Plinio Corrêa de Oliveira
Artigos na "Folha de S. Paulo"
|
|
29 de julho de 1980 A Utopia e a Mensagem Circunstâncias diversas – e quão involuntárias – me impediram até o momento de escrever sobre a visita de João Paulo II ao Brasil. Ponho-me a fazê-lo hoje, com a esperança de concluir em artigo posterior. Esta tarefa é, para mim, muito querida. Vejo na Santa Igreja a alma de minha alma. E na minha devoção ao papado, por assim dizer, a alma de minha devoção à Igreja. Nada mais preciso dizer para exprimir o sentimento profundo com que trato do assunto. Esquematizando, a história dos doze dias que João Paulo II aqui passou se divide em duas partes: a) o que ele disse e fez aqui; b) o modo por que os brasileiros acolheram os ensinamentos e as atitudes dele. O normal seria que eu começasse pela "a". Mas suas alocuções ocupam um volume de 277 páginas, na edição brasileira que tenho em mãos. Aliás, não me contentarei com essa edição, e pretendo estudar a matéria no próprio texto de "L’Osservatore Romano", órgão oficioso da Santa Sé. Ora, é fácil calcular o tempo necessário para o estudo – palavra por palavra – desses importantes textos. Enquanto de cá e de lá vou encontrando interstícios para tal estudo, não posso entretanto delongar ainda mais meu silêncio nas colunas hospitaleiras da "Folha". Começo pois pela parte "b", isto é, a reação do povo brasileiro. Durante a permanência de João Paulo II, o Brasil viveu em suspense. Na televisão, no rádio e na imprensa, por assim dizer só se cogitou dele. O público absorveu avidamente todo este noticiário, e mesmo quando, entregue aos afazeres diários, o brasileiro não podia pensar no ilustre visitante, tinha-o entretanto no subconsciente. Encerrada a visita, durou ainda este fenômeno uns dois ou três dias. Depois, grande parte do povo voltou, a cem por cento, para as atividades de cada dia, tão emproblemadas, tão carregadas de grandes ou pequenas ameaças, tão tiranicamente absorventes. E uma muito grande parcela da opinião nacional "desligou" daqueles dias. Para ela, a visita já pertence ao passado, nestes duros dias de imediatismo nos quais só o futuro conta. Mas isto, que ocorreu a uma incontestável maioria, não engloba uma muito ponderável minoria de brasileiros, que continuou a guardar na alma os ecos e as lembranças da visita pontifícia. Nessa faixa de saudosos há matizes. Uns – a maioria dentre esta minoria – ficaram marcados até o fundo da alma pela presença de João Paulo II. Bem certo, por verem nele o Vigário de Jesus Cristo. Mas também, e muito notavelmente, por se encantarem com alguns predicados personalíssimos de Karol Wojtyla. A saúde pletórica, a atividade heroica (e tão bem humorada), a segurança comunicativa, a propensão esfuziante para o diálogo e a concórdia deram a muitos a impressão de que o Pontífice tem em mente uma fórmula toda sua para fazer cessar o dilúvio de apreensões, riscos e tormentos que se abatem sobre o Brasil e o mundo. A par dessa fórmula, insinuada pelo sorriso afavelmente malicioso dos olhos e dos lábios, pela despreocupação da fisionomia otimista, e pelo implícito convite feito a todos para que esperem e se alegrem, delineava-se um método inconfundivelmente pessoal para aplicar a fórmula. Dotes de Karol Wojtyla, carismas de João Paulo II pareciam entremear-se para, num só todo, transmitir a certeza, por assim dizer telepática, do êxito que ele alcançará. E quem o olhasse teria a impressão de estar saboreando de antemão esse êxito que o ilustre visitante "promete". A força de persuasão de que esse êxito virá tinha mais efeito do que a sua palavra oral ou escrita. Essa tática, só um Wojtyla teria os dotes, por assim dizer transpsicológicos, para levar a cabo. E sem lutas: obra de reconciliação de todos os direitos emaranhados e conflitantes, de todos os interesses abespinhados e irredutíveis, um doce paraíso na terra, enfim. Ora, esta mensagem foi "captada" a fundo por nossa população, cujo feitio psicológico me parece feito para isto. O brasileiro gosta mais de compreender ouvindo do que lendo. E vendo, mais ainda do que ouvindo: tão intuitivos somos. Creio que a delícia de receber, em contato pessoal, esta mensagem otimista, explica, em larguíssima medida, a alegria – que eu chamaria frenética, se neste adjetivo não houvesse qualquer coisa de pejorativo – em que muitas pessoas entraram tão-só ao ver o Pontífice entrar, sair, sorrir, agradar, ou também orar. Tenho a impressão de que, na ampla minoria, a qual ainda vive os dias da visita, esta alegria, longe de ir morrendo, se vai quintessenciando. No povo mais afetivo do mundo – pois não somos menos afetivos do que intuitivos - há pessoas que julgam sentir-se entretanto no Reino, no milênio, no paraíso terrestre recuperado. Nunca mais desinteligências, nem conflitos de interesse, nem lutas, nem carências: o misterioso mas irresistível know-how voitiliano acabará com tudo isto para todo o sempre. O mais curioso é que o Pontífice nada disto afirmou. Mas na alma de seus saudosistas se vai tornando certeza. Generosa, tonificante e apaziguadora certeza, dirão muitos. Utopia, receio eu. Pois não vejo como justificar, ante a doutrina católica, essa esperança que em alguns me parece ir se formando. Com efeito, ensina-nos a Igreja que esta terra é um lugar de exílio, um vale de lágrimas, um campo de batalha, e não um lugar de delícias. Sobretudo esta perfeita e definitiva concórdia entre os homens jamais existirá. Nosso Senhor Jesus Cristo foi o Príncipe da Paz. E, sem Ele, toda paz não é senão um embuste. Mas dEle foi predito que seria "posto para a ruína e a ressurreição de muitos em Israel, e como um sinal de contradição... a fim de que se revelassem os pensamentos nos corações de muitos" (Lc. 2, 34-35). E Ele mesmo disse de Si: "Não julgueis que vim trazer a paz à terra: não vim trazer a paz, mas a espada. Porque vim separar o filho de seu pai, a filha de sua mãe, a nora de sua sogra" (Mt. 10, 34-35). Imaginar, pois, um mundo sem lutas e sem reveses é o mesmo que conceber um mundo sem Jesus Cristo. Fazendo estas afirmações, tenho a impressão de ver, à distância, contorcer-se, exasperada, a seita mais furibunda, mais agressiva, mais intolerante e mais destemperada. É ela constituída pela família de almas dos que sonharam com um mundo sem ideologias, sem hierarquias, sem fronteiras, sem divisas, sem cercas, sem "privacy" nem direitos individuais. A família de almas que prega tolerância para com todos, mas odeia de morte os que ousam discordar da amplitude exagerada que ela dá a essa tolerância. Dos que querem a liberdade de palavra e de opinião para todo o mundo, exceto para quem quer fazer o uso do verbo a fim de discordar dela. A efervescência desta raiva não me assusta. Ouço-a rugir desde que comecei a pensar. À medida que fui multiplicando meus passos ao longo da vida senti que seu olhar de ódio, suas ciladas, o silvar de suas calúnias me seguiam sem cessar, num implacável crescendo. Como posso concordar em que João Paulo II seja visto, enquanto Papa, como o doutor dessa utopia, e enquanto Karol Wojtyla o posto condensador e teletransmissor, em nível mundial, desses eflúvios sentimentais? É impossível. Pelo contrário, alegro-me em anunciar, antes mesmo de ter lido todas as suas alocuções feitas no Brasil, que nenhuma delas ergue diante do mundo o pendão dessa utopia. E como nada me autoriza a esperança de ter terminado a leitura das alocuções de João Paulo II durante a próxima semana, conto comparecer ante os meus leitores utopistas apresentando-lhes uma mensagem que me justifique. Augusta, esplendorosa e sonora mensagem que se levantou entre os homens no longínquo século XVII, e que hoje baixa do céu, do mais alto dos céus, bem de junto do trono de Nossa Senhora. Oh mensagem! Quanto agradará as inteligências ponderadas, as vontades heroicas e os corações puros. Até a próxima, leitor. |