Plinio Corrêa de Oliveira

 

EM DEFESA DA

AÇÃO CATÓLICA

 

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O presente texto é transcrição da edição fac-símile comemorativa dos quarenta anos de lançamento do livro, editada em Março de 1983 pela  Artpress Papéis e Artes Gráficas Ltda - Rua Garibali, 404 - São Paulo - SP - Brasil

Introdução

Antecedentes históricos do ambiente em que surgiu a A. C.:

Lendo com atenção os documentos pontifícios publicados de duzentos anos a esta parte, notaremos que eles se referem insistentemente, servindo-se por vezes de uma linguagem que faz lembrar os antigos profetas, a uma desagregação social catastrófica, que implicaria na desarticulação e destruição de todos os valores de nossa civilização.

a) – a desorganização dos Estados liberais

A Revolução Francesa foi a primeira confirmação destas previsões, e introduziu no terreno político uma agitação devoradora e progressiva, que abalou as mais sólidas instituições até então existentes, e impediu que elas fossem substituídas por outras igualmente duráveis. O contágio desse incêndio político passou da esfera constitucional para o terreno econômico e social, e teorias audaciosas, apoiadas por organizações de âmbito universal, solaparam completamente todo o sentimento de segurança, na Europa convulsionada. Eram tais as nuvens que se acumularam nos horizontes, que Pio XI dizia já ser tempo de se perguntar se esta aflição universal não pressagiava a vinda do Filho da Iniqüidade, profetizado para os últimos dias da humanidade: “Esse espetáculo (das desgraças contemporâneas) é de tal maneira aflitivo, que se poderia ver nele a aurora deste início de dores, que trará o homem do pecado, elevando-se contra tudo quanto é chamado Deus e recebe a honra de um culto”. “Não se pode verdadeiramente deixar de pensar que estão próximos os tempos preditos por Nosso Senhor”: “e por causa dos progressos crescentes da iniqüidade, a caridade de um grande número de homens se esfriará” (Pio XI, Encl. “Miserentissimus Redemptor”, de 8 de Maio de 1928).

b) – o pânico universal

Com efeito, a conflagração mundial dissipara os últimos resquícios de otimismo da era vitoriana, e pusera a nu as chagas hediondas que, como uma lepra, de alto a baixo cobriam a civilização contemporânea. Os espíritos que, enganados pela aparência falaciosa e brilhante da sociedade de “avant-guerre”, ainda dormiam despreocupadamente sobre suas ilusões liberais, despertaram bruscamente, e a todos se patenteou a necessidade de medidas de salvação ingentes e drásticas, que evitassem a ruína iminente.

c) – as ditaduras

Surgiram então os grandes condutores de massas humanas e começaram a arrastar atrás de si as multidões postas em delírio pelo terror, e a lhes prometer os remédios fáceis das mais variadas reformas legislativas.

d) – a suprema catástrofe

Estava precisamente aí a tragédia do século XX. Os Papas haviam proclamado reiteradamente que só o retorno à Igreja salvaria a humanidade. Entretanto, procurou-se a solução fora da Igreja. Em vez de promover a reintegração do homem no Corpo Místico de Cristo, e implicitamente sua regeneração moral, procurou-se “defender a cidade sem o auxílio de Deus”, tarefa vã, cujo insucesso nos arrastou aos transes mortais da presente conflagração [II Guerra Mundial]. Esta procura frenética, desordenada, alucinante, de uma solução qualquer, sempre aceita, por mais dura que fosse, desde que não fosse a solução que é Cristo, foi a última catástrofe desta cadeia de erros que, de elo em elo, nos conduziu das primeiras negações de Lutero até a amargura dos dias de hoje. Será difícil fazer previsões sobre o futuro, e não é este o objeto do presente livro. Da exposição até aqui feita, retenhamos apenas esta noção: a procura ansiosa e alucinada de uma solução radical e imediata foi a grande preocupação, que, consciente ou inconscientemente, a todos nos empolgou, nas duas últimas décadas deste terrível século XX. Como náufragos, os homens procuram agarrar-se até à palha que flutua sobre as ondas, supondo nela virtudes salvadoras.

O delírio do naufrágio não tem por único efeito suscitar nos náufragos a ilusão de se salvarem agarrados à palha. Quando lhes são oferecidos meios de salvação adequados, precipitam-se loucamente sobre eles, utilizam-nos mal, destroem-nos por vezes com sua imperícia e soçobram finalmente entre os destroços dos barcos, em que se poderiam ter salvo.

Pio XI funda a A. C. – Esperanças e triunfos

Foi o que, em medida infelizmente não pequena, sucedeu com a Ação Católica.

Dotado de um poderoso engenho, iluminado pelo Espírito Santo, o imortal Pio XI acenou para o mundo com o grande remédio da A. C. e lhe mostrou assim o único meio de salvação. Quantas foram as dedicações generosas, quantas as energias indomáveis que o apelo do Pontífice soube suscitar! E quantas, também, as vitórias alcançadas de modo seguro e duradouro, em terrenos onde todas as circunstâncias faziam pressagiar um desabamento total!

Exageros

A certeza de que A. C. oferecia remédio aos males contemporâneos, a iminência e o vulto das perspectivas que um triunfo universal da A. C. entreabria, tudo isto bastou para que, numa época convulsionada pelo mais fundo abalo moral, muitos entusiasmos se manifestassem de modo menos equilibrado do que fora de desejar. Suscitaram-se messianismos de alta tensão nervosa, uma paixão pela ação absoluta e por resultados imediatos, que desterrou o bom senso para muito longe de certos ambientes, animados de um fervor aliás generoso pela A. C.. Seria difícil dizer até que ponto a semeadura de joio do “inimicus homo” concorreu para desviar para o campo dos erros já condenados pela Encíclica “Pascendi” e pela Encíclica contra “Le Sillon” tantos espíritos animados das mais louváveis intenções. O fato é que um messianismo malsão começou a fazer delirar em certos espíritos os princípios fundamentais da A. C.. E como as verdades que deliram estão prestes a se transformar em erros, não tardou que muitos conceitos novos assumissem um caráter ousado, para acabar tornando-se indiscutivelmente errados.

Erros:

a) – quanto à vida espiritual

Daí, um conjunto de princípios, ou melhor, de tendências que, em matéria de piedade, diminuem ou extinguem o papel da cooperação humana, sacrificando-o a uma concepção unilateral da Ação da graça. A fuga das ocasiões de pecado, a mortificação dos sentidos, o exame de consciência, os Exercícios Espirituais passaram a não ser compreendidos devidamente. De alguns excessos reais no aproveitamento desses métodos salutares, deduziu-se a necessidade de relegar ao olvido ou de combater abertamente o que a sabedoria da Igreja tão claramente louvou. O próprio Rosário teve seus detratores, e seria longa a enumeração das conseqüências que de tantos erros se seguiram.

b) – quanto ao apostolado

Ao par de conseqüências teológicas, surgiram outras, inspiradas nos mesmos erros, carreando aliás consigo uma boa parcela de verdades, e até de verdades providenciais. Sob pretexto de romper com a rotina, falou-se em “apostolado de infiltração”. A necessidade deste apostolado é premente. Não obstante, nada autoriza a que, sob o rótulo desta verdade, posta como as outras em franco delírio, se faça uma condenação radical de todos os processos de apostolado desassombrados e de viseira erguida. Dir-se-ia que o respeito humano, que nos leva a calar a verdade, a adocicá-la, a fugir de qualquer luta e de qualquer discussão, passou a ser a fonte inspiradora de uma nova estratégia apostólica, a única a ter curso oficial na A. C. segundo os desejos de certos círculos. Ao par disto, começou a formar-se um espírito de concessão ilimitada diante do surto das novas modas e novos costumes. Isto se disfarçou aliás sob o pretexto de uma obrigação grave de fazer apostolado nos ambientes cuja freqüência a Teologia Moral declara vedado a qualquer católico que não queira decair da dignidade sobrenatural que Lhe foi conferida pelo Batismo.

c) – quanto à disciplina

Seja dito para honra de nosso Clero, que muito cedo se percebeu que a autoridade do Sacerdote, se livremente exercida na A. C., não tardaria a pôr um cobro à circulação de tantos erros. Daí uma série de preconceitos, de sofismas, de exageros cuja conseqüência sistemática é o alijamento da influência do Padre na A.C.. Quanto coração sacerdotal sangrará com dolorosas reminiscências ao ler estas linhas! Nosso douto e piedoso Clero bem merecia a honra se se Lhe reconhecer que o erro só pôde desenvolver-se sobre os destroços de sua autoridade e de seu prestígio.

Razão deste livro

Com tudo isto, e embora esta semeadura de erros não tenha encontrado guarida geral na A. C., este instrumento providencial proporcionado por Pio XI à Igreja, já estaria correndo o risco de ser voltado contra suas próprias finalidades, caso não se cortasse o passo, de modo desassombrado, a grupos felizmente pequenos, nos quais o erro encontrou entusiásticos adeptos.

Uma análise superficial dessa situação pareceria indicar que não é obra de leigos a iniciativa de refutar, pela primeira vez entre nós, por meio de um livro especialmente dedicado ao assunto, tais erros. Entretanto, se este é o primeiro livro sobre o assunto, não é porém a primeira refutação que as doutrinas temerárias sobre A. C. recebem, e nem, das refutações, será esta a melhor. Pareceu-nos conveniente que, para honra e defesa da A. C., procedesse de um leigo uma reivindicação clara e filialmente entusiástica dos direitos do Clero, e, implicitamente do Episcopado. Assim se demonstrará, com a eloqüência dos fatos, que a A. C. é, e quer continuar a ser, entusiasticamente dócil à Autoridade, e que as singularidades doutrinárias, que refutamos, encontrarão unidos a Hierarquia e os fiéis na mesma repulsa. Nenhum espetáculo pode ser mais conforme às conveniências do decoro da Igreja e da reputação da Ação Católica.

Como se vê, este livro não foi escrito para ser um tratado sobre a A. C., destinado a dar uma idéia geral e metódica sobre o assunto. É ele, antes, uma obra feita para dizer o que a Ação Católica não é, o que ela não deve ser, o que ela não deve fazer. Assumimos voluntariamente esta penosa tarefa, já que os mais ingratos encargos são os que, com maior amor, devemos abraçar na Santa Igreja de Deus.

Espírito com que o escrevemos

Porque chamamos a nós este penoso encargo? Entre as múltiplas razões que nos decidiram a isto, figura a esperança de afastar do erro tantos entusiasmos, que se extraviaram; tanto zelo, que se desperdiça; tantas dedicações, que nos causariam a mais ardente satisfação, se fossem postas ao serviço da ortodoxia. É, pois, com palavras de amor que terminamos esta introdução. Ainda que os cardos nos dilacerem as mãos, ainda que recebamos só ingratidão da parte daqueles a quem quisemos estender, por entre os espinhos dos preconceitos, o pão da boa doutrina, de tudo nos daremos por amplamente compensados, se o valor do sacrifício, que fizemos, for aproveitado pela Providência para a união de todos os espíritos, na verdade e na obediência: “ut omnes unum sint”.

*   *   *

Uma objeção que com verossimilhança se poderia fazer a esta obra consistia na possível exploração que os adversários da Igreja poderiam fazer a propósito dos extravios doutrinários de certos membros da A. C.

Mas um fato que certa vez nos narrou S. Excia. Revma. o Sr. D. José Gaspar de Afonseca e Silva, Arcebispo de S. Paulo resolve com toda a clareza a dificuldade. Disse-nos o ilustre Prelado que, certa vez, um dos mais distintos sacerdotes franceses escreveu um artigo de jornal em que descobria graves lacunas em uma obra católica de sua Pátria. Rejubilou-se com isto um jornalista hostil à Igreja que apontou o fato como prova de que “estava morto o Catolicismo”. A isto respondeu com eloqüência o sacerdote, dizendo que o Catolicismo manifestaria fraqueza se pactuasse com os erros que se insinuassem nas fileiras de seu fiéis, mas que, pelo contrário, manifestava vitalidade, eliminando as escórias e impurezas doutrinárias que procurassem insinuar-se entre eles.

*   *   *

Verdades suaves, verdades austeras

Não quereríamos encerrar esta introdução sem um esclarecimento de importância capital. Os erros que combatemos no presente livro se caracterizam, em grande parte, por seu unilateralismo. Na doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo, apraz a muitos espíritos ver apenas as verdades doces, suaves e consoladoras. Pelo contrário, as advertências austeras, as atitudes enérgicas, os gestos por vezes terríveis que Nosso Senhor teve em sua vida costumam ser passados sob silêncio. Muitas almas se escandalizariam – é este o termo – se contemplassem Nosso Senhor a empunhar o azorrague para expulsar do Templo os vendilhões, a amaldiçoar Jerusalém deicida, a encher de recriminações Corozaim e Bethsaida, a estigmatizar em frases candentes de indignação a conduta e a vida dos fariseus. Entretanto, Nosso Senhor é sempre o mesmo, sempre igualmente adorável, bom e, em uma palavra, divino, quer quando exclama “deixai vir a mim os pequeninos, porque deles é o Reino dos Céus”, quer quando, com a simples afirmação “sou Eu”, feita aos soldados que O iam prender no horto das Oliveiras, se mostra tão terrível que todos caem por terra imediatamente, tendo a voz do Divino Mestre causado não só sobre suas almas, mas ainda sobre seus corpos, o mesmo efeito que a detonação de algum dos mais terríveis canhões modernos. Encanta a certas almas – e como têm razão! – pensar em Nosso Senhor e na expressão de adorável meiguice de sua Divina Face, quando recomendava aos discípulos que conservassem na alma a inocência imaculada das pombas. Esquecem, entretanto, que logo depois Nosso Senhor lhes aconselhou também que cultivassem, em si, a astúcia da serpente. Teria a pregação do Divino Mestre tido erros, lacunas, ou simplesmente sombras?

Unilateralismo perigoso

Quem poderia admiti-lo? Expulsemos para muito longe de nós toda e qualquer forma de unilateralismo. Vejamos Nosso Senhor Jesus Cristo como no-lo descrevem os Santos Evangelhos, como no-lo mostra a Igreja Católica, isto é, na totalidade de seus predicados morais, aprendendo com Ele, não só a mansidão, a cordura, a paciência, a indulgência, o amor aos próprios inimigos, mas ainda a energia por vezes terrível e assustadora, a combatividade desassombrada e heróica, que chegou até o Sacrifício da Cruz, a astúcia santíssima que discernia de longe as maquinações dos fariseus e reduzia a pó suas sofísticas argumentações.

Este livro foi escrito precisamente para – na medida de suas poucas forças – restabelecer o equilíbrio rompido em certos espíritos, a respeito deste complexíssimo assunto. Mas antes de reivindicar para as verdades austeras, para os métodos de apostolado enérgicos e severos, tantas vezes pregados pelas palavras e exemplos de Nosso Senhor, o lugar que de direito lhes cabe na admiração e na piedade de todos os fiéis, timbramos em afirmar claramente que, das verdades suaves e doces dos Santos Evangelhos se poderia dizer o que do Santíssimo Sacramento disse S. Tomás de Aquino: devemos louvá-las tanto quanto pudermos e ousarmos, porque não há louvor que Lhes baste.

Caráter desta obra

Assim, não se veja em nosso pensamento ou em nossa linguagem qualquer espécie de unilateralismo, de que nos livre Deus. Feito para combater um unilateralismo, não quereria este livro cair no extremo oposto. No entanto, como nem o espaço nem o tempo nos permitem escrever uma obra sobre o amor e a severidade de Nosso Senhor; como, por outro lado, as verdades suaves e consoladoras já são muito conhecidas, chamamos a nós apenas a tarefa mais ingrata e mais urgente, e escrevemos sobre aquilo que a fraqueza humana mais facilmente leva a massa a ignorar.

É em conseqüência desta ordem de idéias, e só dela que nos preocupamos exclusivamente com os erros que temos diante de nós, e não pretendemos defender aquelas das verdades “suaves” que os partidários destes erros aceitam... e exageram: é supérfluo lutar por verdades incontroversas.


 

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