3. O “movimento litúrgico”
O "movimento litúrgico" do século XX
aparece-nos mais como um desvio do que como um desenvolvimento daquele outro
movimento litúrgico promovido no século precedente
pelo abade de Solesmes, D. Prosper
Guéranger (25). Este entendia a renovação da vida
monástica como um retorno à antiga liturgia romana tradicional, depois das
devastações operadas pelo protestantismo e, no seio da própria Igreja Católica,
pelo galicanismo e pelo jansenismo. O "movimento
litúrgico" (26), que se iniciou na Bélgica (27)
e teve o seu principal ponto de referência na abadia alemã de Maria Laach (28), foi, pelo contrário, entendido como uma
"irrupção dos leigos na participação activa na vida da Igreja" (29).
(25) Sobre Dom Prosper Guéranger (1805-1875) restaurador da vida monástica em França, cfr. D. Paul DELATTE O.S.B., "Dom Guéranger, Abbé de Solesmes", Plon-Nourrit, Paris, 1909, 2 vol. (2a. ed.) e recentemente Cuthbert JOHNSON O.S.B., "Prosper Guéranger (1805-1875): a liturgical theologian", Pontificio Ateneo S. Anselmo, Roma, 1984. Cfr. também F. FURQUIM DE ALMEIDA, "D. Guéranger, um douto na Lei Divina", in Catolicismo, n° 66 (Junho de 1956) e os verbetes de B. HEURTEBIZE, in DTC, vol. VI (1920), col. 1894-1898 e de Jacques HOURLIER, in DSp, vol. VI (1967), col. 1097-1106.
(26) Sobre o "movimento litúrgico", cfr. Olivier ROUSSEAU, "Histoire du mouvement liturgique", Ed. du Cerf, Paris, 1944; Didier BONNETERRE, "Le Mouvement liturgique", Editions Fideliter, Escurolles 1980; B. NEUNHEUSER, "Movimento liturgico, in "Nuovo Dizionario di liturgia", D. SARTORE - A.M. TRIACCA, Edizioni Paoline, Roma, 1984; Aa. Vv., "Liturgia: temi e autori. Saggi di studio sul movimento liturgico", de Franco BROVELLI, Edizioni Liturgiche, Roma, 1990. Obras como "Das christliche Kultmysterium" (1932) de D. Odo CASEL; "Vom Geist der Liturgie" (1918), "Liturgische Bildung" (1923), "Die Sinne und die religiöse Erkenntis" (1950) de Romano GUARDINI; "Liturgie und Persönlichkeit" (1933) de Dietrich von HILDEBRAND constituíram os pontos de referência do movimento.
(27) No congresso das
associações católicas inaugurado em Malines em 1909
pelo Cardeal Mercier, D. Lambert
Beauduin (1873-1960), beneditino de Mont César, tinha sido o primeiro a sustentar uma nova
visão horizontal e "comunitária" da liturgia (B. FISCHER, "Das `Mechelner Ereignis"' de
23.9.1909, in Liturgisches Jahrbuch, 9 (1959), pp. 203-219). Foi ele também um dos
principais pioneiros do "movimento ecuménico".
(28) Na abadia de Maria Laach, reencontram-se unidos o Abade Herwegen
e os seus monges K. Mohlberg e O. Casel,
com o jovem Sacerdote ítalo-alemão R. Guardini e os professores J. Dülger
e A. Baumstark. Pelo seu impulso, em 1918, tiveram
início as três colecções Ecclesia Orans,
Liturgiegeschichtliche Quellen,
Liturgiegeschichtliche Forschungen.
(29) Erwin ISERLOH, "Il Movimento liturgico" in HKG, tr. it.
vol. X/1 (Milão, 1980), p. 237.
Os reformadores tendiam a suprimir a substancial diferença entre o
sacerdócio sacramental dos padres e o sacerdócio comum dos leigos, propondo uma
visão igualitária e democrática da Igreja. Insinuavam a ideia de uma "concelebração" do sacerdote com o povo (30);
sustentavam que se devia "participar" activamente na Missa,
dialogando com o sacerdote, com exclusão de qualquer outra forma de legítima
assistência ao Santo Sacrifício, como a meditação, o terço ou outras orações
privadas; propugnavam a redução do altar a uma mesa; consideravam a comunhão "extra
missam", as visitas ao Santíssimo Sacramento, a
adoração perpétua, como formas extra-litúrgicas de
piedade; manifestavam escassa consideração pelas devoções ao Sagrado Coração, a
Nossa Senhora, aos Santos e, de modo geral, pela espiritualidade inaciana e pela doutrina moral de Santo Afonso de Ligório. Tratava-se, numa palavra, de uma "re-interpretação" da doutrina e da estrutura da
Igreja, com o fim de as adaptar ao espírito moderno.
(30) Tal princípio,
condenado pelo Concilio de Trento (sessão 23, cap. 4,
in Denz.-H, n° 1767) foi
novamente proscrito por Pio XII (Encíclica Mediator
Dei, in AAS, vol. 39, p. 556).
O P. Ariovaldo José da Silva, que traçou uma
documentada história do "movimento litúrgico"
no Brasil, fixou a data oficial do seu aparecimento em 1933 (31). Naquele ano,
um monge beneditino procedente da Alemanha, D. Martinho
Michler (32), encarregado de leccionar um curso de
liturgia no Instituto Católico de Estudos Superiores, despertou, com as suas
aulas, o entusiasmo de alguns estudantes brasileiros (33). Formou-se, no seio
da Acção Universitária Católica (AUC) um Centro de Liturgia, cujos trabalhos se
inauguraram com um retiro para dezasseis jovens, promovido pelo Sacerdote
beneditino numa fazenda do interior do Estado do Rio. Foi aí que, a 11 de Julho
de 1933, se celebrou a primeira missa dialogada e versus
populum, no Brasil (34). Desde então, D. Martinho Michler começou a
dialogar a missa semanalmente com os universitários, no Mosteiro de São Bento,
no Rio. "Iniciava-se, assim, o Movimento Litúrgico
no Brasil" (35).
(31) José Ariovaldo DA SILVA, O.F.M., "O Movimento litúrgico no Brasil", Editora Vozes, Petrópolis, 1983. Cfr. também D. Clemente ISNARD, O.S.B.,
"Reminiscências para a História do Movimento Litúrgico
no Brasil", apêndice in B. BOTTE, O.S.B.,
"O Movimento Litúrgico. Testemunho e
recordações", Edições Paulinas, São Paulo, 1978,
pp. 208-209.
(32) Dom Martinho
Michler (1901-1969), foi beneditino em Neusheim, Maria Laach e Santo
Anselmo em Roma, recebendo a influência, além de Romano Guardini,
de D. Beauduin e de Odo Casel Cfr. d. C. ISNARD O.S.B., "O papel de D. Martinho Michler no Movimento
Católico Brasileiro", in A Ordem, n° 36
(Dezembro de 1946), pp. 535-545.
(33) Alceu Amoroso Lima, que
confirmou muito dever à influência de Michler (A.
AMOROSO LIMA, "Memórias improvisadas", Ed. Vozes, Petropólis
1973, p. 205), aí viu "uma grande luz para todos" (id., "Hitler
e Guardini", in A
Ordem, n° 36 (de Dezembro de 1946), p. 550). A esta influência não se subtraiu
outro intelectual católico brasileiro, Gustavo Corção,
que na sua obra autobiográfica "A Descoberta do Outro" (1944),
segundo o Padre José Silva "deixa transparecer a nítida influência das
ideias vitalistas de D. Martinho
Michler" (J. A. DA SILVA, O.F.M., "O
Movimento litúrgico no Brasil", cit., p. 48;
cfr. também A. C. VILLAÇA, "O pensamento católico no Brasil", cit.,
pp. 144-145).
(34) J. A. DA SILVA, O.F.M.,
"O Movimento litúrgico no Brasil", cit.,
pp. 41-42; d. C. ISNARD, O.S.B., "O papel", cit., pp. 535-539, que
recorda: "Na sala principal ele preparou um altar para a celebração da
missa. Mas, para grande surpresa nossa, em vez de encostar a mesa à parede,
colocou-a no centro da sala e dispôs um semicírculo de cadeiras, dizendo que ia
celebrar de frente para nós. Foi a primeira missa celebrada de frente para o
povo no Brasil!" ("Reminiscências", cit., p. 218). "Dom Martinho fez tudo isso com naturalidade, mas naquele
momento ele consumava uma revolução dentro de nós, quebrava um tabu, e nos
obrigava a segui-lo noutros passos que nos faria dar" (ibid.).
(35) J. A. DA SILVA, O.F.M.,
"O Movimento litúrgico no Brasil", cit., p.
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