de Afonseca
e Silva, Arcebispo Metropolitano, faz comemorar oficialmente,
todos os anos, a data do falecimento do grande e saudoso Dom Duarte. As
celebrações efetuadas habitualmente no dia 13 de Novembro excedem de muito as
exigências do protocolo e as conveniências do decoro eclesiástico e significam
muito mais do que uma praxe a que se obedece ou um dever que se cumpre apenas
no limite estrito de sua obrigatoriedade. O Sr. Arcebispo Metropolitano
sufragando a alma de Dom Duarte de forma tão solene
e incitando todo o povo, tão vivamente, a que o siga neste piedoso gesto, além
de prestar à santa alma de seu antecessor o único serviço que hoje lhe possamos
fazer, denuncia o propósito de conservar vivaz, em nossa recordação, a figura
majestosa e veneranda daquele Prelado que governou por trinta anos o rebanho paulopolitano. É um preito de admiração e gratidão pessoal,
que se liga ao desejo de conservar para a edificação dos fiéis a memória de um
Arcebispo sob todos os títulos verdadeiramente excepcional.
Secudando a conduta de nosso
atual Antístite, tracemos algumas linhas sobre o grande Dom Duarte. Não custa
fazê-lo: basta abrir o coração e deixar falar as saudades...
* * *
Contou-me nosso atual Arcebispo certa vez que,
conversando com um visitador da Santa Sé no Brasil,
este lhe dissera que Dom Duarte era uma figura capaz de ocupar com garbo os
mais conspícuos sólios da terra, pois que era um dos maiores bispos que a Santa
Igreja possuiu em nossos dias. Era essa a opinião abalizada de um observador
imparcial, que o Santo Padre honrava com sua confiança pessoal, e que viajara
por vários países da terra, no exercício de suas árduas funções. E, nessa
apreciação, não havia exagero.
Quem de nós não se lembra daquela figura esguia e
solene, sempre aprumada, de gestos sempre fidalgos, de acolhida sempre nobre e
majestosa, que em toda a sua pessoa deixava transparecer ao mesmo tempo uma
extraordinária consciência da dignidade de seu cargo, uma resolução inabalável
de cumprir os espinhosos deveres jusque ad effusionem sanguinis,
uma firmeza indomável, e uma piedade sólida e comovedora? Quem de nós,
aproximando-se de Dom Duarte, não sentiu aquele misto de respeito e de
confiança seguríssima que sua pessoa inspirava, e que nos levava a agir, a
falar e até a sentir em sua presença como se estivéssemos em uma igreja? Quem
de nós não lhe sentiu a fortaleza paternal? A majestade de Dom Duarte era como
a do sol ao meio dia: completa, indiscutível, invencível, esplêndida. Ao calor
de seus raios, sentia-se a convicção de que os adversários da Santa Igreja
estavam inevitavelmente circunscritos em sua ação maléfica e que por isto mesmo
seriam inúteis todas as suas investidas.
Os que costumam freqüentar a Cúria Metropolitana
conhecem o decoro que reina invariavelmente, como é natural, naquela repartição
eclesiástica. O atual Bispo de Jacarezinho, D.
Ernesto de Paula, contou-me que, apesar disto, a simples presença de Dom
Duarte tinha uma tal ação que lhe bastava entrar na Cúria para ver desde logo
se Dom Duarte estava ou não, em seu gabinete de trabalho do primeiro andar.
Presente o Arcebispo, um ambiente indefinido se alargava por todo o vasto
prédio, onde tudo parecia dizer “o Arcebispo aí está”.
A pessoa de Dom Duarte tinha um particular que é a
nota típica da figura autenticamente grande. Admirado por gregos e troianos,
sabia conservar também a admiração de seus íntimos. Simplesmente ao ver-se uma
pessoa falar sobre Dom Duarte, sabe-se se ela teve ou não a inestimável graça
de viver em sua intimidade, tal é a unção com que falam dele os que mais de
perto o conheceram. Seus íntimos foram os que mais o admiraram. Diz-se que
ninguém é grande homem para seu secretário particular. Quem quiser ver
desmentir esta regra poderá conversar alguns minutos sobre Dom Duarte com algum
de seus antigos secretários, o atual Bispo Auxiliar de Ribeirão Preto, Dom
Manuel D’Elboux, ou o atual mordomo do Palácio São Luiz, Cônego Silvio de
Moraes Mattos, por exemplo. Verá, certamente os ex-secretários
mais admirativos, mais piedosa, comovida e filialmente
admirativos que alguém possa ver.
Não posso dizer que tenha tido a fortuna de entrar
propriamente na intimidade de Dom Duarte. Seus íntimos eram, além de alguns
membros de sua família, apenas aqueles que o dever de ofício introduzia em seu
convívio particular. Mas tive inúmeras ocasiões de tratar com ele questões
reservadíssimas, em que um homem se mostra todo inteiro. Conheci-o muitíssimo
de perto. E pude verificar que, em se tratando de Dom Duarte, a palavra intimidade tinha um sentido especial. Os
íntimos não eram aqueles junto aos quais ele se permitisse de abrandar um tanto
as regras do decoro e da conveniência, a que tão meticulosa e mortificadamente se sujeitava. Os íntimos não eram aqueles
em cuja presença se permitisse uma retenue menos estrita do que em público. Íntimos eram
aqueles que, observando-o mesmo em seus momentos mais comuns, podiam ver que
aquele homem de Deus era verdadeiramente e plenamente tudo quanto parecia ser,
conservando-se idêntico a si mesmo, sempre majestoso, sempre grande, sempre
piedoso, até nos menores e mais insignificantes atos de sua vida.
Um exemplo falará pelo resto. Contam seus íntimos
que Dom Duarte jamais deixava o uso correto e pleno do traje eclesiástico,
ainda mesmo na intimidade. Nunca aparecia, por exemplo, sem colarinho, ou de
batina desabotoada nem mesmo nos primeiros botões da parte alta. Ele era sempre
ele. E, no dia tristíssimo para nós em que Deus o chamou à glória do Céu,
quando o piedoso Arcebispo, deitado a altas horas da noite começou a sentir a
crise cardíaca que o matou, tocou a campainha chamando seu dedicadíssimo
secretário, Cônego Silvio de Moraes Mattos. Pode-se imaginar com que celeridade
este acudiu. Porém, quando entrou no quarto, encontrou Dom Duarte sentado e já
de batina, se bem que arfando de dor e falta de ar. Arranjara meios de se
vestir em alguns minutos, se bem que às voltas com uma crise cardíaca mortal...
era assim a intimidade desse santo homem...
Uma nota curiosa de sua personalidade era a
vivacidade de sua inteligência. Contam-se dele inúmeros ditos espirituosos, mas
dum espírito vivo, penetrante, ágil, nobre, que nada tem de comum com a
chocarrice plebéia em voga nos círculos profanos, em nossos dias. E apreciava tanto
o verdadeiro espírito que o tolerava de boa mente, mesmo quando feito um
pouco... a suas próprias expensas. Conta-se, por exemplo, que ele conversava
certa vez com um inteligente e piedoso sacerdote, hoje prelado doméstico do
Santo Padre e uma das primeiras figuras da Igreja no Brasil, que além do mais
era seu velho e estimado amigo. A certa altura, Dom Duarte, que era fumante,
lhe ofereceu um cigarro. O interlocutor recusou. Um tanto ironicamente, com
aquela ironia incomparável e deliciosa
que era só dele, Dom Duarte lhe perguntou: “o Sr. não tem este vício?”
Disse-lhe o interlocutor: “Se fosse vício, V. Ex.a não o teria”. Ao que Dom
Duarte agudamente respondeu: “Mas se fosse virtude, o Sr. certamente teria”.
Creio que este pequeno episódio, pelo que tem de típico, é uma das boas
recordações da vida tão cheia de méritos do ilustre prelado que conversava com
Dom Duarte.
Muito sensível às manifestações de amizade, gostava
que fossem sóbrias. Estimava vê-las traduzidas em atos, muito mais que em
palavras. Como ele próprio muito mais traduzia em atos do que em palavras seu
próprio afeto. Julgaram-no, por isto, duro. É um erro. O coração de Dom Duarte
não era vazio de afeto. Pelo contrário, era ele de uma rara capacidade de se
afeiçoar às pessoas. Mas seu coração era como aqueles santuários da Igreja
primitiva, no qual não havia acesso senão dificilmente. Na sua afetividade,
havia catecúmenos e neófitos que só tinham direito à plenitude da amizade e da
confiança depois de uma longa observação, de uma aguda experiência, de uma
atenção meticulosa. O coração de Dom Duarte era como um santuário onde não pode
entrar qualquer um, mas só quem é digno de tal. Era um coração governado pela
Fé e pela razão, e por isto mesmo posto em constante atalaia contra as traições
da sensibilidade humana, sempre disposta a se contentar com aparências, sempre
inclinada a se iludir com palavras e a tomar os elogios como provas de amizade
sincera. E, por isto mesmo, era realmente pequeno o número dos que foram
bastante felizes para lograr ali acesso no rol dos que ele efetivamente
apreciava. Mas, em compensação, poucas honras um homem pode ter tido tão
autênticas em sua vida do que podendo dizer: tive o afeto e a confiança de Dom
Duarte.
* * *
Escrevi este artigo como uma célebre escritora
francesa que escrevia suas cartas en faisant
trotter la plume. E escrevi demais. Demais e de menos. Demais,
porque todos nos lembramos de Dom Duarte e as saudades que dele sentimos
continuam a nos acompanhar durante a vida inteira. De menos, porque nunca se
escreverá bastante sobre ele.
Aqui ficam, como homenagem saudosíssima
à sua imperecível memória, estas linhas que, se não têm o mérito do talento nem
sequer o da ordem na exposição da matéria, exprimem ao menos uma admiração
profunda, um afeto filial, uma gratidão profunda de quem, incapaz de se alçar à
altura dele, procurou ao menos, na modéstia de suas forças, edificar-se e
instruir-se na incomparável escola de sua heróica fortaleza apostólica.