Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Povo, massa e a influência da mídia

 

Catolicismo, N° 543, Março de 1996 (*)

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 Benção dos trigais no Arbois (França), por Jules Breton

"Povo e multidão amorfa ou, como se costuma dizer, massa, são dois conceitos diversos.

"O povo vive e move-se por vida própria; a massa é em si mesma inerte e não pode mover-se senão por um elemento extrínseco.

"O povo vive da plenitude da vida dos homens que o compõem, cada um dos quais - na sua própria situação e do modo que lhe é próprio - é uma pessoa cônscia de suas próprias responsabilidades e de suas próprias convicções. A massa, pelo contrário, espera o impulso que lhe vem de fora, fácil joguete nas mãos de quem quer que lhe explore os instintos e as impressões, pronta a seguir, sucessivamente, hoje esta, amanha aquela bandeira" (Pio XII, Radiomensagem de Natal de 1944).

 

Mineiros em greve na Sibéria

As desigualdades justas e proporcionadas partem de uma igualdade fundamental que existe entre todos os homens; negá-la é favorecer uma desigualdade desproporcionada, ou seja, uma desigualdade injusta.

Uma mensagem encontrada nas pirâmides, e escrita provavelmente por algum agente comercial do antigo Egito ao Faraó, dizia: "Ó Faraó, sou indigno de beijar teus pés, de beijar as patas dos cavalos que montas, beijo apenas o pó onde pisaram as patas de teus cavalos".

Um homem colocar-se abaixo de um cavalo, como indigno de beijar a pata do animal, porque foi montado por outro homem, é um exagero, um delírio que nega uma igualdade fundamental que existe entre os homens, e a partir da qual surgem as desigualdades. Chegar a este ponto de loucura é promover uma desigualdade injusta e desproporcionada, porque está fora da proporção que deve haver entre os homens em virtude dessa igualdade fundamental.

Devemos afastar desde logo a idéia de que, porque somos a favor das desigualdades, somos a favor de toda e qualquer desigualdade, ignorando a igualdade decorrente da própria condição humana, tão claramente presente no Evangelho e em toda a doutrina católica.

A massa é inimiga capital da verdadeira democracia

"Num povo digno de tal nome, todas as desigualdades decorrentes não do arbítrio, mas da própria natureza das coisas - desigualdades de cultura, de haveres, de posição social, sem prejuízo, bem entendido, da justiça e da mútua caridade - não são, de modo algum, um obstáculo à existência e ao predomínio de um autêntico espírito de comunidade e fraternidade. Mais ainda, longe de ferir de qualquer maneira a igualdade civil, elas lhe conferem seu legítimo significado; ou seja, que perante o Estado cada qual tenha o direito de viver honradamente a própria vida pessoal, na posição e nas condições em que os desígnios e disposições da Providência o colocaram."

"Em contraste com este quadro do ideal democrático de liberdade e de igualdade de um povo governado por mãos honestas e previdentes, que espetáculo oferece um Estado democrático entregue ao arbítrio da massa!

"A liberdade, enquanto dever moral da pessoa, transforma-se em pretensão tirânica de dar livre curso aos impulsos e apetites humanos, em prejuízo do próximo.

"A igualdade degenera em nivelamento mecânico, em uniformidade monocromática; o sentimento da verdadeira honra, a atividade pessoal, o respeito à tradição, à dignidade, numa palavra a tudo quanto dá à vida seu valor, pouco a pouco se vai soterrando e desaparece. E sobrevivem apenas, de um lado as vítimas iludidas do fascínio aparente da democracia, ingenuamente confundido com o próprio espírito de democracia, com a liberdade e a igualdade; e de outro lado os aproveitadores mais ou menos numerosos que tenham sabido, por meio da força do dinheiro ou da organização, assegurar em relação aos outros uma condição privilegiada e o próprio poder. " (Pio XII, Radiomensagem do Natal de 1944).

Exemplos da vida do povo

Houve tempo, e não estamos dele assim tão distantes, em que o processo de massificação havia atingido bem menos as cidades pequenas do nosso interior do que os centros populosos. A grande imprensa, o rádio, e mais próxima a nós, a televisão, influíam menos nas cidades pequenas do interior do que nas grandes metrópoles.

Estas cidades pequenas formavam sua opinião, em parte, ainda com base em princípios herdados da tradição católica. Formavam-na também em função dos acontecimentos que ali se passavam, das opiniões e das atitudes de pessoas que, por uma ou outra razão, tinham mais influência sobre aquela população. Tudo isto produzia como efeito uma certa resultante, que era o modo de pensar comum da maioria.

Outro ambiente em que muitas vezes se notavam as características de um povo eram os meios dos imigrantes que chegaram ao Brasil em fins do século XIX e começos do atual. Eles traziam costumes e hábitos das aldeias de onde vinham. Era gente que tinha opinião. O chefe de família tinha uma opinião que os outros analisavam bem, mas que não era necessariamente seguida. Com naturalidade, cada um formava sua convicção, e podia sair discussão, muitas vezes sobre a política da terra natal, com base em cartas de lá recebidas. A discussão, em alguns casos, era um tanto teatral, mas a ninguém espantava, e apresentava um aspecto muito pitoresco.

Tal vida orgânica que ainda havia na cidade pequena e entre os imigrantes era própria do povo. Esta é uma base sadia de vida social. A vida própria à nobreza e às elites tradicionais é semelhante a ela, embora com uma nota de maior elevação e com cultura e educação mais aprimoradas. O conjunto harmônico da vida em todos estes grupos forma uma nação que tem expressão e seiva, e não é um mero aglomerado de seres humanos.

Festa da Imigração Austríaca em Treze Tílias (Santa Catarina)

 

Exemplos de vida massificada

Quando se estabelecia numa cidade pequena o domínio dos grandes meios de divulgação, isto costumava criar uma tal influência sobre o povo, que este ficava inibido em sua saudável capacidade de refletir e ter uma opinião própria e inconfundível. Tendia a ser massa.

A massa não tem a iniciativa de pensar, fica esperando a publicidade escrita ou falada, e pensa de acordo com o que ela determina. Por aí se pode avaliar o prestígio que tiveram os grandes jornais, hoje aliás decrescente por outros fatores que não a retração do processo de massificação, mas sobre os quais não é o caso de se estender aqui.

Lembro-me do ambiente de massa existente décadas atrás numa repartição pública em dia de pagamento. A certa hora se via entrar uma fila de funcionárias, colocarem-se atrás dos guichês, e com um mesmo gesto - que não era comandado, mas era automático - abrirem ao mesmo tempo os guichês, fazendo o mesmo ruído. Em seguida apanhavam maços de dinheiro presos com elástico, tiravam os elásticos, molhavam os dedos numa esponja, e todas, com os mesmos gestos, começavam a pagar.

Ali não se falava, quase não havia relacionamento humano, quem pagava e quem recebia tinha a mesma expressão de automatismo. Não se percebia o povo, era uma relação massificada.

Sem a influência da imprensa falada ou escrita, com pessoas acostumadas a refletir e formar convicção própria, a vida entraria até nesse relacionamento de guichês, porque entraria a propósito de tudo.

Onde a vida é sugada por determinados instrumentos - no caso que estamos considerando, o uso abusivo da mídia - o bem comum recebe um golpe do qual resulta uma ferida que muito dificilmente tem cura.

A democracia de povo e a democracia de massa

Um dos pontos importantes da doutrina social da Igreja é que as desigualdades justas, baseadas na virtude, na cultura, na condição social, nos haveres, devem existir numa verdadeira democracia.

Os revolucionários fizeram indevidamente do termo democracia uma espécie de palavra-talismã, cujo mero enunciado desperta uma constelação de conceitos aparentemente afins, como laicismo, igualdade total e compulsória e liberdade sem limites. Nesta democracia, a igualdade irá coarctar o desenvolvimento do povo, e a liberdade, degenerando em libertinagem, tornará quase compulsório o recurso a violentas medidas de força. Esta seria a democracia de massas.

Não é este o conceito de democracia constante na doutrina social da Igreja. Ele leva em conta as diferenças naturais existentes entre os homens. Nesta democracia o povo tem as condições para desenvolver a riqueza exuberante dos seus múltiplos e variados dotes. Ela comporta a existência da nobreza e das elites tradicionais, expressão aperfeiçoada da própria índole do povo. Esta seria a democracia de povo.

Cumpre lembrar que a Providência Divina criou a natureza humana com uma riqueza incomensurável de possibilidades e nela imprimiu uma lei, a lei natural. O desabrochar forte e legítimo dessas riquezas rumo à sua perfeição dá origem a sociedades e condições diversas, que não é lícito reprimir, sob pena de inibir o progresso humano saudável. O respeito e a honra devidos a cada pessoa, mesmo a mais modesta, relaciona-se com a situação que ela tem neste imenso tecido social, em última análise, desejado por Deus.

A sociedade de massas não leva em conta tais situações, nivela-as mecanicamente. Nela, a liberdade transforma-se, como diz Pio XII, na pretensão tirânica de dar livre curso aos impulsos. A igualdade mecânica estiola o desabrochar legítimo das desigualdades acidentais entre os homens. É para onde caminham os Estados contemporâneos, cujo eleitorado já tem tantas características de massa.

Tal situação decorre da adoção de conceitos errados sobre democracia, liberdade, igualdade, fraternidade. Enquanto eles tiverem vigência, não é possível encontrar solução para os problemas sociais, políticos e econômicos de nossa Pátria.

Nesses princípios de Pio XII sobre povo e massa, enunciados na Radiomensagem do Natal de 1944, fundam-se largamente os ensinamentos do Pontífice contidos nas alocuções ao Patriciado e à Nobreza romana. Com base neles, torna-se clara a alta missão que têm a nobreza e as elites tradicionais na vida dos Estados, mesmo em nossos dias, sejam eles monárquicos, aristocráticos ou democráticos.

A Visita (1875), de F. Defregger, retrata as qualidades de alma do povo do Tirol (Áustria)


(*) Excertos de conferência pronunciada pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira para sócios e cooperadores da TFP, em 9-11-92. comentando, a pedido destes, a obra de sua autoria Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana (Editora Civilização, Porto, 1992). Sem revisão do conferencista.


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