Plinio Corrêa de Oliveira
Artigos na "Folha de S. Paulo"
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14 de abril de 1979 A Mensagem de Puebla: notas e comentários - III A finalidade da Igreja face à existência terrena Comentando a alocução de João Paulo II ao abrir a Conferência de Puebla, tratei até aqui da parte essencialmente religiosa da mensagem. Passo agora à parte que cuida da sociedade terrena. Essa divisão de temas é estritamente conforme à estrutura da parte 1 do texto pontifício, na qual se distinguem três grandes blocos, intitulados, respectivamente, "Verdade sobre Jesus Cristo", "Verdade sobre a missão da Igreja" e "Verdade sobre o homem". João Paulo II dá primazia, na ordem da exposição, à "Verdade sobre Jesus Cristo", pois esta é infinitamente mais importante. Segue-se-lhe a "Verdade sobre a missão da Igreja". Por fim, a "Verdade sobre o homem", que só pode ser bem enfocada caso exposta à luz da "Verdade sobre Jesus Cristo". Outro título para que toque a esta última a precedência. Da "Verdade sobre Jesus Cristo" decorrem, em primeira plana, os ensinamentos referentes à Igreja, ou seja, à Sociedade espiritual e sobrenatural. E, em segunda plana, os ensinamentos sobre a sociedade natural e temporal, ou seja, as nações, com a galáxia de microssociedades que as constituem. Porém, o campo desses ensinamentos não se fecha aqui. Por sua vez, as nações e as sociedades que as integram são constituídas, umas e outras, pelo homem e para o homem. Jesus Cristo é o vértice da ordem espiritual e sobrenatural. O homem é vértice da sociedade temporal. Assim, é inteiramente lógico que a mensagem centre no homem suas considerações sobre a ordem temporal. A vida terrena, fim único da Igreja? Na perspectiva dos inexplicáveis católicos (...católicos?) que omitem a divindade de Jesus Cristo, ou a negam, não visando pois a Igreja o Reino de Deus, só pode Ela visar o Reino do Homem. Essa exclusão do Reino de Deus, se apresentada muito categoricamente, pode chocar o público católico, cuja conquista é visada por esses estranhos messianistas de um Reino sem o Messias. Sentindo-o, eles apresentam sua tese com um subterfúgio: cuidar exclusivamente do Reino do Homem seria cuidar implicitamente do Reino de Deus, pois este se identificaria com aquele. Na parte de mensagem em que trata da "Verdade sobre a missão da Igreja", João Paulo II desfaz este subterfúgio – para o que cita aliás uma das catequeses de João Paulo I: "É um erro afirmar que a libertação política, econômica e social coincide com a salvação em Jesus Cristo, que o "Regnum Dei" se identifica com o "Regnum hominis". Fica assim patente que só tratar do "Regnum hominis" importa em negar de um ou de outro modo o "Regnum Dei". Essa advertência melhor explica o modo por que João Paulo II expõe a "Verdade sobre o homem". O pontífice lembra logo de início que a verdade plena sobre o homem só pode ser conhecida na perspectiva religiosa, e à luz de Jesus Cristo. Pois ela não pode se "reduzir aos princípios de um sistema filosófico ou à pura atividade política". A fidelidade a estas assertivas constitui um imperativo de consciência para o católico, sobretudo quando este é desafiado por "outros tantos humanismos freqüentemente fechados em uma visão do homem estritamente econômica, biológica ou psíquica". Como se vê, o marxismo cabe dentro desta definição como a mão dentro da luva. Ante este desafio, o homem por vezes se cala, arrastado "por temores ou dúvidas, por se ter deixado contaminar por outros humanismos, por falta de confiança em sua mensagem original". Aqui – cumpre ressaltar – a descrição do católico omisso em "proclamar a Verdade sobre o homem que ela (a Igreja) recebeu de seu mestre Jesus Cristo", é por sua vez como uma outra luva na qual cabe perfeitamente o católico mundano, faceiro, envergonhado de não estar na última moda... e de não ser comunista. Ou, ainda, intimidado ante as pressões e ameaças dos vermelhos. Religião Católica e marxismo Estas considerações da parte referente à "Verdade sobre o homem" bem mostram que a preocupação de João Paulo II foi a de desobstruir de quaisquer confusões a linha demarcatória entre a religião de Jesus Cristo e a filosofia de Marx. Reporto-me ainda uma vez à parte da mensagem referente a Jesus Cristo: João Paulo II fala de católicos que omitem ou negam a divindade do Messias, e de outros que O apresentam como revolucionário. A este propósito surge um problema: quem nega a divindade de Jesus Cristo é impelido pela lógica a ver nele um revolucionário? Absolutamente falando, uma coisa não conduz à outra. Pelo menos se se tomar a palavra "revolucionário" em seu sentido moderno, de subversivo, de adversário violento da atual ordem socioeconômica. Qual então o vínculo entre a negação ou omissão de Jesus Cristo, e a impostação marxista? João Paulo II não o diz. Mas tal vínculo aparecerá claro, caso considerarmos o assunto do outro lado. Se o negador de Jesus Cristo não é necessariamente o marxista, o marxista é necessariamente um negador de Jesus Cristo. Face ao vasto gênero dos negadores de Jesus Cristo, o marxista não se identifica com o gênero, mas se insere no gênero como uma espécie dele. Em nossos dias, a espécie mais ativa, mais organizada, mais poderosa. Daí se infere a razão por que, tratando genericamente dos erros sobre o homem, João Paulo II se referiu com insistência aos específicos erros do marxismo nesta matéria. A posição da Igreja perante a dignidade humana, a promoção humana e a justiça "Se a Igreja se faz presente na defesa ou na promoção da dignidade do homem, o faz na linha de sua missão que, embora de caráter religioso e não social ou político, não pode deixar de considerar o homem na integridade de seu ser". Com estas palavras, João Paulo II diferencia a posição da Igreja face à dignidade humana, da posição de outra corrente que ele não menciona explicitamente. Qual será ela? Não é difícil entrever que é a do marxismo, a mais ruidosa e vistosa, como também a que mais difere da posição católica... e não obstante mais procura confundir-se com ela. Sempre sem mencionar explicitamente o marxismo, João Paulo II passa a apontar na parábola do bom samaritano um fundamento da posição da Igreja perante a dignidade humana, como ainda perante dois temas correlatos com este, que são a promoção humana e a justiça. E mostra que, em tais assuntos, a atenção dela não se volta apenas para o que é celeste, mas também para o que é terreno. Assim, ensina o pontífice que "entre evangelização e promoção humana há laços muito fortes de ordem antropológica, teológica e de caridade” (cf. E.N. , n. 31) e que é da "interpelação recíproca que no correr dos tempos se estabelece entre o Evangelho e a vida concreta pessoal e social do homem" (E.N. n. 29), que a Igreja encontra o meio para uma evangelização que não seria completa sem isso. Em outros termos, ao contrário do que dela dizem os marxistas, a Igreja não desdenha, na evangelização, todo o cabedal científico referente ao homem e ao mundo. Ela o acolhe avidamente, sem por isto arredar passo em sua posição fundamental e muito definida, que consiste em analisar esse cabedal à luz da Fé, escoimando-o assim de erros que contenha, iluminando-o com as superiores verdades de ordem sobrenatural, e fazendo pairar seus ensinamentos infalíveis sobre as "certezas", quão preciosas por vezes, mas também quão falhas outras vezes, professadas pelo homem. "Serviço do homem" e "serviço do homem" A mensagem passa em seguida a outro tema candente. Não menos candente aliás do que os anteriores. É a questão do "serviço do homem": "A ação da Igreja em terrenos como os da promoção humana, do desenvolvimento da justiça, dos direitos da pessoa, quer estar sempre a serviço do homem; e do homem tal como ela o vê na visão cristã da antropologia que adota. Ela não precisa, pois, recorrer a sistemas e a ideologias para amar, defender e colaborar na libertação do homem: no centro da mensagem da qual é depositária e pregoeira, encontra ela inspiração para atuar em favor da fraternidade, da justiça, da paz, contra todas as dominações, escravidões, discriminações, violências, atentados à liberdade religiosa, agressões ao homem e a tudo que atenta contra a vida" (cf. Gaudium et Spes, n.os 26, 27 e 29). É bem de ver quanto essa concepção cristã do serviço do homem destoa da que tem por base uma concepção marxista, ou "católico" materialista. Pois, como já foi dito, uma vez que se faça caso omisso de Jesus Cristo, e se chegue mesmo a negá-Lo, a ação da Igreja não pode ser tida como a serviço de Deus. Então, só lhe resta afirmar-se a serviço do homem. Isto suposto, a Igreja teria como razão de ser um fim estritamente terreno: servir o gênero humano, a humanidade. O conceito de "serviço" contém o de operar habitualmente em favor de alguém. E implica em que o servidor conheça quanto convém a quem é servido. Sem o que o serviço não é "em favor" de alguém, mas lhe pode ser inócuo, ou até nocivo. Por sua vez, isto importa em que a Igreja tenha uma noção clara do que convém ao gênero humano, e propugne fortemente em favor dessa conveniência. Daí se explica que, feito caso omisso da divindade de Jesus Cristo e do fim extraterreno da Igreja, essa nova teologia de que fala João Paulo II leve o sacerdote a utilizar todos os atos da vida eclesiástica, como sermões, homilias, liturgia etc., para cuidar exclusivamente de temas terrenos. E de tal sorte que, se entra em algum destes atos uma referência a temas extraterrenos, isso se dá apenas à maneira de complacência para com certos setores "atrasados" do público. Mas, diante de ouvintes inteiramente "aggiornati", só podem ser de uso as matérias terrenas. Nesta concepção, o "Reino de Deus" se reduz em última análise, ao "Reino do Homem". E a pregação da palavra de Deus se transforma em pregação socioeconômica... revolucionária, como se verá a seguir. Sumário Para os inexplicáveis católicos que omitem ou negam a divindade de Jesus Cristo, cuidar exclusivamente do Reino do Homem seria cuidar implicitamente do Reino de Deus, pois este se identificaria com aquele. Em contraposição, João Paulo II mostrou em Puebla que tratar somente do "Regnum hominis" importa em negar o "Regnum Dei". Desse modo, a pregação da palavra de Deus se transforma em pregação socioeconômica revolucionária. Põe-se ainda um outro problema: quem nega a divindade de Jesus Cristo é impelido pela lógica a ver nele um revolucionário? Qual o vínculo entre a negação ou omissão de Jesus Cristo, e a impostação marxista? |