Plinio Corrêa de Oliveira

 

EM DEFESA DA

AÇÃO CATÓLICA

O presente texto é transcrição da edição fac-símile comemorativa dos quarenta anos de lançamento do livro, editada em Março de 1983 pela  Artpress Papéis e Artes Gráficas Ltda - Rua Garibali, 404 - São Paulo - SP - Brasil

CAPÍTULO II

Refutação das doutrinas errôneas

 

Como se vê, assume capital importância o estudo da natureza jurídica exata da organização que Pio XI fundou. Antes de entrarmos no assunto, convém que enunciemos sobre o fato alguns princípios de ordem geral.

Desenvolvimento de algumas noções dadas no capítulo anterior

Como já dissemos, a palavra mandatum tem em latim o sentido especial de uma ordem ou ato imperativo de uma pessoa constituída em autoridade, sobre seus súditos. Assim, esta palavra equivaleria ao termo português de “mandamento” com que designamos as leis de Deus e da Igreja, expressão da força imperativa que exercem sobre nós. É neste sentido que Nosso Senhor impôs aos Apóstolos um mandato quando lhes ordenou a pregação do Evangelho a todos os povos da terra. Neste sentido – o único aceito na linguagem eclesiástica quanto ao presente assunto – as procurações, que no direito civil brasileiro se chamam mandatos e que são aceitáveis ou rejeitáveis pelo mandatário, não são verdadeiros mandatos.

Os tratadistas da Ação Católica, cuja opinião impugnamos, entendem que o Santo Padre Pio XI impôs ao laicato um mandato, quando o incitou a se inscrever na Ação Católica, o que equivale a afirmar que as organizações fundamentais da Ação Católica possuem um mandato próprio. Quanto às outras organizações de apostolado, dado que não procedem de uma iniciativa da Igreja, mas de uma iniciativa meramente individual; dado ainda que não receberam da Igreja uma incumbência com uma ordem para a realização, mas apenas têm uma permissão para agir; dado finalmente, que, em conseqüência, não têm a autoridade da própria Igreja para a realização de seus fins e desenvolvimento de suas atividades, mas um simples “laissez faire”, um “laissez passer”, elas se encontram em situação radicalmente inferior, em um plano inteiramente outro, separadas da Ação Católica pela distância imensa que separa essencialmente uma ação de súditos de uma ação oficial da autoridade.

Inconsistência filosófica das doutrinas expostas no capítulo anterior

Antes de entrar na apreciação do fato histórico, e verificar se realmente Pio XI outorgou um tal mandato à Ação Católica, examinemos esta doutrina em si mesma, afim de demonstrar a completa carência de fundamento de que se ressente.

Para não darmos à nossa exposição um caráter exclusivamente teórico, evitemos o terreno da pura abstração, e figuremos um caso concreto.

Das várias modalidades de colaboração

Um homem possui um campo por demais vasto para que o faça produzir sem colaboradores. Poderá ele remediar esta insuficiência pelos seguintes meios:

1 – impondo a alguns de seus filhos, em virtude do exercício de sua autoridade paterna, que cultivem o campo;

2 – aconselhando seus filhos a que o façam, e aprovando o trabalho que executarem;

3 – não tomando qualquer iniciativa neste sentido, mas dando o seu consentimento à iniciativa espontânea de seus filhos;

4 – dando sua aprovação a posteriori, ao fato de seus filhos, supondo com fundamento ser esta a vontade paterna, lhe terem preparado a agradável surpresa de ver o trabalho executado.

Todas têm a mesma essência

Note-se que estas hipóteses, do ponto de vista moral e jurídico, apenas se diferenciam umas das outras pela maior ou menor intensidade do ato de vontade do proprietário. Este ato de vontade é para todos igualmente a fonte da liceidade. Aliás, a moral distingue, com toda a propriedade, várias espécies de atos voluntários. Além do ato voluntário “in se”, que é o ato simples e atualmente voluntário, desempenhado “scienter et volenter”, existem ainda, entre outros, o ato voluntário virtual e o interpretativo. O ato voluntário virtual é aquele que provém de uma vontade adrede determinada, não retratada em sua determinação, embora não atualmente voltada para esta, de maneira que tal determinação não é considerada pelo sujeito. No ato voluntário interpretativo, não há, nem houve, determinação alguma da vontade, mas teria havido, certamente, dadas as disposições morais do sujeito, se ele soubesse de determinados acontecimentos e de certas circunstâncias de fato.

E produzem conseqüências análogas

Todos estes atos são voluntários, tanto que podem ser causa de mérito ou demérito, (Cfr. Cathrein, Philosophia Moralis: pgs. 52 e 54, 15ª edição, Herder) e a todos os seus agentes conferem as mesmas prerrogativas essenciais:

1 – O direito de exercer atividade sobre o campo, na medida em que o exige a tarefa e em virtude de uma delegação expressa ou legitimamente presumida, imperativa ou de simples conselho, do dono do campo.

2 – Conseqüentemente, o direito, que ainda é uma conseqüência da vontade do proprietário, de fazer cessar todas as turbações que terceiros levantem ao exercício desta atividade legítima.

Quer quanto a um, quer quanto ao outro destes efeitos, chamamos a atenção do leitor para um fato de capital importância: não é só a ordem imperativa do proprietário do campo, mas ainda qualquer outra forma de trabalho feito com o consentimento expresso ou até simplesmente presumido do proprietário do campo, que confere ou acarreta estas conseqüências morais e jurídicas.

Os primeiros obedeceriam a um mandato, os outros seriam colaboradores. Em qualquer caso, quer perante o proprietário, quer perante terceiros, mandatários ou colaboradores seriam igualmente canais legítimos da vontade do dono e seus legítimos representantes.

Distinção entre mandato e colaboração

Já que chegamos a esta altura da exposição, é bom elucidar as relações existentes entre os conceitos de mandatário e colaborador. Como vimos, não há mandatário que não seja um colaborador no sentido etimológico da palavra, uma vez que sua função não é outra senão a de desempenhar tarefa do mandante, com o qual e em nome do qual trabalha.

Será qualquer colaborador um mandatário?

Se tomarmos o termo mandatum no sentido estrito, que acima expusemos e que é o único que a terminologia eclesiástica admite, não. Mas a diferença que existe entre os vários tipos de colaboradores, dos quais o mandatário é apenas uma espécie, consiste somente em que, quanto mais categórica tenha sido a delegação do proprietário, tanto mais ilícita será qualquer oposição suscitada contra a vontade ou a atividade do delegado. Há no assunto uma simples diferença de intensidade e nada mais, diferença que não altera qualitativamente a questão.

Resumamos. Todo colaborador pode ser considerado um membro separado do agente principal, como executor de sua vontade. Nas várias hipóteses estamos sempre na presença de membros separados do mandante, cuja única diversidade de condições perante este consiste nas várias graduações da vontade a que obedecem. Mas a natureza do vínculo moral e jurídico que os prendem ao mandante é sempre a mesma. Todo mandatário é um colaborador. Todo colaborador é de certo modo, um delegado do mandante perante terceiros.

Mandato e delegação

A este propósito, convém frisar com clareza ainda maior a distinção entre o mandatum, no sentido imperativo da palavra, e o mandato no sentido civil da palavra, isto é, “procuração”.

Existe procuração ou delegação de funções sempre que alguém incumbe outrem de certa tarefa.

Na terminologia do direito civil positivo, distingue-se o mandato da locação de serviços ou da colaboração gratuita. Em essência, entretanto, no terreno do direito natural, toda colaboração consentida, ainda que presumivelmente, é uma delegação.

Com efeito, a colaboração é a inserção da atividade de alguém na de outrem. Ora, como cada pessoa é proprietária de sua atividade, a colaboração só é licita quando autorizada, ainda que presumidamente. E a este título, o colaborador é o representante da vontade da pessoa para quem trabalha, perante terceiros. Toda colaboração licita acarreta, portanto, uma delegação.

Resumo das noções dadas até aqui, neste capitulo

Dada a extrema complexidade do assunto, resumamos ainda uma vez quanto ficou dito:

a) – toda atividade exercida em tarefa de outrem é uma colaboração, e neste sentido tanto são colaboradores os que agem por ordem, a conselho, mediante consentimento expresso, como ainda os que agem simplesmente por meio de consentimento suposto, de outrem;

b) – sendo a mesma, em qualquer hipótese, a natureza jurídica destas relações, as variantes dai decorrentes constituem tipos diversos dentro de uma espécie comum, e as diversidades existentes entre esses tipos não criam diferenças essenciais;

c) – como colaboradores autênticos, podem dizer-se todos no sentido mais genérico da palavra delegados do mandante;

d) – a variedade de tipos de colaboração acarreta, na ordem concreta, como conseqüência, que, sendo a vontade do mandante a fonte do direito, qualquer oposição à atividade do colaborador será tanto mais ilícita quanto mais positiva, grave e enérgica tiver sido a expressão da vontade do mandante.

Tudo isto posto, a conclusão a que chegamos é de uma evidência cristalina: a priori, e sem entrarmos na apreciação do fato histórico do mandato, que Pio XI teria dado à A. C., podemos afirmar que tal mandato seria radicalmente ineficaz por si só, para operar uma substancial e essencial alteração na própria natureza jurídica do apostolado leigo confiado a A. C.

O mandato e a colaboração, em matéria de apostolado leigo

Apliquemos, de modo mais concreto, os princípios gerais que acabamos de enunciar, abandonando o exemplo do pai com um campo a ser trabalhado, e examinando diretamente as relações entre a Hierarquia e as obras de apostolado leigo.

Insuficientes os esforços pessoais e diretos dos membros da Hierarquia, para a plena realização da tarefa que lhe foi imposta pelo Divino Fundador, recorre ela ao concurso dos leigos, e, precisamente como o pai de família, pode ela assumir a este propósito uma das seguintes posições:

a) – impor aos leigos a realização do apostolado como se afirma haver ocorrido no caso da A. C.;

b) – aconselhar aos leigos que realizem determinada tarefa, como se dá no caso das numerosas associações aprovadas e vivamente estimuladas em suas atividades pela Hierarquia;

c) – aprovar as iniciativas ou obras espontaneamente organizadas, e submetidas a sua prévia aprovação por particulares;

d) – dar uma aprovação genérica a toda obra meramente individual, feita com intuito de apostolado por qualquer fiel. [1]

O mandato não é suficiente para dar a A. C. essência jurídica diversa das outras obras leigas

O primeiro caso seria o único em que se poderia reconhecer um mandato. Nos outros casos, não haveria mandato. Mandatários ou não, seriam todos verdadeiros colaboradores da Hierarquia, colocados perante ela em posição jurídica essencialmente igual.

O mandato é mera forma de outorga de poderes que nada tem que ver com a natureza e extensão dos poderes outorgados

A esse propósito devemos acentuar que erram os que presumem que, tendo o Santo Padre tornado obrigatória a inscrição de todos os leigos nas fileiras da A. C. é daí que lhes provêm o mandato ao qual atribuem efeito tão maravilhoso. Demonstramos que o mandato não possui tal efeito. Demonstraremos agora que, não é necessário admitir-se esta obrigatoriedade de inscrição para todos os fiéis, para sustentar que a A. C. possui um mandato.

Uma simples comparação o demonstrará melhor do que qualquer digressão doutrinária. Quando o Estado convoca os cidadãos a uma mobilização geral, juntamente com o mandatum de incorporação às fileiras, dá-lhes funções de caráter estatal. As mesmas funções podem, entretanto, ser atribuídas aos voluntários, cuja incorporação ao exército não resultou de um ato imperado, mas de um ato livre. O mandatum, como se vê, não é elemento necessário para a outorga da função oficial.

Por isto é que tão reais são os poderes de um Bispo que aceite seu cargo em virtude de uma imposição da autoridade, quanto em conseqüência de um simples conselho, quanto ainda depois de o haver pleiteado para si.

Assim, quer se admita a obrigatoriedade de inscrição dos leigos na A. C., quer não, daí não decorre qualquer conseqüência essencial quanto aos poderes que esta possui. Ainda que esta inscrição seja facultativa, o mandato recairia plenamente sobre a A. C. como organismo coletivo ao qual a Santa Sé impôs imperativamente uma tarefa determinada. E todos os que ainda facultativamente se inscrevessem na A. C. se tornariam participantes do mandato desta.

Em outros termos, ainda não é aí que se pode encontrar uma diferença essencial entre a A. C. e as demais organizações de leigos.

Há outras obras dotadas de mandato, às quais nunca se atribuiu essência jurídica diversa das obras leigas sem mandato

A esta altura, podemos chegar a considerações do mais palpitante interesse. Se é certo que a A. C. tem a obrigação imposta pelo Santo Padre, de realizar o apostolado, não é certo que em outras obras estranhas aos organismos fundamentais da A. C. e a ela anteriores, também não se encontre um mandato, isto é, uma obrigação absoluta e taxativa, de realizar determinada tarefa de apostolado. Não é difícil encontrar obras de apostolado leigo eretas por iniciativa dos Papas ou de Bispos, e às quais eles cometeram encargos por vezes importantíssimos, com que estas obras não poderiam deixar de arcar, sob pena de desobediência grave.

Muitas outras obras eretas por iniciativa particular, com simples aprovação eclesiástica, receberam posteriormente ordens para realizar determinadas tarefas impostas pela Hierarquia, tarefas estas que constituem freqüentemente parte central e diletíssima de mais de um programa de governo episcopal. Jamais, entretanto, se pretendeu que estas obras, dotadas de um evidente e incontestável mandato, colocassem seus realizadores leigos em situação jurídica essencialmente outra.

Mais ainda. O Concílio Plenário Brasileiro, depois de organizada entre nós a A. C., tornou obrigatória a fundação de Irmandades do Santíssimo Sacramento em todas as Paróquias, e incumbiu imperativamente estas Irmandades da tarefa gloriosa entre todas, de velar pelo esplendor do culto. É um mandato. Quem ousará, entretanto, afirmar que isto mudou a natureza jurídica destas antiqüíssimas Irmandades? Haverá prova mais concludente de que a A. C. não é a única a possuir mandato, e implicitamente não tem natureza jurídica essencialmente diversa das outras associações?

Como Presidente de A. C., e se bem que este livro seja escrito para defender a A. C. contra o supremo perigo de usurpar títulos que ela não possui, não poderia o autor destas linhas deixar de ser extremamente grato às relevantes prerrogativas com que a Santa Igreja galardoou a A. C.. Assim, seria um absurdo que tivéssemos o propósito de amesquinhar ou diminuir no que quer que seja aquilo que, pelo contrário, temos a obrigação de defender. Negando à A. C. uma natureza jurídica que ela não possui, não podemos, por isto, deixar de acentuar que ficam intatos em toda a nossa argumentação os direitos expressamente conferidos à A. C. pelos Estatutos da Ação Católica Brasileira atualmente vigentes. Prerrogativas estas que, elevando a A. C. à dignidade de máximo órgão do apostolado leigo de modo algum lhe tiram a qualidade de súdita da Hierarquia. Coibindo as demasias de certos círculos da A. C., não combatemos nem guerreamos a esta, o que seria de nossa parte, além de indignidade, o mais flagrante dos absurdos. Pelo contrário, nós lhe prestamos um serviço de suprema importância, procurando evitar que ela abandone seu glorioso papel de serva da Hierarquia e irmã conspícua de todas as outras organizações católicas, afim de se transformar em um câncer devorador e gérmen de desordens.

Já que falamos dos Estatutos da A. C. B., podemos encerrar estas considerações com mais uma apreciação que eles nos sugerem.

Promulgados estes Estatutos, e colocadas as Associações religiosas pré-existentes à A. C. na condição de entidades auxiliares, admite-se como indiscutível que elas têm a obrigação de auxiliar os vários setores fundamentais da A. C. na medida e nas formas que as regras ou estatutos delas permitam. Ora, esta obrigação de auxiliar no apostolado, por quem foi imposta? Pela Hierarquia. E o que é uma obrigação imposta pela Hierarquia senão uma mandato?

Resumindo estas considerações, devemos concluir que a A. C. tem efetivamente um mandato imposto pela Hierarquia, mas que este mandato não lhe muda a essência jurídica que é idêntica à de numerosas outras obras anteriores ou posteriores à constituição dos atuais quadros jurídicos da A. C.. E assim como jamais se pretendeu que mencionadas obras fossem de essência jurídica substancialmente diversa das demais obras de leigos, assim também não há razão para que tal se pretenda em relação à A. C..

Há também fiéis dotados de mandato, que nem por isto deixam de ser na Santa Igreja meros súditos

Acrescentaremos agora uma observação. Há pessoas que, em virtude de grave dever de justiça ou de caridade, têm obrigação imperiosa de praticar certos atos de apostolado, obrigação esta de caráter moral, que foi imposta pelo próprio Deus. É este, por exemplo, o caso dos pais em relação aos filhos, dos patrões em relação aos criados, dos mestres em relação aos alunos, etc.. O mesmo dever grave tem em certas circunstâncias qualquer fiel em relação a outro, como é, por exemplo, o caso de quem assiste a um moribundo. Ora, todas estas obrigações constituem verdadeiros mandamentos e várias organizações se fundaram para facilitar aos mandatários o desempenho desta tarefa. São as associações de pais cristãos, mestres cristãos, etc., etc.. Não obstante, nem estas organizações, nem tais mandatários deixaram jamais de se encontrar perante a Hierarquia em situação essencialmente idêntica à do leigo. E, entretanto, trata-se de um verdadeiro mandato. Neste sentido, frisante a opinião do Padre Liberatore que, no seu tratado de Direito Público Eclesiástico, publicado em 1888, afirma textualmente o caráter de mandatários da Hierarquia, dos pais e mestres. Assim, pois, a natureza jurídica da A. C. não representa, na Santa Igreja, novidade alguma.

Textos Pontifícios

Aliás, o Santo Padre Pio XI outra coisa não afirmou quando, em reiteradas ocasiões, insistiu na identidade da Ação Católica de seus dias com o apostolado leigo ininterruptamente existente na Igreja, desde os seus primeiros tempos, e designando a A. C. dos tempos apostólicos com o mesmo nome (e com as mesmas letras maiúsculas) da de nossos dias. Ouçamo-lo, dirigindo-se às operárias da J. O. C. feminina italiana, em 19 de Março de 1927: “A primeira difusão do Cristianismo em Roma se fez com a A. C.. E poderia ela fazer-se de outra maneira? O que poderiam ter feito os Doze, perdidos na imensidade do mundo, se não tivessem chamado em torno de si colaboradores? São Paulo termina as suas Epistolas com uma ladainha de nomes entre os quais poucos sacerdotes mas muitos leigos e mesmo mulheres: ajuda, diz ele, aquelas que comigo trabalham no Evangelho. São Paulo parece dizer: são os membros da Ação Católica”.

Este trecho nos mostra que, desde o inicio da vida da Igreja, começou a Hierarquia a convocar os fiéis, precisamente como fez Pio XI, para a faina do apostolado. Como para bem acentuar a inteira, e aliás gloriosa identidade, entre a A. C. de seus dias e a dos primeiros tempos, escreve Pio XI as palavras Ação Católica com letras maiúsculas em ambas as alusões e, no discurso aos Bispos e peregrinos da Iugoslávia, em 18 de maio de 1921, ele acrescenta: A A. C. não é uma novidade dos tempos presentes. Os Apóstolos lançaram-lhe as bases quando, em suas peregrinações para a difusão do Evangelho, pediam auxilio aos mesmos leigos – homens e mulheres, magistrados e soldados, jovens, anciãos e adolescentes, que tinham fielmente conservado a palavra de vida, anunciada entre eles em nome de Deus”.

Convocações e mandatos anteriores à criação da atual estrutura da A. C.

Por mais que a adaptabilidade da Ação Católica, de sua estrutura jurídica e de seus métodos aos problemas de nossos dias seja completa, não vemos como se possa pretender, depois de tais textos, que a Ação Católica de hoje tenha recebido um mandato que a tornaria essencialmente diversa da Ação Católica existente na Igreja desde os tempos dos Apóstolos até nossos dias. Alias, cumpre observar que ininterruptamente, durante os vinte séculos de sua existência, tem a Igreja repetido aos fiéis essa convocação ao apostolado, ora por forma de estímulos, ora por meio de convocações; e estas convocações, idênticas em tudo as que fazia a Hierarquia nos primeiros séculos, são idênticas também à que faz hoje em dia. Com efeito, qual o historiador da Igreja que ousaria afirmar que houve um século, um ano, um mês, um dia em que a Igreja deixasse de pedir e utilizar a colaboração dos leigos com a Hierarquia? Sem falar nas cruzadas, tipo caraterístico de Ação Católica militarizada, solenissimamente convocada pelos Papas, sem falar na Cavalaria andante e nas Ordens de Cavalaria, em que a Igreja investia de amplíssimas faculdades e encargos apostólicos os cavaleiros, sem falar nos inúmeros fiéis que, atraídos pela Igreja para as associações de apostolado por ela fundadas, colaboravam com a Hierarquia, examinemos outros institutos em que nossa argumentação se torna particularmente firme.

Como ninguém ignora, existem na Igreja varias Ordens Religiosas, e Congregações que só recebem pessoas que não tiveram a unção sacerdotal. Neste número estão, antes de tudo os institutos religiosos femininos, bem como certas Congregações masculinas, como por exemplo a dos Irmãos Maristas. Em segundo lugar existem os muitos Religiosos não Sacerdotes, admitidos a título de coadjutores nas Ordens religiosas de Sacerdotes. Não se poderia negar sem temeridade que, de um modo geral, têm vocação do Espírito Santo os membros destas Ordens ou Congregações. Filiando-os aos respectivos institutos, dá-lhes a Igreja oficialmente o encargo de fazer apostolado, isto é, agrava com penas mais fortes as obrigações que como fiéis já tinham de fazer apostolado e lhes torna obrigatória a prática de certos atos apostólicos. Tudo isto não obstante, há quem entenda que o misterioso e maravilhoso efeito do mandato da Ação Católica coloca os membros desta muito acima de quaisquer Religiosos que não tenham Ordens Sacras. Porque? Em virtude de que sortilégio? Se jamais se consideraram elementos integrantes da Hierarquia estes Religiosos, que são na Igreja meros súditos, porque entender o contrário em relação à A. C.?

Como se vê, nenhuma razão há para que se atribua a convocação feita por Pio XI, em si mesma considerada, alcance maior do que às que fizeram seus predecessores.

Conclusão

É certo que Pio XI fez um apelo, particularmente, grave à vista dos prementíssimos riscos em que se encontra a Igreja, e deu a tal apelo uma extensão generalizadíssima, abrangendo nele, de certa forma, todos os fiéis. Entretanto, também em outras épocas, como já dissemos, foram convocados todos os fiéis para o apostolado. Di-lo o próprio Pio XI na citada alocução aos Bispos e fiéis da Iugoslávia, quando lembra que em Roma, “Pedro e Paulo pediam a todas as almas de boa vontade esta cooperação às suas. fadigas”. Quanto à gravidade dos riscos, se é certo que jamais foi tão grande quanto em nossos dias, no sentido de que jamais estivemos ameaçados de uma tão profunda e geral apostasia, não é menos certo que tais riscos foram em outras épocas tão iminentes quanto agora. E, por isto, o alcance jurídico dos apelos então feitos pelos Papas não podia ser menor do que hoje,

Citemos alguns textos pontifícios conclamando os fiéis ao apostolado, e mandando até, que o façam:

Pio IX disse que “os fiéis devem tirar os infiéis das trevas e trazê-los para a Igreja” (Carta “Quanto Conficiamus”, 10 de agosto de 1863). E o Concílio Vaticano dá este soleníssimo mandato a todos os fiéis: “Desempenhando o dever do nosso supremo cargo pastoral, conjuramos, pelas entranhas de Jesus Cristo, todos os fiéis de Cristo, e lhes ordenamos pela autoridade deste mesmo Deus, nosso Salvador, que empreguem todo seu zelo e cuidados em afastar da Santa Igreja estes erros, e propagar a luz da mais pura Fé (Constit. “Dei Filius”).

E a isto Leão XIII acrescenta: “Queremos também que exciteis a todos em geral, mas sobretudo àqueles que por sua ciência, fortuna, dignidade, poder, se destacam dentre os demais, e que em toda a sua vida pública ou privada tenham a peito a honra da Religião, a que sob vossa direção e auspícios atuem com maior ímpeto para favorecer os interesses católicos” (Carta aos Bispos da Hungria, “Quod Multum”, de 22 de agosto de 1886). E na encíclica “Sapientiae Christianae”, de 10 de janeiro de 1890 o Santo Padre acrescenta: “É missão da Igreja arrancar do erro as almas. Mas quando as circunstâncias o tornam necessário, não é só aos Prelados, mas, como diz Santo Tomás, a todos, que incumbe manifestar publicamente sua fé, seja para instruir e estimular os fiéis, seja para repelir os ataques dos adversários”. E, na mesma Encíclica, o Santo Padre relembra o texto do Concilio do Vaticano, que acima transcrevemos, e acrescenta: “Que cada qual se lembre que pode e deve, pois, difundir a fé católica”. E na carta - “Testem Benevolentiae” sobre o Americanismo, o Santo Padre afirma que “a palavra de Deus nos ensina que cada qual tem o dever de trabalhar para a salvação do próximo, segundo a ordem e grau em que está colocado. Os fiéis se desempenham com fruto deste ofício que Lhes foi dado por Deus, pela integridade de seus costumes, pelas obras de caridade cristã, por uma oração ardente e assídua”. E, na encíclica “Graves de Communi”, de 18 de janeiro de 1901 o Santo Padre acrescenta, depois de recomendar uma direção central para todos os esforços dos católicos: “isto se deve dar nas nações onde se encontra alguma assembléia principal do gênero do Instituto dos Congressos e Assembléias Católicas, a quem tenha sido dado legitimamente o mandato de organizar a ação comum”. Finalmente, ainda na Encíclica “Etsi Nos”, de 15 de fevereiro de 1882, encontramos esta enérgica reflexão: “Se a Igreja engendrou e educou filhos, não foi para que nas horas difíceis ela não pudesse esperar deles socorro, mas para que cada qual preferisse a seu repouso ou a interesses egoísticos a salvação das almas e a integridade da doutrina cristã”.

Para concluir estas considerações, empreguemos uma analogia. Normalmente, têm todos os cidadãos deveres para com a Pátria, entre os quais o de a defender, se atacada. Este dever, anterior à promulgação de qualquer lei do Estado, resulta da moral. Se, porém, o Estado chama os cidadãos às armas, lembrando-lhes o dever de defender a Pátria, sua obrigação se torna mais grave. Nem por isto, se pode pretender que a convocação implica em uma promoção maciça ao oficialato. Pelo contrário, mais do que nunca, é esta a hora das grandes renúncias e da disciplina incondicional. Lançando uma convocação geral, Pio XI não fez promoções nem prometeu propinas. Pelo contrário, a gravidade do perigo, que ele denunciou, aconselha imperiosamente a disciplina e a renúncia, ao mesmo tempo que condena severamente as pretensões de mando e os pruridos de desordem.


NOTAS

[1] A fim de evitar qualquer confusão de espírito, queremos enquadrar na ordem geral das idéias que expusemos uma classificação muito conhecida, e, aliás, de evidente valor intrínseco: a atividade apostólica oficial e particular. O alcance de cada um destes termos - oficial e particular - costuma ser considerado de modo excessivo. A Igreja é uma sociedade dotada de governo próprio, pelo que ela age oficialmente por meio deste governo, e as atividades pessoais dos sócios não poderiam, de modo algum, afetar toda coletividade. Nisto consiste, na Igreja, como em qualquer outra sociedade, a distinção entre o “oficial” e o “particular”. Haveria, entretanto, um manifesto engano em se supor que a atividade particular nem resulta, nem empenha ou afeta de qualquer maneira, em caso algum a sociedade, e é apenas particular, no sentido mais pleno da palavra, procedendo exclusivamente do indivíduo e pela qual só ele é responsável. Tomemos um exemplo concreto. Uma sociedade fundada para inaugurar e coordenar estudos sobre um problema histórico inexplorado, por exemplo, só se exprime de modo oficial por sua diretoria. Mas todos os estudos realizados pelos membros em conseqüência do impulso dado pela sociedade, dos meios dados pela sociedade para a realização das pesquisas e com o intuito de preencher a finalidade social, são atos que decorrem da sociedade, e revertem em mérito para ela. Assim, pode a sociedade em toda a propriedade da expressão sustentar que foi ela que realizou os estudos levados particularmente a cabo por todos os seus membros dentro da finalidade social.

O mesmo se dá com a Santa Igreja. Tendo embora sua própria autoridade, a única a poder agir de modo oficial, não se suponha que os atos de apostolado aconselhados, permitidos expressa ou tacitamente por ela, ou ainda apenas aprovados “a posteriori” são atos puramente individuais, e que seu mérito recai exclusivamente sobre o indivíduo. Foi a Santa Igreja que tornou o indivíduo capaz de compreender a nobreza sobrenatural da ação apostólica, foi ela que lhe proporcionou a graça sem a qual não há verdadeira vontade de fazer apostolado, e foi em conformidade com a vontade dela que ele agiu. Mais ainda: agiu na qualidade de membro dela. Como pretender, então, que a ação individual do apostolado chamado particular não envolva de modo algum a Santa Igreja? Isto implicaria em alterar a linguagem de quase todos ou de todos os tratados de História da Igreja, que fazem reverter em méritos para esta - e com que super-abundância de razão! - todas as ações nobres praticadas pelos fiéis através da História.

Qual então o alcance preciso da distinção entre apostolado oficial e particular? Continua imenso.

O apostolado oficial é dirigido pela Autoridade Eclesiástica. Assim, tem ela a responsabilidade imediata por todos os atos praticados nas obras oficiais. Com efeito, a Autoridade tem a responsabilidade moral de tudo quanto ordena. Nas obras de apostolado simplesmente permitidas ou aconselhadas, sempre que a direção da parte executiva não estiver a cargo da Autoridade Eclesiástica, terá ela mérito por tudo quanto se fizer de bom - se isto foi por ela permitido -  e os particulares terão culpa por tudo quanto houver de errado e de mau, que não esteja nem nas intenções nem na permissão dela. Assim, a Igreja deseja e permite que demos bons conselhos ao próximo. Sempre que o fizermos, parte do mérito da ação é da Autoridade. Mas se o fizermos mal, baseando-nos em doutrina eivada de erro, ou sem a necessária caridade e prudência, a Autoridade nenhuma culpa terá nisto, e a culpa será toda nossa.


 

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