Folha de S. Paulo,
21 de
junho de 1970
O
inconformismo, esse conformismo submisso
Quem
tem olhos para ler e ouvidos para ouvir, a todo momento se depara hoje
com a palavra "inconformismo". Procurei analisar o significado novo ao
qual esse raríssimo vocábulo deve tanta voga. Sem maiores pretensões, e
movido apenas pelo gosto de conversar um pouco com os leitores,
entrego-lhes aqui os resultados a que cheguei.
* * *
Para
conhecer o que se chama hoje de "inconformismo", comecemos por enumerar
algumas atitudes tipicamente "inconformistas".
Há
dois estilos ou dois graus de "inconformismo", o radical e o "moderado".
Ou, se preferirem os leitores, o "inconformismo" "de amanhã" e o "de
hoje". Só tratarei aqui do radical, do "de amanhã". Talvez escreva, de
futuro, sobre o "inconformismo" aguado "de hoje".
O
nudista, o "hippye", o sequestrador, o subversivo, o contestatário, cada
um é, a seu modo, um inconformado com a sociedade de hoje. Mais
especialmente, sua recusa incide sobre os costumes, os estilos e as
máximas admitidas em geral pelos que têm em mãos alguma parcela de
mando: pais, professores, patrões, magistrados, oficiais etc.
A
acusação do "inconformista" contra todos esses líderes é de
"imobilismo": eles quereriam impor à mocidade a estabilidade total de
tudo quanto existe. Ou, pelo menos, só tolerariam transformações de uma
lentidão exasperante. Por isto, os "inconformistas" — que representariam
o futuro em luta contra o presente — se sentem no dever de pôr em
movimento esses líderes, mais ou menos como se poriam em marcha uma
tropa de burros empacados; isto é, com imprecações, chicotadas, e outras
sevícias. E se os líderes não se movem submissamente, rapidamente, e a
sorrir, os "inconformistas" recorrem sôfregos a outra solução. É a
demolição radical das lideranças.
O
escândalo é outro recurso dos "inconformistas". Não serve ele tanto para
abalar líderes e lideranças, quanto para empurrar "prá frente"
coletividades ou grupos sociais que os "inconformistas" consideram
"estagnados". Se um restaurante de luxo é freqüentado por uma clientela
conservadora e rigorista, para destruir o "conformismo" desse grupo
social é útil introduzir nele alguns "habitués" que se ponham a comer "desinibidamente"
em mangas de camisa, dando gargalhadonas botequineiras, exclamando
palavrões e daí para fora. Se em uma cidade ainda se respeitam alguns
princípios morais, o escândalo, arrebentando como petardo, pode produzir
facilmente a grande derrocada: é só incumbir alguns e algumas jovens de
passear "desinibidamente" pelas ruas centrais em trajes mais ou menos
adamíticos. Se as autoridades universitárias ainda gozam de prestígio
junto à "maioria silenciosa" de alguma Faculdade, é só entornar sobre a
cabeça venerável do diretor uma lata de lixo (como se sabe, o caso se
deu há pouco na França...), e assim por diante.
Desencadeada a ofensiva do "inconformismo" pelo chicoteamento ou pela
derrubada dos líderes, estourado por todos os lados o bombardeio dos
escândalos, a maior parte dos meios de publicidade — imprensa, rádio e
televisão — se apoderam do assunto... para dar grande destaque às
proezas dos "inconformistas". Assim, os protagonistas desses atos de
agressão social se tornam imediatamente célebres. Tudo concorre para sua
glória. Os aplausos que recebem de minorias frenéticas, os elevam aos
olhos destes à categoria de super-homens. As críticas da maioria
"conformista" — geralmente feitas, entretanto, com timidez, inabilidade
e escassa inteligência — lhes servem de pretexto para figurar como
vítimas e heróis. Passam eles por pessoas corajosas, que, para afirmarem
suas convicções, arrostam oposições de figurões importantes.
Super-homens, sim, e heróis, não só por tudo isto como também porque
vencedores. A imensa publicidade que lhes dá cobertura insinua que o "inconformista"
é um vanguardeiro. Que ele capta em torno de si, condensa em si, e
proclama com energia os anseios ainda nebulosos e comprimidos, mas em
crescente fermentação, de imensas multidões de descontentes. O que hoje
o "inconformista" proclama em um frêmito de revolta, amanhã será
vitoriosamente admitido por todos. Ao encalço do "inconformista" marcha
a vitória. O "inconformista" é o arauto do dia de amanhã.
Como
se vê, o papel é dos mais convidativos para toda a casta de ambiciosos.
E isto tanto mais quanto o esforço que se lhes pede é fácil. Pois para
fazer sucesso na pista do "inconformismo" basta a qualquer um ser ou
fazer-se de estourado. Trabalho, estudo, aplicação, método, tudo isto
foi "superado" nas áreas do "inconformismo". É suficiente que cada qual
ponha bem à mostra qualquer parcela de extravagância, ou até de
desequilíbrio que lhe ande na alma, e que toque a vida. O sucesso não
tardará.
* * *
Nessa
atmosfera publicitária, qual o papel de quem não consinta, resignada e
submissamente, em fazer-se de "inconformista"? As sanções publicitárias
estão preparadas para ele...
Antes
de tudo, passará por um indivíduo ranheta, intolerante, azedo. Além
disto, dir-se-á que seu espírito é estreito, pouco arejado, atrasado.
Por fim, decretar-se-á que ele é um sensaborão. O necessário para que o
vazio se faça em torno dele, a penumbra o envolva como um cárcere, e o
insucesso seja o seu quinhão na vida.
* * *
Em
outros termos, há uma onda prodigiosa de propaganda escrita ou falada,
que premeia largamente com todos os bens da terra, os "inconformistas".
A
mesma onda submerge no ridículo, ou no anonimato, e por fim, aniquila os
que, aferrando-se à lógica, à decência e ao bom senso, contra ela
reagem.
Por
pouco que se observe, ver-se-á que, na torrente dos "inconformistas", há
muita e muita gente que se deixa levar, sem muita convicção nem muito
entusiasmo, na esperança de coruscantes vantagens, e sobretudo no pânico
de duras sanções. E que é preciso ser muito altaneiro, muito
independente, muito corajoso, para opor-se alguém a essa onda.
Isto
dito, pergunto o que é — para incontáveis "inconformistas" — o
"inconformismo"? No fundo, é a conformidade submissa com a onda. E o que
é chamado "conformismo"? É, muitas e muitas vezes, a inconformidade
altiva contra essa mesmíssima onda.
Os
termos estão, pois, trocados. E então chegamos a este paradoxo, talvez o
mais aberrante de nosso século: os "inconformistas" não passam, em
geral, de monótonos e submissos "conformistas". Os verdadeiros "inconformistas"
são os que o linguajar dos que estão "para frente" e "no vento"
qualificam de "conformistas"..., os que têm a coragem de erguer a cabeça
e enfrentar o tufão.