Folha de S. Paulo,
22 de
fevereiro de 1969
Nasce
a TFP
Nosso
período catacumbal durou quatro anos. Mas quatro que traziam
constantemente consigo os tristes sintomas de um estado definitivo e sem
remédio. Imagine o leitor um pugilo de líderes já sem liderados, um
grupo que já cumpriu sua missão, sobreviveu a ela, e fica sobrando. Esta
a nossa situação quando o mais velho de nós tinha 40 anos e o mais jovem
25!
Resolvemos continuar unidos, em uma vigília de oração e análise dos
acontecimentos até quando Deus quisesse.
Alugamos uma pequena sede na rua Martim Francisco, e ali nos reunimos
todas as noites sem exceção. Recordação, sem amargura nem orgulho, das
glórias da imolação dos dias idos. Análise solícita e entristecida, da
deterioração discreta e implacável da situação religiosa. Estudos
doutrinários em comum. Convívio fraterno e cordial. Assim, a Providência
colocava as condições ideais para nos unir. Veio daí um tal enrijamento
de nossa coesão no pensar, no sentir e no agir, como mais seria difícil
imaginar. Escondida em terra, a semente germinava.
A
nosso lado, organizava-se a solidariedade preciosa e discreta de um
pugilo de moças que conosco lutara na Ação Católica contra o
progressismo nascente, e também se retirara conosco para o ostracismo.
E
ainda assim a morte ceifou três lutadores nessas fileiras tão escassas
de membros. O primeiro foi o delicado, o intrépido, o nobre filho de
Nossa Senhora, nosso inesquecível
José Gustavo de Souza Queiroz. Lembro
também com respeito e saudades a personalidade ardorosa, mas ao mesmo
tempo silenciosa e suave, de uma militante da JOC (Juventude Operária
Católica), Da. Angela Ruiz. E o vulto batalhador e tão distinto desse
chefe de família modelar, desse cirurgião exímio que toda Santos
admirou, desse professor universitário saliente, desse pai dos pobres
que foi Antônio Ablas F.º.
* * *
Ainda
me lembro de um dia de janeiro de 1947, em que noticiei a meus amigos
que, segundo uma emissora, Pio XII nomeara bispo de Jacarezinho o Pe.
Sigaud. Como? O quê? Nossa alegria era grande, mas a dúvida ainda maior.
O Pe. Sigaud, durante o vendaval, fora mandado como missionário à
longínqua Espanha. Voltaria então? Sim, voltaria. E nossa alegria subiu
ao céu como um hino. Uma estrela se acendia, a brilhar na noite de nosso
exílio, sobre os destroços de nosso naufrágio!
Contra toda a expectativa, outra alegria nos esperava no ano seguinte.
Ao chegar eu, numa noite de março de 1948, à nossa catacumba, um amigo
me esperava à porta, efervescente de júbilo. O cônego Mayer, que
passara, durante a tormenta, do alto cargo de Vigário Geral de
Arquidiocese para vigário do distante, e aliás tão simpático,
Belenzinho, acabava de nos comunicar sua nomeação para bispo-coadjutor
de Campos. É inútil dizer com que exultação fomos no mesmo instante
felicitá-lo.
A
sucessão dos fatos tinha um significado iniludível. Essas duas
nomeações, uma em seguida à outra, valiam por um testemunho de confiança
de Pio XII, que envolvia obviamente a atuação anterior de ambos os
sacerdotes...
Essas
duas surpresas não foram as maiores. Exatamente um ano depois, um
religioso muito amigo, cujo nome não ouso declinar sem consultá-lo (e
ele está de viagem), me entregou uma correspondência vinda do Vaticano
para mim.
Era
uma carta oficial em latim, assinada por Mons. João Batista Montini, que
dirigia então a Secretaria de Estado da Santa Sé. Eis seu texto em
português:
"Palácio do Vaticano, 26 de fevereiro de 1949.
Preclaro Senhor: Levado por tua dedicação e piedade filial ofereceste ao
Santo Padre o livro "Em Defesa da Ação Católica", em cujo trabalho
revelaste aprimorado cuidado e aturada diligência.
Sua
Santidade regozija-se contigo porque explanaste e defendeste com
penetração e clareza a Ação Católica, da qual possuis um conhecimento
completo, e a qual tens em grande apreço, de tal modo que se tornou
claro para todos quão importante é estudar e promover tal forma auxiliar
do apostolado hierárquico.
O
Augusto Pontífice de todo o coração faz votos que deste teu trabalho
resultem ricos e sazonados frutos, e colhas não pequenas nem poucas
consolações. E como penhor de que assim seja, te concede a Benção
Apostólica".
Desta
vez, tudo se tornava cristalino. Pio XII louvava e recomendava o livro
do kamikaze.
* * *
Dir-se-ia que, com estes três fatos, a situação voltava a ser para nós o
que era antes de 1943. Engano. No que diz respeito aos ex-redatores do
"Legionário", ela ficou inalterada. Surpreendente contradição dos fatos,
sobre a qual é cedo para falar. Mas um acontecimento sobreveio mais ou
menos paralelamente a essas vitórias, que marcaria a fundo nosso futuro.
O Pe.
W. Mariaux, S.J., fundara, no Colégio São Luís, uma Congregação Mariana
brilhante. Destinado o notável jesuíta, para a Europa, por seus
Superiores, parte dos congregados nos procurou solicitando ingresso em
nosso grupo. Eram cerca de 15 elementos jovens, de inteligência e
capacidade de ação invulgares.
Conosco, constituíram eles uma só equipe para a qual o valoroso D. Mayer
abria as colunas do grande mensário de cultura "Catolicismo", que fundou
em 1951. Esse mensário levantou de novo o pendão da luta contra o
progressismo. De significação igualmente primordial foi a publicação,
por D. Mayer, em 1953, da Pastoral sobre Problemas do Apostolado
Moderno, que também estigmatizava o progressismo. Foi ela, em seguida,
editada na Itália, na França, na Espanha, no Canadá e na Argentina.
Nossas fileiras se iam engrossando. Um jovem professor secundário,
recrutador magnífico, começou a nos trazer anualmente uma rica safra de
valorosos amigos, filhos da emigração, italianos, sírios, japoneses,
espanhóis, alemães etc.
Como
as circunstâncias do País iam mudando, nosso interesse se ia ampliando
cada vez mais para o campo social. Escrevi então, em 1959, um ensaio
expondo nossas teses essenciais na matéria. Intitulou-se "Revolução e
Contra-Revolução". O trabalho teve oito edições: duas em português, uma
em francês, uma em italiano e quatro em espanhol.
Estava criado o campo para se desprender de todos estes antecedentes uma
ação de uma natureza diversa, isto é, tipicamente cívica e temporal.
Em
1960, se constituía a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição,
Família e Propriedade, para junto da qual afluíram todos os amigos que o
idealismo, a desventura, a fidelidade, e as recentes alegrias tão
intimamente havia fundido em uma só alma.