Capítulo III
9. Acendeu-se uma estrela na noite...
|
|
Em Janeiro de 1947 chegou, imprevista e inesperada, a notícia da elevação do P. Proença Sigaud a Bispo de Jacarezinho (99). Poucos meses depois, o P. António de Castro Mayer foi nomeado coadjutor de D. Octaviano Pereira de Albuquerque, Arcebispo de Campos (100). Os dois sacerdotes, postos de lado por causa do apoio dado ao grupo de Legionário e ao livro "Em Defesa da Acção Católica", viam-se agora honrados com uma manifestação de confiança da Santa Sé, que parecia ter o significado de uma reparação. Plínio Corrêa de Oliveira recordaria o episódio com estas palavras: "Ainda me lembro de um dia de Janeiro de 1947, em que noticiei aos meus amigos que, segundo uma emissora, Pio XII nomeara Bispo de Jacarezinho o P. Sigaud. Como? O quê? A nossa alegria era grande, mas a dúvida ainda maior. O P. Sigaud, durante o vendaval, fora mandado como missionário para a longínqua Espanha. Voltaria então? Sim, voltaria. E a nossa alegria subiu ao céu como um hino. Uma estrela acendia-se a brilhar na noite do nosso exílio, sobre os destroços do nosso naufrágio! "Contra todas as expectativas, outra alegria nos esperava no ano seguinte. Ao chegar eu, numa noite de Março de 1948, à nossa catacumba, um amigo esperava-me à porta, efervescente de júbilo. Contou-me que o Cónego Mayer, que passara durante a tormenta do alto cargo de vigário-geral da Arquidiocese para vigário do distante, e aliás tão simpático bairro de Belenzinho, acabava de nos comunicar a sua nomeação para Bispo-coadjutor de Campos. É inútil dizer com que exultação fomos no mesmo instante felicitá-lo" (101). Em 20 de Novembro de 1947 veio a lume a Encíclica Mediator Dei (102), sobre a sagrada liturgia. Visava corrigir os desvios do movimento litúrgico, desenvolvendo o ensinamento pontifício já iniciado com a Mystici Corporis (103). O Legionário saudou-a com júbilo, publicando na íntegra o texto do importante documento (104). No ano seguinte, na Constituição Bis saeculari (105), Pio XII formulava uma definição da "Acção Católica" que apresentava evidente analogia com a já exposta pelo Prof. Plínio. Desde 1947, face à tendência para nivelar as formas de apostolado, reduzindo-as unicamente à Acção Católica, o Pontífice tinha advertido que no "magnífico movimento mundial de apostolado leigo (...) é preciso evitar os erros de alguns que quereriam uniformizar as actividades em benefício das almas e submetê-las a uma fórmula comum" (106). Este modo de agir, insistia o Pontífice, é completamente alheio ao "espírito da Igreja" que "favorece certa multiforme unidade no exercício deste apostolado, dirigindo-o a uma meta comum mediante fraterna colaboração e unindo as forças de todos, sob a direcção dos bispos". Em nenhum texto de Pio XII se pode ler que a Acção Católica seja uma "participação" no apostolado hierárquico (107). "Este apostolado continua sempre apostolado dos leigos, e não se torna apostolado hierárquico, mesmo quando é exercido com um mandato da hierarquia" (108). Para evitar qualquer equívoco e ambiguidade, o Papa utilizou sempre o termo "colaboração". Contra o apostolado dos leigos visto como uma emancipação da Sagrada Hierarquia, afirmou Pio XII: "Ora, seria erróneo ver na Acção Católica (...) algo de essencialmente novo, uma mudança na estrutura da Igreja, um novo apostolado dos leigos que estaria ao lado do Sacerdote e não subordinado a ele. Sempre houve na Igreja uma colaboração dos leigos no apostolado hierárquico, subordinado ao Bispo e àqueles aos quais o Bispo tenha confiado as responsabilidades do zêlo pelas almas sob a sua autoridade. A Acção Católica quis dar a esta colaboração somente uma nova forma e organização acidental para o seu melhor e mais eficaz desempenho" (109). "Ultimamente começou a surgir daqui e dali e a difundir-se largamente a assim chamada teologia leiga, e introduziu-se uma particular categoria de teólogos leigos, que se professam independentes. (...) Em sentido contrário, é preciso fixar isto; nunca houve, não há e nunca haverá na Igreja um legítimo magistério de leigos, que Deus subtraia da autoridade, da direcção e da vigilância do sagrado Magistério; pelo contrário, a própria negação da submissão oferece argumento convincente e seguro de que os leigos, que falam e agem assim, não são guiados pelo Espírito de Deus e de Cristo" (110). Contra a atribuição do poder sacrificial aos leigos, o Papa ressaltou que: "É o Sacerdote celebrante e somente ele que, representando Cristo, opera o sacrifício; não o povo, nem os clérigos e nem mesmo os Sacerdotes que, com religiosa piedade, assistem ao celebrante, ainda que todos estes possam participar e participem, de alguma forma, activamente no sacrifício. A participação dos fiéis no sacrifício eucarístico –assim advertimos na nossa Encíclica Mediator Dei sobre a Sagrada Liturgia– não implica outrossim um poder sacerdotal. (...) Com efeito, não faltam aqueles que reivindicam um poder sacrificial no sacrifício da missa a todos aqueles que a ela assistam piedosamente. (...) É preciso fixar firmemente que este sacerdócio comum de todos os fiéis, embora seja elevado e arcano, difere não apenas em grau, mas também essencialmente, do verdadeiro sacerdócio, que consiste em poder operar o sacrifício do próprio Cristo" (111).
Como a encerrar o período de ostracismo, uma carta da Secretaria de Estado de 26 de Fevereiro de 1949, assinada pelo então Substituto Mons. João Baptista Montini, comunicava oficialmente a Plínio Corrêa de Oliveira o elogio e a benção de Pio XII pela sua obra "Em Defesa da Acção Católica" (112). O livro de Plínio Corrêa de Oliveira constituía uma resposta antecipada a muitas teorias erróneas e perigosas que iriam desenvolver-se nos anos sucessivos. Os desvios liturgicistas e laicistas incubados na Acção Católica explodiram por fim como um cancro no pós-Concílio, revelando uma nova concepção da própria Igreja. De resto, já naqueles anos, teólogos de vanguarda como os Padres Yves Congar (113) e Karl Rahner (114) esforçavam-se por extrair dos desenvolvimentos da "Acção Católica" uma nova "teologia do laicato" igualitária e que implicava o sacerdócio feminino (115). Notas: (99) Dom Geraldo de Proença Sigaud foi sagrado Bispo a 1 de Maio de 1947 pelo Núncio Apostólico. Nessa ocasião, Plínio comparou-o a grandes figuras do episcopado brasileiro como D. Vital e D. Duarte, "modelos de intrepidez e firmeza, de combatividade e de santa audácia". "Tudo se pode dele esperar em matéria de verdadeira e indomável grandeza de alma" (Plínio CORRÊA DE OLIVEIRA, "Dominus conservet eum", in O Legionário, n° 768, 27 de Abril de 1947). (100) Com a sua morte, em Janeiro de 1949, D. António de Castro Mayer tornou-se Bispo desta importante diocese do Estado do Rio de Janeiro. (101) Plínio CORRÊA DE OLIVEIRA, "Nasce a TFP", in Folha de S. Paulo, 22 de Fevereiro de 1969. (102) Pio XII, Encíclica Mediator Dei, 20 de Novembro de 1947, in AAS, vol. 39 (1947), pp. 521-595. Cfr. J. FROGER, "L'encyclique Mediator Dei", in La Pensée catholique, n° 7 (1949), pp. 56-76. (103) Pio XII, Encíclica Mystici Corporis, 29 de Junho de 1943, in AAS, vol. 35 (1943), pp. 193-248. Cfr. Plínio CORRÊA DE OLIVEIRA, "Mystici Corporis Christi", in O Legionário, n° 585 (24 de Outubro de 1943); Padre José Fernandes VELOSO, "O `liturgismo' condenado pelo Santo Padre Pio XII", in O Legionário, n° 612 (30 de Abril de 1944); Padre Ascânio BRANDÃO, "Falsos profetas", in O Legionário, n° 616 (28 de Maio de 1944). (104) Plínio CORRÊA DE OLIVEIRA, “Notas e comentários à Encíclica Mediator Dei", in O Legionário, n° 803 (28 de Dezembro de 1947). "A publicação da Enciclica Mediator Dei constitui assim, para todos nós, motivo de santo e vibrante júbilo" (Idem, "Fé, união e disciplina", in O Legionário, n° 800, 7 de Dezembro de 1947). O n° 803 foi o último número do Legionário sob a direcção de Plínio Corrêa de Oliveira; é provável que a publicação destes comentários da Mediator Dei tenha sido a gota que fez transbordar o copo, determinando a destituição do Prof. Plínio e da sua equipa. (105) Pio XII, Constitução Apostólica Bis Saeculari de 27 de Setembro de 1948. Cfr. Ludger BRIEN, S.J., "La constitution `Bis saeculari', texte et commentaire", Secrétariat National des Congrégations Mariales, Montréal 1961 (4a. ed.). Mons. A. de CASTRO MAYER, "A Constituição Apostolica Bis Saeculari Die. Repercussões jurídicas. Esclarecimentos doutrinários", (conferência pronunciada em Piracicaba, 9 de Dezembro de 1948), in "Las Congregaciones Marianas. Documentos Pontificios", Zaragoza 1953; cfr. também Fr. Juan Bautista M. FERRE, O.C., "Catolicismo o Capillismo", Emamevica, Madrid 1957; id., "La Acción Católica, Piedra de escandalo", Emamevica, Madrid 1958; Arturo ALONSO LOBO O.P., "Que es y que no es la Acción Católica", Impr. de Aldecoa, Madrid, 1950; id., "Laicología y Acción Católica", Studium, Madrid-Buenos Aires, 1955; Fr. Cyrillus B. PAPALI O.C.D., "De apostolatu laicorum", Teresianum, Roma, 1962, 2a. ed. (106) Pio XII, "Radiomensagem ao Congresso das Congregações Marianas em Barcelona", 7 de Dezembro de 1947. "É necessário prevenir o erro em que alguns, movidos pelo zelo do bem, podem cair, de querer uniformizar as actividades em benefício das almas e submetê-las todas a uma forma comum, com miopia de concepção de todo alheia às tradições e ao espírito suave da Igreja, herdeira da doutrina de São Paulo: `Há variedade de dons, mas o espírito é o mesmo' (I Cor., 12, 4). E, como nos exércitos da terra, armas e corpos diversos com a sua diversidade asseguram a harmoniosa cooperação comum que leva à vitória, da mesma maneira, junta a outras formas de zelo, por importantes e principais que sejam, a Igreja deseja e anima a existência de organizações de apostolado leigo, (...) que prosperem e se desenvolvam nas suas formas e métodos, sendo no exército de Cristo um belo exemplo da fecundidade do apostolado católico, manifestado em diversas obras e organizações, que trabalham todas intensamente sob a direcção e a protecção do Chefe supremo da Igreja" (ibid; cfr IP, vol. IV, "Il Laicato", cit., p. 488). (107) J.-G. DUBUC, "Les relations entre hiérarchie et laicat", cit., p. 56. (108) Pio XII, "Discurso ao II Congresso mundial para o apostolado dos leigos", 5 de Outubro de 1957, in DR, vol, XIX, p. 461. (109) Pio XII, "Alocução aos dirigentes da Acção Católica Italiana", 3 de Maio de 1951, in IP, vol. IV, Il Laicato, cit., p. 879. Cfr. também Pio XII, "Alocução ao Congresso mundial do apostolado dos leigos", 14 de Outubro de 1951, in IP, vol. IV, "Il Laicato", cit., pp. 913 ss. (110) Pio XII, "Alocução aos Cardeais e Bispos para a canonização de Pio X", 31 de Maio de 1954, in IP, vol. IV, "Il Laicato", cit., pp. 972 ss. (111) Pio XII, "Alocução aos Cardeais e Bispos", 2 de Novembro de 1954, in IP, vol. IV, "Il Laicato", cit., pp. 982 ss. (112) Eis o texto da carta enviada a Plínio Corrêa de Oliveira pela Secretaria de Estado em 26 de Fevereiro de 1949: "Preclaro Senhor. Levado por tua dedicação e piedade filial ofereceste ao Santo Padre o livro "Em Defesa da Acção Católica", em cujo trabalho revelaste aprimorado cuidado e aturada diligência. Sua Santidade regozija-se contigo porque explanaste e defendeste com penetração e clareza a Acção Católica, da qual possuis um conhecimento completo e a qual tens em grande apreço, de tal modo que se tornou claro para todos quão oportuno é estudar e promover tal forma auxiliar do apostolado hierárquico. O Augusto Pontífice de todo o coração faz votos que deste teu trabalho resultem ricos e sazonados frutos, e colhas não pequenas nem poucas consolações. E como penhor de que assim seja, te concede a Bençâo Apostólica. Entrementes, com a devida consideração me declaro teu muito devotado, J. B. Montini". O livro tinha igualmente recebido a aprovação de seis Arcebispos e quinze Bispos brasileiros (cfr. "Em Defesa da Acção Católica". Aprovações e encómios de autoridades eclesiásticas, São Paulo 1983). (113) Yves CONGAR, "Jalons pour une théologie du Laïcat", Cerf, Paris, 1953. (114) Karl RAHNER S.J., "L'apostolat des laïcs" tr. fr. in "Nouvelle Revue Théologique", vol. 78,1 (1956), pp. 3-32. (115) "Cada vez que uma pessoa está na posse legítima e habitual de qualquer parte de um poder litúrgico ou jurídico que ultrapassa o direito fundamental de cada baptizado, esta pessoa já não é leiga no sentido próprio do termo e não pertence mais ao simples `povo de Deus'. (...) No sentido estritamente teológico, uma mulher pode perfeitamente pertencer ao `clero', mesmo se a extensão do poder que ela receber for mais limitado do que no caso do homem" (K. RAHNER, op. cit., pp. 5-6). |