Capítulo VII

 

RUMO AO REINO DE MARIA

 

 

10. Interpretação do Apocalípse e milenarismo

 

 

 

 

 

 

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 Vitral do Apocalipse (catedral de Bourges, França)

A perspectiva de Fátima, centrada na ideia de um castigo da humanidade, e a visão monfortiana do Reino de Maria, baseada na ideia de uma era de triunfo para a Igreja, têm sido por vezes erroneamente definidas como "apocalípticas" e "milenaristas".

Com a palavra apocalíptica tende-se hoje a qualificar qualquer perspectiva escatológica que preveja uma catástrofe, mais ou menos iminente, no curso da história. A palavra milenarismo, pelo contrário, diz respeito, de maneira genérica, à previsão de um "período áureo" para o futuro da humanidade. Nesta acepção muito ampla, os dois termos acabam por abranger qualquer perspectiva relativa ao fim de uma época da humanidade e à instauração de uma nova civilização, para indicar genericamente uma disposição psicológica a uma transformação radical e à espera de uma "era nova" (101).

Estendem alguns essas acusações à teologia da história de Plínio Corrêa de Oliveira que, seguindo a escola de Fátima e de São Luis Maria, prevê um grande triunfo da Igreja e da Civilização Cristã, depois de uma crise metaforicamente definida, na linguagem quotidiana da TFP, como "bagarre". Entretanto, os termos apocalíptica e milenarismo, tão canhestramente utilizados nos nossos dias ficam esclarecidos, à luz da doutrina católica, quanto ao seu autêntico significado.

Milenarismo (102), ou quiliasmo, é, em sentido próprio, a doutrina escatológica segundo a qual Jesus Cristo reinará visivelmente na terra com seus eleitos por um período de mil anos entre uma primeira ressurreição dos Santos e a segunda, universal, no fim do mundo. Esta teoria, fundada sobre a interpretação literal de uma passagem do Apocalipse (103), foi sustentada nos primeiros séculos da Igreja por Padres gregos e latinos como Santo Irineu (104), São Justino (105) , Tertuliano (106), Lactâncio (107).

Santo Agostinho, que confessa ter sofrido a atracção milenarista, repele decisivamente este sistema no De Civitate Dei , bem como São Tomás na "Summa Theologica" (109). "Ainda que o quiliasmo não tenha sido catalogado como heresia –afirma o Padre Allo– o sentimento comum dos teólogos de todas as escolas é o de estar diante de uma doutrina "errónea" à qual alguns dos antigos Padres poderiam ter sido arrastados devido a certas condições das eras primitivas" (110).

O Santo Ofício, em decreto de 19-21 de Julho de 1944, afirmou que o milenarismo, mesmo mitigado, entendido como sistema segundo o qual "Cristo Senhor, antes do Juízo Final, virá de modo visível reinar nesta terra, com ou sem a ressurreição prévia da maior parte dos justos, (...) não pode ser ensinado sem perigo ("tuto doceri non posset")" (111).

Qualquer católico familiarizado em grau mínimo com a história da doutrina da Igreja pode facilmente compreender que o "milenarismo" constitui uma doutrina inconfundível e bem definida, bastante diferente da mensagem de Fátima e das teses de São Luís Maria Grignion de Montfort e de Plínio Corrêa de Oliveira.

Pelo contrário, pode-se falar legitimamente de uma "apocalíptica católica", se com esta expressão se entende a especulação teológica sobre o Apocalipse que, para qualquer cristão, é o livro profético e inspirado que fecha o Novo Testamento (112), Descreve a história futura, relacionando-a com o presente e abarcando o conflito de todos os tempos entre Jesus Cristo e o eterno adversário, até à "última perseguição que, na iminência do Juízo final, a Santa Igreja deverá sofrer em toda a terra, isto é, toda a Cidade de Cristo, de parte de toda cidade do demónio" (113).

"Porque então será grande a aflição, como nunca o foi, desde o princípio do mundo até agora, nem jamais será. E, se não se abreviassem aqueles dias, não se salvaria pessoa alguma; porém, serão abreviados aqueles dias em atenção aos eleitos" (114).

A história do género humano não se concluirá com uma apoteose que levará ao auge uma ascensão histórica irreversível, mas com uma catástrofe, uma tirania universal do mal. "Na tradição da filosofia da história própria ao Ocidente –observa um conhecido filósofo católico contemporâneo– o próprio fim do tempo tem um nome: domínio do Anticristo" (115). O Anticristo, comenta Mons. Antonino Romeo, "é o inimigo capital de Cristo", que no fim dos tempos "seduzirá muitos cristãos com prodígios satânicos e astúcias", antes de ser aniquilado por Cristo na Sua Parusia (116).

A vida cristã é, nesta perspectiva, invocação e "expectativa" da Parusia (117)  descrita no Apocalipse: a segunda vinda do Senhor "com poder e com glória" (118), para consumar o seu Reino messiânico, com a derrota do Anticristo e a instauração da Jerusalém celeste. A liturgia do Advento, como a da Páscoa, exprime a expectativa implorante desta vinda que incentiva os cristãos a "estar sempre prontos" (119).

"Com efeito –comenta o Cardeal Billot– basta abrir o Evangelho para admitir que a Parusia é de facto o alfa e o omega, o princípio e o fim, a primeira e última palavra de Jesus, que é a chave, a solução, a explicação, a razão de ser, a sanção desta; em suma, que é o acontecimento supremo ao qual todo o resto se refere e sem o qual todo o resto desaba e desaparece" (120).

Esta apocalíptica católica, sempre ensinada pela Igreja, nada tem a ver com o milenarismo antigo, nem com o moderno, cujas origens certos estudiosos localizam no pensamento de Joaquim de Flora, ou na deturpação deste.

Discutiu-se muito sobre a figura, ainda envolta numa sombra de mistério, do abade calabrês (121). Elaborou ele uma teologia da história em que, seguindo o esquema trinitário, distingue entre uma idade do Pai, iniciada com Adão, uma idade do Filho, que tem em Cristo a sua consumação, e uma terceira idade do Espírito Santo, anunciada por São Bento. O que nele ou na sua "posteridade" (122) é heterodoxo, não é a divisão trinitária da história, nem a espera de uma "idade nova", mas a negação, se realmente ocorreu, da unidade divina das Três Pessoas, da perenidade do Evangelho de Cristo e da missão salvífica da Igreja na "terceira idade". Segundo alguns estudiosos, procederia de Joaquim um processo de imanentização da escatologia cristã destinado a animar a utopia moderna de uma auto-redenção do homem (123).

O que é certo é que no século XIV se inicia uma apocalíptica que representa a antítese da teologia da história cristã. O milenarismo moderno desenvolve-se com a ala esquerda da Revolução protestante, a partir de Thomas Müntzer e dos anabaptistas, e propõe uma revolução terrena entendida como a instauração do Reino de Deus na ordem puramente temporal. A ideia humanista de "Renascença" (124), como a protestante de "Reformatio" (125), exprimem a expectativa escatológica de uma idade nova caracterizada pelo fim da Igreja católica e do Papado, frequentemente identificado com o Anticristo. Trata-se, mais que do milenarismo, de um "messianismo" que caracteriza as seitas do ambiente anglo-saxão e germânico, permeia as origens da filosofia moderna, e desemboca na Revolução Francesa (126). O mito do progresso, típico do século passado, o da sociedade sem classes marxista, o nacional-socialista do "Terceiro Reich" e o ecológico dos "verdes" (127) entroncam com este filão de messianismo laico: ele pressupõe a negação do pecado original e  da missão da Igreja e a "auto-redenção" da humanidade na história e através da história (128).

A oposição não poderia ser mais nítida: a escatologia cristã quer sacralizar a sociedade e a história ordenando-a a Deus; o messianismo laico quer uma implícita divinização do homem e das estruturas sociais para realizar o "Reino de Deus" sobre a terra, na sua absoluta perfeição (129).

Nada tem de comum com o milenarismo, a ideia de uma era histórica em que o Catolicismo atinja a sua plenitude, realizando a sentença e o desejo de São Paulo e dos grandes Pontífices deste século: "Instaurare omnia in Christo" (130).

Notas:

(101) Cfr. por exemplo Jean SÉGUY, "Millénarisme", in Catholicisme, vol. IX (1982), col. 158-165; id., "Sur l'apocalyptique catholique", in Archives de Sciences Sociales des Religions, n° 41 (1978), pp. 165-172.

(102) Sobre o milenarismo: cfr. os verbetes de H. LESÊTRE, in DB, vol. IV (1908), col. 1090-1097; Gustave BARDY, in DTC, vol. X (1929), col. 1700-1763; António PIOLANTI, in EC, vol. VIII (1952), col. 1008-1011; Maurilio ADRIANI, in ER, vol. IV (1972), col. 383-387. Cfr. também Ted DANIELS, "Millennialism: An International Bibliography", Garland, Nova York-Londres, 1992; "Il Millenarismo. Testi dei secoli I-II, de Carlo NARDI, Nardini Ed., Fiesole, 1995.

(103) Vi descer do céu um anjo que tinha a chave do abismo e uma grande cadeia na sua mão. E prendeu o dragão, a serpente antiga, que é o demónio e Satanás, e amarrou-o por mil anos; e meteu-o no abismo, e fechou-o e pôs selo sobre ele, para que não seduza mais as nações até se completarem os mil anos; e depois disto deve ser solto por pouco tempo. (...)" (Apoc. 20, 1-5).

(104)  S. Ireneo, Adversus Haereses, V, 32-35, in PG, vol. VII, col. 1210-1221.

(105)  S. Justino, Dialoghi con Trifone, 80-81, in PG, vol. VI, col. 664-669.

(106) Tertulliano, Adversus haereses, 5, 32, 1.

(107)  Lactâncio, De Divinis Institutionibus, VII, 24, in PL, vol. VI, col. 808.

(108)  Santo Agostinho, "De Civitate Dei", livro XX, cap. 7, in PL, vol. XLI, col. 667-668.

(109) São Tomás de AQUINO, "Summa Theologica", III, q. 77, art. 1, ad. 4.

(110)  E. B. ALLO, O.P., "Saint Jean, L'apocalypse", J. Gabalda et C., Paris 1933, 3a. ed., p. 323.

(111) AAS, vol. 36 (1944), p. 212; Denz-H, n° 3839. "0 decreto afirma, pois, que o milenarismo (ou quiliasma), mesmo mitigado ou espiritual, segundo o qual Cristo retornaria visivelmente à terra para nela reinar, antes do juízo universal, precedido ou não da resurreição de certo número de justos, esta doutrina não pode ser ensinada sem imprudência no que diz respeito à fé" (G. GILLEMAN, S.J., "Condamnation du millénarisme mitigé", in Nouvelle Revue Théologique, t. 67 (Maio-Junho de 1945), p. 240).

(112) Mons. A. ROMEO, "Apocalisse", in EC, vol. I (1948), col. 1600-1614.

(113)  Santo Agostinho, "De civitate Dei", livro XX, cap. 11.

(114) Mt. 24, 21-22.

(115) Josef PIEPER, "Sulla fine del tempo", tr. it. Morcelliana, Brescia, 1959, p. 113. No termo da história apresenta-se, segundo o Padre Pieper, a imagem de uma "pseudo-ordem mantida com o uso da força" (ibid., p. 121). O estado mundial do Anticristo será um estado totalitário em sentido extremo (ibid., p. 123).

(116)  A. ROMEO, "Anticristo", in EC, vol. I (1948), col. 1433 (col. 1433-1441). Cfr. também A. ARRIGHINI, "L'anticristo, la venuta e il regno del vicario de Satana", Fratelli Melita, Milão, 1988. Para uma recente meditação sobre o tema, cfr. Card. Giacomo BIFFI, "Attenti all'Anticristo! L'ammonimento profetico di V. S. Solovëv", Piemme, Casale Monferrato, 1991.

(117) J. CHAINE, "Parousie", in DTC, vol. XI (1932), col. 2043-2054; A. ROMEO, "Parusia", in EC, vol. IX (1952), col. 875-882.

(118)  Mt. 24, 30.

(119) S. Bernardo de CLARAVAL, "In adventu Domini" sermones VII, in PL, vol. 183, . col. 35-56.

(120) Card. Louis BILLOT S.J., "La Parousie", Beauchesne, Paris, 1920, p. 10.

(121) Sobre Joaquim de FLORA (1130-1202) e o joaquinismo a bibliografia é abundante. Cfr. os numerosos estudos dedicados por Mons. Giovanni DI NAPOLI ao abade calabrês: "La teologia trinitaria di Gioacchino da Fiore", in Divinitas, n° 3 (Outubro de 1976); id., "L'ecclesiologia di Gioacchino da Fiore", in Doctor communis, n° 3 (Setembro-Dezembro 1979); id., "Teologia e storia in Gioacchino", in "Storia e messaggio in Gioacchino da Fiore", Actas do Congresso Internacional de Estudos Joaquimitas (19-23 de Setembro de 1979), Centro di Studi Gioachimiti, S. Giovanni in Fiore, 1980, pp. 71-150. Cfr. também Marjorie REEVES, Beatrice HIRSCH-REICH, "The Figure of Joachim of Fiore", Clarendon Press, Oxford, 1972; Delno C. WEST e Sandra ZIMDARS-SWARTZ, "Joachim of Fiore: a Study in Perception and History", Indiana University Press, Bloomigton, 1983; Bernard McGINN, "L'abate calabrese Gioacchino da Fiore nella storia del pensiero occidentale", tr. it. Marietti, Génova, 1990.

(122) É preciso distinguir entre o abade calabrês e a sua "posteridade", da qual foram traçados itinerários filosóficos e literários que chegam até aos nossos dias. O Padre de Lubac que procurou estudar as pegadas do joaquinismo no decurso dos séculos, afirma que "a história da posteridade espiritual de Joaquim é também, e na maior parte, a história das traições ao seu pensamento" (Henri de LUBAC S.J., "La posterité spirituelle de Joachim de Flore", Lethielleux, Paris, 1978 (2 vols.), vol. I, p. 67. Cfr. também Marjorie REEVES-Warwick GOULD, "Joachim of Fiore and the Myth of Eternal Evangel in the Nineteenth Century", Clarendon Press, Oxford, 1987.

(123) Assim por exemplo Eric VOEGELIN, "The new Science of Politics. An Introduction", The University of Chicago Press, Chicago, 1987 (1952); id., "Les religions politiques" tr. fr. Editions du Cerf, Paris, 1994.

(124) Cfr. Harry LEVIN, "The Myth of the Golden Age in the Renaissance", Faber & Faber, Londres, 1969; Gustavo COSTA, "La leggenda dei secoli d'oro nella letteratura italiana", Laterza, Bari, 1972.

(125) Sobre a apocalíptica protestante, sobretudo entre as seitas inglesas do século XVII, cfr. Bernard S. CAPP, "Fifth Monarchy Men: a Study in Seventeenth Century English Millenialism", Bowman and Littlefield, Totowa, 1972; Eric RUSSEL CHAMBERLIN, "Anti-Christ and the Millennium", Saturday Review Press, Nova York, 1975; William B. BALL, "A Great Expectation: Eschatological Thought in English Protestantism", E. J. Brill, Leiden,1975; Paul CHRISTIANSON, "Reformers in Babylon: English Apocalyptic Visions from the Reformation to the Eve of the Civil War", University of Toronto Press, Toronto, 1978; Catherine FIRTH, "The Apocalyptic Tradition in Reformation Britain 1530-1645", Oxford, University Press, Nova York 1979; Robin BRUCE BARNES, "Prophecy and Gnosis: Apocalypticism in the wake of the Lutheran Reformation", Stanford University Press, Stanford,1988.

(126) Cfr. Renzo DE FELICE, "Note e ricerche su i "Illuminati" e il misticismo rivoluzionario" (1789-1800), Storia e Letteratura, Roma, 1960; Clarke GARRETT, "Respectable Folly Millenarians and the French Revolution in France and England", John Hopkins University Press, Londres, 1975; D. MENOZZI, "Millenarismo e rivoluzione francese", in Critica Storica, vol. 14 (1977), pp. 70-82.

(127) Cfr. Romolo GOBBI, "Figli dell'Apocalisse", Rizzoli, Milão, 1993, pp. 264-281.

(128)  Sobre a utopia moderna cfr. Walter NIGG, "Das ewige Reich", Artemis, Zürich, 1954; E. GILSON, "Les métamorphoses de la Cité de Dieu", Vrin, Paris, 1952; T. MOLNAR, "Utopia", cit.; Bronislaw BACZKO, "Lumières de l'utopie", Payot, Paris, 1978; Cfr. também Alexander CIORANESCU, "L'avenir du passé. Utopie et littérature", Gallimard, Paris, 1972.

(129) Cfr. Padre Reginald GREGOIRE, "Rapporti tra apocalittica medievale e messianismi laici odierni", in "Storia e messaggio in Gioacchino da Fiore", cit., pp. 225-244. O messianismo laico, observa o Padre Grégoire, "cria um sentimento de satisfação, de admiração pelo homem capaz de criar a própria felicidade no interior da mesma humanidade. O Absoluto não possui mais nenhum significado. É o apogeu do naturalismo" (ibid., p. 237). Este naturalismo encontraria a sua expressão não só no ateísmo político marxista e nazi, mas também nalgumas formas da "teologia da libertação" que procuram a realização puramente histórica do Reino de Deus. Sobre o milenarismo pós-medieval, cfr. também o verbete Chiliasmus IV de Richard BAUCKHAM in TRE, vol. 7 (1981), pp. 737-745.

(130)  Ef. 1, 10.

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