Plinio Corrêa de Oliveira
Artigos na "Folha de S. Paulo"
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25 de abril de 1983 Fome x fartura Sem que eu conteste – de longe sequer – o óbvio talento de Goya, desagrada-me a maior parte de seus quadros. Neles manifesta o pintor uma tendência a detratar, a vilipendiar e a escarnecer, com a qual antipatizo a fundo. Haja vista o famoso quadro em que Goya apresenta Carlos IV, rei da Espanha, sua esposa, a rainha Maria Luísa, e mais outros personagens da casa real. Dir-se-ia que cada qual é um pesadelo de fatuidade e de imbecilidade. Inclino-me a pensar que Goya os pintou tais quais eram. Antipatizo eu então com a verdade? Não; antipatizo com certa alegria maldosa de Goya em que tais fossem esses seus modelos.
Falei de Goya só para evocar um pequeno quadro dele, que admirei – e muito – no Museu do Prado, em Madri. Intitulava-se "Pânico". Representava, vista pelas costas, uma tropa militar em debandada. Do pânico que infestava cada fugitivo parecia desprender-se um como que fluído que pairava pouco acima dos capacetes de todos. Aí, esses milhares de fluídos se fundiam em um só imenso fluído, do qual emanava uma espécie de fantasma. Um fantasma do qual só se percebia o busto possante, brutal, ameaçador. Era o Pânico, que enlouquecia e acelerava a debandada dos militares fracassados. Lembrei-me desse quadro quando, nos dias 4 a 8 do corrente, senti minha São Paulo tão ordeira, tão operosa, como que envolta num fluído imenso, o qual, no estilo de Goya, se desprendia das mentes pasmas, sacudidas entre a indignação e a angústia, e apreendendo a todo momento o pior. Qual seria esse vulto imaginário? – Tal qual o "via" minha sensibilidade, era um ser híbrido, feito de fome e de pavor. A fome dos que não têm, levantando-se como um espectro a encher de pavor os que têm. Fantasia? Ou realidade, vista no que ela tem de mais fundo? O fato é que, a durar uns poucos dias mais essa situação que São Paulo inteira viveu, as classes dirigentes e médias se desestabilizariam, e o edifício social ruiria por terra. Quem soltou pelos ares esse fantasma? Responsabilizo pelo fato dois fatores dos mais rampeiros: - uma conjuração mal ensaiada que, passado o primeiro impacto, não conseguiu fazer-se levar a sério por nosso povo tão vivo e perspicaz; - e nossa clássica ignorância acerca dos verdadeiros problemas nacionais. Já tratei, neste jornal, do perfeito desconhecimento em que está nosso eleitor médio dos problemas econômico-financeiros do País. Nos dias 4 a 8, nossa ignorância se manifestou em mais outro ponto fundamental: a fome. Na urbe mais rica do Brasil, o espectro goyano da fome se impôs como se São Paulo fosse um pequeno miolo de bairros ricos, cercados a perder de vista de favelas famintas e enfurecidas. Pareceria que as favelas se punham então a devorar o miolo. Mas, desfechados os assaltos, verificou-se que esses famintos não eram senão magotes bem organizados, favorecidos e prestigiados, durante largo tempo, pela mais totalíssima (não há exagero nesta sobrecarregada ênfase) impunidade. Esses famintos míticos tinham realmente fome. Fome de jóias, que os levou a atacarem todas as pequenas joalherias de nível médio ou popular, diante das quais passaram. Fome de televisões, de rádios, de máquinas de fotografar, de tudo que se vende em casas de ótica. Fome, enfim, de artigos de couro. De sapatos de bom nível, bolsas, pastas e cintos. A fome do carente autêntico, fome de comida, "fome" de remédio, de agasalhos, quase não se manifestou. Diante de muitas casas assaltadas pelos "famintos", estes atiravam à calçada o que não podiam levar. E a quase totalidade dos numerosos transeuntes, mesmo em bairros modestos, passava sem tocar em nada. "Fome"... Diante de tudo isto, a ninguém ocorreu, que me conste, perguntar exatamente quantos são, em São Paulo, os famintos. Nem por que padecem fome. Lendo-me, algum demagogo uivará de ódio: "E os desempregados?" - O que é um desempregado? Desempregado não é tão-só quem perdeu o emprego, mas quem, ademais, não encontra outro. E por que não encontram emprego aqueles que hoje não têm mais trabalho nas fábricas? O Sr. Cardeal D. Paulo Arns (com o qual vivo em melancólico e geral desacordo) sugeriu bem, em declaração à "Folha de S. Paulo" (3-4-83), que essa mão-de-obra excedente fosse encaminhada para as terras devolutas pertencentes ao Estado. Essa solução, já a preconizei no livro "Reforma Agrária – Questão de Consciência" (pp. 10, 115, 127, 157, 185 e 219), que publiquei em 1960 juntamente com os Srs. D. Geraldo Sigaud e D. Castro Mayer, e o economista L. Mendonça de Freitas. De então para cá, o que se fez em São Paulo neste sentido? Creio que ninguém o sabe. E mesmo diante do espectro da atual recessão, o que se fez? Também ninguém o sabe. Políticos, literatos de sócio-economia, técnicos autênticos, teólogos em geral inautênticos, todos começaram a discutir se era o caso de reformar o regime sócio-econômico para atender a esses desempregados. Valeria a pena realmente reformar o Brasil só para isto? Não teria sido mais prático ter-se feito o levantamento das terras devolutas e ter se tomado medidas drásticas para que, aos primeiros sintomas do agravamento do desemprego, as vítimas deste pudessem ir céleres plantar comida em tais terras, para eles... e para nós? Em lugar disso, estadeou-se técnica, parlapateou-se, fez-se politicagem. Fez-se um conchavo. E o conchavo produziu um imenso show. O show sinistro que quase desestabiliza São Paulo, e com ele o Brasil... Fome? Quem em nosso público sabe precisamente o que é fome? Consultei sobre o vocábulo seis excelentes dicionários da língua portuguesa. Todos fazem girar o conceito em torno do de carência. Mas exatamente a partir de que ponto começa a carência para um paulistano de hoje? Não varia isto segundo o tipo racial de cada qual? Nessa São Paulo operária, que é um mosaico de raças, é seriamente possível estabelecer um limite "carencial" único para toda a população? Falei há pouco dos desempregados. Refiro-me agora aos que têm emprego. Quantos padecem realmente em sua saúde, em virtude de carência de alimentos? Quando um grupo de ignotos articuladores quer lançar uma cidade como São Paulo no Pânico sobre o espectro da fome, pode fazê-lo à vontade, porque ninguém tem defesa contra o Boato. Pois os homens medianos nada sabem que os defenda das balelas da subversão. Uma coisa pode-se dizer, entretanto: no obituário paulistano, o papel da fome parece bem menor que o da fartura. Quão poucos - se os houve – morreram de fome entre nós; quantos morrem por excesso de mesa? Suponho ter lido num grego, do qual já não me lembro bem, que a mesa mata mais gente do que as guerras... Será mesmo a fome a principal dizimadora dos paulistanos? |