Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

 

 

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26 de março de 1983

Platão no sindicato

O medíocre possui alguma noção de muitas coisas. Noção vaga e flutuante, bem entendido, que não lhe custe adquirir nem conservar. Ele imagina atingir o píncaro de si mesmo quando encontra, para designar cada noção, alguma palavra vistosa ou que, pelo menos, não faça parte do mais corriqueiro linguajar.

Entre nós, uma das palavras preferidas pelo medíocre é "radical". Ele sente no ar que tachar um desafeto de radical é ser nocivo a este. Ser "radical" provoca uma repulsa meticulosa e exacerbada. Então é bom ser anti-radical, porque isto atrai simpatias. Eis assim nosso medíocre a quixotear anti-radicalismo por onde quer que passe. Mas ele murchará e mudará de assunto assim que alguém lhe objete que um anti-radicalismo tão chamejante não passa de mera forma de radicalismo. Pois para debater essa objeção – aliás tão obviamente verdadeira – o medíocre precisaria conhecer exatamente e a fundo o que quer dizer "radical". Ora, seu espírito flanador aborrece os conceitos precisos e profundos.

Análogo é o uso que o medíocre faz da palavra "liberdade". Ela lhe lembra, ao mesmo tempo, a surrada trilogia "liberdade, igualdade, fraternidade" (que ele já ouviu elogiar mil vezes), da qual gosta. Liberdade recorda, ademais, a vistosa estátua do porto de Nova York, que ele tem visto em fotografias e em anúncios. E também um vasto e populoso bairro da cidade de São Paulo. Em seu tempo de moço fumava cigarros "Liberty". E, de modo geral, está-lhe no espírito a idéia de que liberdade é algo que dá a cada qual a possibilidade de fazer absolutamente tudo quanto ache deleitável.

Quando criança, esta palavra lhe entrou no espírito. Seu professor primário retinha os alunos faltosos, depois das aulas, a copiarem, incontáveis vezes, frases como esta: "O menino bom é obediente e aplicado". Quando se esgotava o tempo, o mestre exclamava contente: "Liberdade, liberdade!" E todos os diabretes disparavam para a rua, ávidos de extravagâncias e tropelias. Este era o núcleo ideológico central que lhe ficava acerca da palavra liberdade. O cigarro, o monumento, o bairro, homenageavam de um modo ou de outro essa coisa tão gostosa que é a liberdade. A trilogia lhe parece conter o mesmo pensamento com que a palavra florescia, sorridente, nos lábios do professor.

A superficialidade do medíocre, ele mesmo não imagina que possa ter efeitos entretanto profundos. Se alguém lho dissesse, ele riria, incrédulo.

Enfrentar um medíocre seria tarefa fácil para qualquer um. Menos fácil é enfrentar os medíocres aos centos ou aos milhares. Mas essa é, hoje em dia, a contingência inevitável de quem quer que se entregue à publicidade. Pois os medíocres enchem a terra.

Não creio que eles sejam dos mais numerosos a ler estas linhas, que entretanto tratam deles. Compreendo que elas não lhes sejam confortáveis. Mas um lance de olhos num tópico ou noutro será suficiente para enfurecer vários. Pois todo homem – até o medíocre – é vivo e perspicaz quando se fala dele.

Entretanto, não hesito em afirmar até ante os medíocres, o maléfico, o profundamente maléfico de sua frivolidade.

Persuadido de que a liberdade é um bem, o medíocre conclui que quanto mais liberdade, melhor. Liberdade absoluta é, para ele, felicidade total. Eleitor, o medíocre dará seu voto ao candidato que lhe prometa liberdade sem limites. Candidato, o medíocre atrai o apoio de todos os seus congêneres. De onde transforma sua campanha eleitoral numa prelibação da liberdade absoluta, total e sem freios. Naturalmente, isto acarreta, em todas as legendas, a presença e a vitória de uma porcentagem de medíocres, maior em umas, menor em outras. Daí um impulso difuso das atividades legislativas e governamentais rumo ao extravagante, ao descabelado, ao desabrido. Pois se tudo é permitido... E da esfera estatal, esse impulso se estende a todos os outros setores da sociedade.

Quadro já muito conhecido da realidade atual? – Considere o leitor esse texto:

* * *

"Quando um povo é devorado pela sede de liberdade, acontece-lhe ter à testa líderes serviçais, que lha proporcionarão tanta quanto ele queira, a ponto de se embriagar com ela.

"Se os governantes resistem então aos desejos sempre mais exigentes de seus súditos, passam a ser qualificados de tiranos.

"Ocorre também que quem se mostra disciplinado em relação aos superiores é definido como homem sem caráter, servil.

"E que o pai, alarmado, acabe por tratar seus filhos como iguais, não sendo mais respeitado por eles.

"O mestre não ousa mais reprovar os alunos, e estes se riem dele.

"Os jovens reivindicarão os mesmos direitos, a mesma consideração atribuída aos velhos, e estes últimos, a fim de não parecerem por demais severos, acabam dando razão aos jovens.

"Nesse clima de liberdade, e em nome desta, não há consideração nem respeito por ninguém.

"Em meio a tanta licença, nasce e se desenvolve uma má planta: a tirania".

Quadro da realidade presente?

Sem dúvida, o quadro descreve bem os dias borrascosos em que vivemos. E chama a atenção, com sutileza e precisão geniais, para o proveito que deste tufão de demo-mediocridade tiram os semeadores de tirania. Ou seja, hoje, os comunistas.

Mas o quadro data... de muito antes: do século IV antes de Cristo. Seu autor é Platão, que assim denuncia os radicais do liberalismo como sendo, na democracia, os verdadeiros pais da ditadura. O trecho é de "A República".

Isto não é só do século IV antes de Cristo, nem só de hoje. É de sempre. Está na própria natureza das coisas.

* * *

E tenho mais algo a acrescentar: não transcrevi o grande filósofo diretamente. Limitei-me a verificar que essas palavras são realmente suas. Simplesmente foram elas retiradas, à maneira de condensação, do texto originário autêntico (cfr. "The Dialogues of Platon", Encyclopaedia Britannica, Inc., Chicago – London – Toronto, 1952, p. 412).

Esta condensação, um amigo encontrou-a, emoldurada e suspensa, numa parede da sede... de um sindicato. Eis como o grande e solene Platão penetrou assim num sindicato. E não de ricos empregadores. Nem de cultos professores. Mas de... choferes de táxi de Roma!

Este é o fruto, num povo, não da demagogia, mas da cultura e da tradição. Insisto na palavra "tradição".


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