Plinio Corrêa de Oliveira

 

O verdadeiro sentido do voo Chamberlain

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, No 314, 18 de setembro de 1938

 

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Por mais que se procure impedir que o grande público tenha uma visão direta de todas as conseqüências das últimas negociações de Berchtesgaden, tudo leva a crer que se o espectro da guerra for realmente afastado em virtude do encontro Hitler-Chamberlain, a conflagração não será propriamente “evitada”, mas adiada.

A anexação ao III Reich dos territórios centro-europeus de idioma germânico não é, ao contrário do que muitos supõem, uma reivindicação de última hora do regime nazista. Pelo contrário, foi o sonho da Alemanha total, abrangendo em seu seio todos os povos germânicos, a miragem inicial com que a propaganda nazista recrutou seus primeiros aderentes.

Foi em grande parte a este ideal, que os veteranos do Partido ofereceram o holocausto de seus lazeres, de suas comodidades, de sua fortuna e até de sua vida. Foi pela fascinação dessa promessa preliminar que Hitler atraiu para o campo nazista inúmeros alemães de princípios contrários aos seus, que faziam abstração de qualquer divergência partidária ou doutrinária, para cooperar na obra da formação de uma Alemanha global. Essa fascinação foi tão tirânica, tão obcecante, tão indiscutível em muitos espíritos, que ela chegou mesmo a impor o maior e o mais criminoso de todos os holocaustos: o da Fé religiosa. E esse holocausto foi feito! Os povos bárbaros da antigüidade ofereciam em holocausto frutas, animais e até homens. O fanatismo nazista exigiu um sacrifício ainda maior e infinitamente mais monstruoso: pelo abjeto delírio de orgulho racista, que Hitler soube inocular em suas hostes, até o sacrifício supremo de repúdio da Fé e da salvação eterna foi feito por inúmeros nazistas. O admirável patriotismo germânico, fruto abençoado da moral católica, transformou-se, mercê da propaganda racista em um fanatismo cego e brutal, Moloch novo que desafia a civilização moderna, estendendo sobre a Europa Central seus braços ameaçadores e ávidos de conquistas.

 

Por que foi à Alemanha o Sr. Neville Chamberlain? Para tornar mais frisante a capitulação inglesa? Ou obedecendo a um daqueles planos subtis e misteriosos de que a diplomacia britânica detém o privilégio? Acompanharão os políticos ingleses o plano ousado de seu “premier”?

 

Subiu Hitler ao poder. E, um por um, os pontos de seu programa reivindicador foram sendo realizados. Em primeiro lugar, o Sarre e os vexames impostos à França nas margens do Reno. Depois, o “Anschluss” austríaco. Agora, a Checoslováquia. E assim por diante.

*  *  *

Diante desse Moloch, como reagiram os Países por ele ameaçados?

Invariavelmente, diante de cada rugido do leão, as potências ocidentais recuaram e transigiram, com o temor de que ele quebrasse as últimas algemas com que o atara a ingenuidade wilsoneana. Supunha-se que os territórios devorados saciassem enfim sua fome. E que, portanto, a paz acabasse por reinar na Europa inquieta e perturbada.

Não foi isto que se deu. O repasto, pelo contrário estimulava suas forças, e cada vítima deglutida significava mais uma campanha de reivindicações em outra fronteira. Finalmente, a Europa se encontrou neste dilema verdadeiramente trágico: recusar alimento ao leão sempre faminto, seria exacerbá-lo para a luta. Dar-lhe alimento seria tonificá-lo para novas façanhas. Como resolver a questão?

A princípio, pareceu prevalecer o alvitre de tentar o extermínio do leão enquanto ele estivesse com fome. Depois, Chamberlain e seus aliados inclinaram-se para outro alvitre, e parecem agora propensos a colocar em suas fauces escancaradas, o trêmulo e impotente camundongo tcheque. Dentro de não muito tempo, saberemos as minúcias do que, na realidade, se decidiu.

Seja como for, porém, o problema continua de pé. A Alemanha quer todos os povos de língua alemã. É esta a promessa de Hitler a suas hostes. E de seu cumprimento depende a estabilidade do princípio nazista. É um ponto de mística doutrinária, no qual o nazismo é exacerbadamente inteligente. Assim como não se compreenderia a anexação e a subordinação de uma província habitada por homens, e um império habitado por orangotangos, assim também não se compreende, não se pode compreender, não se deve compreender, não se quer de nenhum modo compreender a subordinação de alemães a homens comuns. E com isto fica dita a última palavra. Ou a realização do sonho da Alemanha total, ou a guerra próxima ou remota, pouco importa.

*  *  *

Se de um lado um povo quer tudo e, por outro lado, povos há que não querem nem podem, no final das contas, ceder tudo, a guerra é uma questão de dias ou de meses, mas fatalmente explodirá.

Que extensão poderá ela tomar? Não o sabemos. Quando poderá ela explodir? Amanhã? Daqui a 6, 10, 12 ou 24 meses? Não o sabemos. Mas enquanto Hitler estiver no poder, ela será inevitável.

Nessa condicional que aventamos, está o sentido profundo da missão de Chamberlain.

A guerra significaria necessariamente o desabamento da civilização européia, e o Velho Continente se transformaria, caso a Alemanha vencesse, em um montão de ruínas policiadas pelos camisas pardas. O nazismo acha que ainda assim “vale a pena”. Mas a Inglaterra, a França e - este é o ponto capital - uma grande parte da própria opinião alemã acha que não.

Colocando Hitler no papel evidente de provocador, papel este que o gesto de Chamberlain tornou claro até à evidência. Hitler aparece, para todas as mães, esposas, filhas e irmãs dos futuros combatentes, como o instigador da morte dos seus parentes. Enquanto tudo estiver em mobilizações e desfiles, isto não tem importância. Mas quando os lares começarem a se encher de luto, a posição de Hitler começará a se tornar difícil.

Depois, adiando-se a guerra, Hitler será forçado a perpetuar o duríssimo regime de mobilização, de privações alimentares, e de impostos pesadíssimos, com que vem mantendo a Alemanha em incessantes e duras privações. Durante um ano, durante dois, durante três, isto se agüenta. Mas quando o povo estiver exausto desse regime que privou o alemão até de sua estimadíssima manteiga, o que será de Hitler?

É com tudo isto que joga o “premier” inglês. Ele quer adiar a guerra ainda à custa dos mais pesados sacrifícios, certo de que, se a paz durar, o hitlerismo morrerá asfixiado dentro do regime de mobilização sem o qual não pode viver. Resolver-se-á a política inglesa a acompanhar o “premier” nessa aventura? O futuro o dirá.

*  *  *

Hitler e Chamberlain jogam, pois, uma partida de vida e de morte. E, no entanto, todos os jornais acentuaram a cordialidade risonha do aperto de mão com que se saudaram os dois estadistas. Mas é preciso não confiar demais nos apertos de mão risonhos. É o que mostra a história de outros países que não o Reich e a Inglaterra.

 


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