Prof. Roberto de Mattei
In hoc signo vinces
|
||||||
Conferência do Prof. Roberto de
Mattei na Universidade de Verão das TFPs européias,
realizada em Gaming, na Áustria, em agosto de 2007. O texto em italiano foi publicado
pela
revista “Tradizione, Famiglia,
Proprietà”, Roma, ano 14, n. 1, março de 2008. A tradução
para o português não foi revista pelo conferencista. Os subtítulos são do
referido periódico italiano.
In
hoc signo
vinces
O sol começa a se por quando as tropas de Constantino
vêem repentinamente surgir no céu um grande sinal luminoso, com uma frase
chamejante:
In hoc signo vinces
(com este sinal vencerás). Eusébio de Cesaréia, o
primeiro grande histórico da Igreja recorda o acontecimento com estas palavras:
"Um sinal extraordinário aparece no céu. … quando o sol começava a
declinar, Constantino vê com os próprios olhos, no céu, mais acima do sol, o
troféu de uma cruz de luz sobre a qual estavam traçadas as palavras IN HOC
SIGNO VINCES. Foi tomado por um grande estupor e, com ele, todo seu
exército." (1)
O efeito sobre as tropas é impressionante. No exército
de Constantino há muitos cristãos. Estes viveram a última perseguição, a mais
terrível, a de Diocleciano, iniciada em 297 com o expurgo de todos os fiéis de
Cristo que faziam parte do exército. Os militares cristãos, que eram muito
numerosos nas armadas imperiais, foram postos em face de uma alternativa
radical: abandonar a sua religião ou o seu posto no exército. Houve quem
escolhesse a triste via da apostasia, mas muitos perseveraram e, deixado o
exército, emigraram para a Gália onde se arrolaram com Constâncio Cloro, o
único dos quatro tetrarcas que não aderira às
perseguições de Diocleciano. Isto significa que, no início do século IV, o
número de cristãos que enchiam o exército de Constâncio, situado nas
Gálias e na Britania, não era
irrelevante. Quando em 305 Constâncio morreu, em York, em uma expedição contra
os Picti e os Scoti, as
tropas tinham aclamado imperador Constantino, filho ilegítimo de Constâncio e
de Helena, futura imperatriz e futura santa, enquanto os pretorianos em Roma
proclamavam Massêncio imperador. Este último tinha
invocado os deus dos pagãos para lhes pedir a vitória. A Cruz aparecida no céu
era, sem sombra de dúvida, o símbolo dos cristãos. Os dois exércitos que ora se
defrontavam estavam conscientes que não eram forças meramente humanas que
estavam envolvidas no terrível entrechoque. Na noite, conforme narra
Lactâncio, Cristo aparece em sonho a Constantino,
“exortando-o a colocar aquele símbolo nos escudos dos soldados com aqueles
sinais celestes de Deus e a iniciar, pois, a batalha” (2).
Há momentos em que um homem pode mudar, com o seu
"sim" ou com seu "não", o curso da sua vida. E há momentos
em que desta escolha deste homem pode depender a sorte de povos e de nações
para os séculos vindouros. Aconteceu naquela noite de outubro ao filho de
Constâncio e Helena, chamado a decidir qual seria o destino do Império de Roma. Não sabemos o que se passou no coração de Constantino:
se a sua decisão foi fulminante ou se teve dúvidas e hesitações. Sabemos,
porém, que a manhã seguinte ele não só fez imprimir o monograma de Cristo nos
estandartes de suas legiões, mas que instituiu o Labarum,
o estandarte que teria substituído o da águia romana de Júpiter e que todos os
soldados doravante deveriam honrar.
A batalha se desenvolve com fúria. Constantino conseguiu rechaçar o exército rival com as costas para o Tibre, onde Massêncio tentou salvar-se com a fuga. Foi arrastado pelas águas e a sua cabeça foi levada ao vencedor, que subiu ao sólio imperial.
No dia 28 de outubro de 313 a Cruz triunfou vitoriosa
sobre o sangue e sobre a poeira do grande campo de batalha de
Saxa Rubra, onde o Tibre faz uma
grande curva, antes de costear a via Flaminia. O
lugar tomou o nome de Saxa rubra por causa da cor do
sangue vertido sobre as pedras. Aquele sangue — por primeira vez na história —
não foi apenas sangue cristão. Constantino não era cristão e não se torna cristão
naquela noite, mas responde afirmativamente ao convite de Cristo. Um ano
depois, a 13 de junho de 313, ele promulgou o Edito de Milão com o qual todas
as leis persecutórias emanadas em passado contra os cristãos ficavam abolidas e
o Cristianismo se tornava
religio licita no Império. Constantino é célebre por este edito que punha fim à
era das perseguições e abria uma nova época de liberdade para a Igreja. É
graças tal edito que se fala de “virada constantiniana”
na história da Igreja. E, entretanto, na vida de Constantino e na da Igreja, a hora
decisiva foi outra: aquela em que por primeira vez a Cruz de Cristo,
vexilla regis,
aparece sobre o campo de batalha, defendida pelas espadas dos legionários,
imposta pela força ao inimigo. Houve heréticos, como os montanistas,
que sustentaram a incompatibilidade do Cristianismo com as armas. não era este
o ensinamento do Evangelho e não era esta
a atitude dos cristãos, nos três primeiros séculos. Apesar das opiniões
em sentido contrário de Tertuliano, cujas posições
refletem a sua evolução rumo à heresia montanista,
nenhum ato do Magistério proibira o serviço militar no curso dos três primeiros
séculos. Pelo contrário, é sabido que nesse período histórico muitos cristãos
serviram como oficiais ou soldados nas legiões romanas, conciliando a dúplice
característica de cristãos e de militares, sem que a Igreja lhes dirigisse
qualquer reprovação por tal motivo: muitos destes foram, pelo contrário,
canonizados.
Os oficiais e soldados cristãos que foram martirizados
nessa época não foram ameaçados de morte por haver recusado, como cristãos, de
servir no exército, mas por haver recusado de participar de cerimônias pagãs
impostas pelos perseguidores, ou seja por haver recusado de praticar atos de
idolatria e de apostasia. Tal é o exemplo de Santo Eustáquio,
de São Sebastião, dos legionários da XII Fulminata
sob Marcos Aurélio, e de São Maurício e da Legião Tebana,
sob Diocleciano.
O Cristianismo ensinava que era possível ser bons
cristãos e bons soldados: era possível servir com as armas uma autoridade que
era reconhecida como legítima, mesmo quando perseguia a fé. Mas a aparição da
Cruz a Constantino significava algo a mais: pela primeira vez na história,
aparecia um exército cristão; um exército de homens não todos cristãos, mas
dispostos a combater em nome de Cristo.
Pela primeira
vez a Cruz não somente o símbolo do sofrimento no martírio: tornava-se o
símbolo do sofrimento na luta. Era o próprio Cristo que pedia a Constantino e
às suas legiões de combater e pedia de combater em seu nome: pode-se combater,
pois, em nome de Deus, quando a causa é justa, quando a guerra é santa, quando
o próprio Deus o quer, como tantas vezes aconteceria ao longo da História. A batalha de Saxa Rubra não
demonstra apenas a legitimidade do combate cristão. O monograma de Cristo
estampado no lábaro de Constantino exprimia a teologia política do Evangelho,
resumia a máxima Non est
potestas nisi a
Deo – não há
autoridade que não venha de Deus (Rom. 13, 1.) O monograma de Cristo
imprimia um caráter sacro no estandarte imperial, continha em si toda a
Civilização Cristã da Idade Média.
O monograma de Cristo estampado no lábaro imperial e
as palavras in hoc signo vinces,
que estimulava à luta, continha a história dos séculos futuros: o ideal de
Santo Ambrósio e de Teodósio de construir um Império
romano cristão; a realização do Santo Império, em 800 depois de Cristo, com a
coroação de Carlos Magno, pai e fundador da Cristandade medieval. Nos
cerimoniais de coroações imperiais e reais que sucederam a de Carlos Magno, o
soberano recebe do consecrator
não só a coroa mas também a espada:
Accipe
gladium de altare
sumptum; a espada é santa como o altar da qual foi
pega. O soberano deve brandi-la vigorosamente para demonstrar a própria decisão
de defender a Igreja contra os inimigos externos e internos que a agridam. Foi com este espírito que nasceram as Cruzadas,
empreendidas para defender e reconquistar os Lugares Santos. O brado de
Deus vult que
ressoou no campo das cruzadas evoca o de Saxa rubra:
in hoc signo
vinces. “Ao lançar o apelo às Cruzadas – escreve o cardeal Castillo
Lara –, ao animar os soldados tomando-os sob a sua direção, os pontífices nunca
se puseram o problema da incongruência da guerra com o espírito da Igreja, nem
se perguntaram se tinham direito de organizar exércitos e lançá-los contra os
infiéis […] Os Papas, conseqüentemente, não só não o consideravam ilícito, mas
pelo contrário tinham consciência de exercer de tal modo um poder que lhes era
próprio: o supremo poder de coação material”. (3) Nas cruzadas a
Igreja exercita a potestas gladii
ecclesiastica, o poder de coerção não só espiritual,
mas também material, que emana da sua natureza jurídica de
societas perfecta, independente de qualquer
autoridade humana. Do caráter de sociedade perfeita que lhe é próprio deriva
para a Igreja, pleno jure, o poder de coação, seja no plano espiritual como no
material. As cruzadas constituem uma expressão histórica desse direito da
Igreja de usar a força material para conseguir o seu fim sobrenatural.
O professor Jonathan Riley-Smith,
mestre do renovamento dos estudos sobre as cruzadas,
em um ensaio publicado em 1979 sob o título de
Crusading as an Act of
Love (4), a “Cruzada como ato de amor”, recorda a bula
Quantum praedecessores,
de 1° de dezembro de 1145, com a qual o Papa Eugenio III, referindo-se àqueles
que responderam ao apelo da primeira cruzada, afirma que estes estavam
“inflamados pelo amor da caridade”, e à caridade, ao amor de Deus, faz remontar
a motivação profunda desta empresa.
Oferecer a própria vida é a maior forma de amor e o
mais perfeito ato de caridade, pois nos faz perfeitos imitadores de Jesus
segundo as palavras do Evangelho, segundo as quais “ninguém tem amor maior do
que quem dá sua vida por Ele e por seus irmãos" (Jo.
3, 16; 15, 13). Este testemunho é comum aos mártires e aos cruzados. Se o
martírio é o ato com o qual o cristão está disposto a sacrificar a sua vida
para preservar a própria fé, a cruzada se afigura, nas suas motivações mais
profundas, como o ato com o qual cristão está disposto a oferecer a própria
vida, para o bem sobrenatural do próximo, defendendo-o com o seu combate. Nos
cruzados, a perspectiva do martírio é inerente ao signum
super vestem: a Cruz vermelha sobre a veste branca. Aquela mesma Cruz, em
outubro de 312, apareceu no céu para indicar aos legionários de Constantino a
via da luta e da vitória.
Quando Marco Antonio Colonna, comandante da frota pontifícia na batalha de Lepanto, prestou juramento na capela papal, a 11 de junho de 1571, recebeu das mãos do Papa, além do bastão de comando, uma bandeira de seda vermelha. Sobre esta bandeira estava estampado Cristo crucificado entre os Príncipes dos Apóstolos Pedro e Paulo; sob eles havia o brasão de Pio V e como lema: In hoc signo vinces.
In hoc signo
vinces. Sob este emblema pode colocar-se a vida de
Plinio Corrêa de Oliveira,
entrado na História como "o cruzado do século XX” (5). A personalidade de Plinio
Corrêa de Oliveira foi sem dúvida multifacetada e
qualquer definição, também a de “cruzado” pode ser considerada redutiva. Sem
embargo a palavra "cruzado", mais do que qualquer outra se
adequa e, sob certo aspecto, resume a sua vocação.
Procurarei de oferecer alguns elementos de reflexão sobre este ponto.
Plinio Corrêa de
Oliveira quis um dia resumir o sentido da sua vida e da sua obra nestas poucas
palavras escritas de próprio punho:
“Quando ainda
muito jovem
considerei
enlevado
as ruínas da
Cristandade
a elas
entreguei meu coração
voltei as
costas ao meu futuro
e fiz daquele
passado carregado de bênçãos
o meu
porvir".
Para compreender estas palavras, para compreender a
grandeza da vocação de Plinio Corrêa de Oliveira,
pode-se meditar sobre um ponto que o Concílio Vaticano I definiu artigo de
nossa fé: a possibilidade, através da razão humana, de atingir a certeza da
existência de Deus e de acreditar nEle, seguindo um itinerário que ascende a
Deus através das coisas criadas (6), porque, segundo as palavras de São Paulo, "as perfeições invisíveis de Deus, desde
a criação do mundo, se tornaram visíveis à inteligência dos homens, por meio
dos seres que Ele mesmo fez" (Rom. I, 20). Poder-se-ia afirmar, por analogia, que existe a
possibilidade, para a alma humana, de conhecer e amar a Igreja, através de suas
obras e, in primis, através das perfeições da
Civilização Cristã da qual Ela é Mãe. A contemplação de uma catedral, a audição
de uma melodia gregoriana ou polifônica, a leitura de uma obra-prima como a
Divina Comédia ou os Lusíadas, infunde, na nossa alma a possibilidade de
compreender que todo belo, o bem e o verdadeiro produto do homem na história,
tem sua fonte sobrenatural na Igreja, definida por
Pio XII “princípio vital da sociedade humana” (7).
Nos anos em que o jovem Plinio
entrava na liça da vida, a Primeira Guerra Mundial arrastava os pilares da
sociedade cristã, mas quanto desta sobrevivia era suficiente para revelar ao
seu coração toda a sua grandeza. Esta grandeza era antes de tudo espiritual e
se alimentava na fonte da Graça, da qual a Igreja era Mãe e custodia. Contemplando as ruínas da Cristandade
Plinio Corrêa de Oliveira conheceu e amou profundamente a
Igreja e decidiu de servi-La. Do seu amor pela Igreja nasce a decisão de
defender a Civilização Cristã, combatendo com viseira erguida contra os seus
inimigos. “A combatividade cristã – escreveu – tem o sentido exclusivo de
legítima defesa. Não há para ela outra possibilidade de ser legítima. É sempre
o amor de alguma coisa ofendida que move o cristão ao combate. Todo combate é
tanto mais vigoroso quanto mais alto for o amor com que se combate. E, por isso
mesmo, não há, no católico, combatividade maior do que aquela com que ele luta
pela defesa da Igreja ultrajada, negada, calcada aos pés” (8).
Assim aconteceu com as cruzadas que foram empresas
defensivas, não agressivas, nascidas do amor para com a Igreja e a Civilização
Cristã. A Cristandade medieval viveu sempre em guerra de legítima defesa contra
os bárbaros que ameaçavam a Europa de norte a leste, e contra os muçulmanos que
a agrediam ao sul. Se uns e outros não tivessem violado as suas fronteiras, se
tivessem permitido a obra de evangelização dos missionários, se tivessem
respeitado os Lugares Santos, não teriam havido as cruzadas. Um novo inimigo
ameaça ora a Civilização Cristã: um processo destrutivo que remontava suas
raízes no humanismo renascentista e que se desenvolvera através das etapas
históricas do Protestantismo, da Revolução Francesa e do comunismo.
Plinio Corrêa de Oliveira engajou então uma guerra mortal
contra a Revolução anticristã que, depois da Primeira Guerra Mundial, tomava a
forma de dois “irmãos inimigos”: o comunismo e o nacional-socialismo. A voz da Cristandade, que ecoava com lamentações do
passado, ressoou profundamente no coração do jovem estudante de Direito da
Universidade de São Paulo, do jovem Presidente da Ação Católica paulista, do
jovem deputado da Assembléia Constituinte, do jovem diretor do
"Legionário". Plinio Corrêa de Oliveira
voltou as costas ao seu futuro e
“daquele passado carregado de bênçãos” fez o seu porvir. Em que sentido "o seu porvir” pode ser equiparado
ao de um “cruzado”? No fundo, poder-se-ia objetar, nenhuma cruzada foi pregada
pelos Papas no século XX e Plinio Corrêa de Oliveira
lutou, mas nunca empunhou as armas. Usou a pena, a palavra, o exemplo, mais
simples, sob certos aspectos, a um grande apologeta,
a um grande polemista, a um doutor da Igreja, mais bem que um cruzado.
A resposta a esta objeção é simples. Santo Agostinho
afirma que martyres non
facit poena, sed
causa (o que faz os mártires não é a pena, mas a causa) (9). Esta sentença
significa que o que torna o mártir tal não é a morte violenta, a dor sofrida,
mas a razão última do sofrimento e da morte: o fato que a morte seja infringida
em ódio à verdade cristã. Os mártires foram tais não pelos seus sofrimentos,
mas porque ofereceram a sua vida pela Igreja. Analogamente se poderia dizer que
o que torna a cruzada tal não é o uso das armas, não é o sofrimento da luta
armada, mas o próprio fim da empresa: o serviço da Civilização Cristã e,
através desta, da Igreja. A luta do cruzado é diretamente orientada à defesa da
Civilização Cristã, assim como o sofrimento do mártir está diretamente
orientado ao testemunho da verdade da Igreja.
Ninguém melhor do que Plinio
Corrêa de Oliveira instituiu, no século XX, o nexo íntimo e profundo que liga a
Civilização Cristã à Igreja. Ele compreendeu que a Revolução não é um processo
que, através da destruição da ordem temporal cristã, visa golpear a Igreja até
à morte, Ela que é o “Corpo Místico de Cristo, mestra infalível da Verdade,
tutora da lei natural e, deste modo, fundamento último da própria ordem
temporal” (10) . A Revolução visa impedir à Igreja a sua missão de salvação das
almas; missão que ela exercita não só com seu poder espiritual direto, mas
também no seu poder temporal indireto. A Contra-Revolução que surge em defesa
da Igreja “não está destinada a salvar a Esposa de Cristo” que “não tem
necessidade dos homens para sobreviver. Pelo contrário, é a Igreja a dar vida à
Contra-Revolução, que, sem ela, nem seria exeqüível, nem sequer concebível”
(11). “A Igreja é, pois, a própria alma da Contra-Revolução” (12).
A Igreja é, pois, uma força fundamentalmente
contra-revolucionária, mas não se identifica com a Contra-Revolução: a sua
verdadeira força está no ser o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo. Sem
embargo, o âmbito da Contra-Revolução ultrapassa, em um certo sentido, o
eclesiástico, porque comporta uma reorganização de toda a sociedade temporal a
partir dos fundamentos. “Se a Revolução é a desordem — afirma o pensador
brasileiro — a Contra-Revolução é a restauração da ordem. E por ordem
entendemos a paz de Cristo no reino de Cristo. Ou seja, a civilização cristã,
austera e hierárquica, fundamentalmente sacral,
antiigualitária e antiliberal” (13). Quem combate, afirma Santo Agostinho, não combate pela
guerra, combate pela paz (14), e a paz de quem combate por Cristo é a paz de
Cristo, realizada por uma sociedade integralmente cristã. Esta meta é expressa
pelo ideal da Realeza social de Jesus Cristo, cujo Reino não é deste mundo (Jo, 18, 36), mas a este mundo se estende, e neste mundo
inicia a realizar-se, porque somente a Cristo foi dado todo poder no Céu e na
Terra (Mt, 18, 28) (15).
Combater pela Civilização cristã significa combater
pela instauração de todas as coisas em Cristo (Ef. 1,
10). Restaurar em Cristo, segundo as palavras de São Pio X, “não só isto pertence à divina missão da
Igreja de conduzir as almas a Deus, mas também o que […] daquela divina missão
espontaneamente deriva: a civilização cristã no complexo de todos os elementos
individuais que a constituem” (16).
O que faz o cruzado tal é o fim, não os meios da luta.
não é o uso das armas, mas o propósito de combater para o Reino de Cristo a
formar um coração cruzado. Plinio Corrêa de Oliveira
foi o cruzado do século XX, porque toda a sua vida foi dedicada em defesa da
Civilização Cristã. Foi esta a sua especificidade, a sua essência, a causa da
sua santidade, porque foi neste serviço que as suas virtudes brilharam com
particular heroísmo. Foi este o fim que consagrou à sua última grande obra,
coroação de todas as outras, a fundação das TFP, em julho de 1960.
O bem-aventurado Urbano II não combateu em primeira
pessoa diante as muralhas de Jerusalém, mas pregou e infundiu o espírito
daquela Primeira Cruzada que foi o modelo de empresas análogas e sucessivas.
São Bernardo de Claraval não empunhou a espada, mas
transmitiu aos templários, mais do que a Regra de uma Ordem, o espírito das
ordens religiosas e militares que floresceriam na Cristandade.
Plinio Corrêa de Oliveira não defendeu com as armas a
Civilização Cristã, mas infundiu o espírito de luta a todos os
contra-revolucionários que deveriam defendê-la, também após a sua morte, dentro
e fora das TFPs.
Ele mesmo em maio de 1944 traçou, nas páginas de
"O Legionário” um primeiro balanço da sua vida, que figura quase como um
“testamento”, e ao mesmo tempo o programa de uma cruzada: “Antes de tudo, amamos sempre o Pontífice Romano. Não
houve uma palavra do Papa que não publicássemos, que não explicitássemos, que
não defendêssemos. Não houve um interesse da Santa Sé, que não reivindicássemos
com o maior ardor de que uma criatura humana seja capaz. Em nossas palavras, graças
a Deus, nenhum conceito, nenhum matiz que destoasse do Magistério de Pedro em
uma só virgula, em uma só linha sequer. Fomos em toda a linha os homens da
Hierarquia, cujas prerrogativas defendemos com ardor extremo, contra as
doutrinas que pretendem arrancar ao episcopado e ao clero a direção do laicato
católico. Não houve equívocos, nem confusões, nem tempestades que conseguissem
deixar em nosso estandarte a mais leve mácula neste ponto. Defendemos em toda
linha o espírito de seleção, de formação interior, de mortificação e de ruptura
com as ignomínias do século. Lutamos pela doutrina da Igreja contra os excessos
torvos do nacionalismo estatolátrico que dominou a
Europa; contra o nazismo, o fascismo e todas as suas variantes; contra o
liberalismo, o socialismo, o comunismo, e a famosa ‘politique
de la main
tendue’. Ninguém se ergueu em nenhuma parte do mundo contra
a Igreja de Deus, [sem] que o LEGIONÁRIO — dentro do âmbito evidentemente
limitado de suas possibilidades — não protestasse. Ao mesmo tempo, nunca
perdemos de vista a obrigação de alimentar de todos os modos a devoção a Nossa
Senhora, e ao Santíssimo Sacramento. Não houve uma só iniciativa católica
genuína, que não tivesse todo o nosso entusiástico apoio. Nunca a estas portas
bateu quem tivesse em mira apenas a maior glória de Deus, sem encontrar colunas
amigas e acolhedoras. Há nessa vida um bom combate a combater. Estamos
extenuados, sangramos por todos os membros. Foi nesse combate que nos cansamos,
que nos ferimos. Em compensação, não ousamos pedir como prêmio senão o perdão
de tudo quanto inevitavelmente tenha havido de falível e de humano nesta obra
que deveria ser toda para Deus, só para Deus ” (17). Foi em perfeita coerência com este espírito que em
janeiro de 1951 Plinio Corrêa de Oliveira inaugura o
primeiro número da revista “Catolicismo”, com um seu artigo não assinado, A
cruzada do século XX, destinado a se tornar um manifesto da Contra-Revolução
católica (18). É necessário reler estas páginas com atenção, meditando-as, como
se lêem os textos inspirados pela Graça, que não perdem a sua atualidade no
curso do tempo.
“E é esta nossa finalidade - escreveu -, o nosso
grande ideal. Caminhamos para a civilização católica que poderá nascer dos
escombros do mundo de hoje, como dos escombros do mundo romano nasceu a
civilização medieval. Caminhamos para a conquista deste ideal, com a coragem, a
perseverança, a resolução de enfrentar e vencer todos os obstáculos, com que os
cruzados marcharam para Jerusalém.” (19)
Estes palavras exprimem antes de tudo uma teologia e
uma filosofia da História. Quando Plinio Corrêa de
Oliveira escreveu, logo após a Segunda Guerra mundial, o mito dominante era
ainda o do progresso. A idéia de progresso, depois de haver constituído a alma
das principais correntes de pensamento europeu do século XIX — do liberalismo
ao socialismo — havia penetrado dentro da Igreja com o modernismo, cujas idéias fermentavam já
surdamente sob o pontificado de Pio XII. Após a morte deste Pontífice, o
pensamento católico seria dominado pelas teses progressistas de autores como
Jacques Maritain. Em seu livro Humanismo integral,
publicado em 1936, o filósofo francês afirmava a sua fé na irreversibilidade do
mundo moderno e do papel histórico que nele jogaria o marxismo. Naqueles mesmos
anos Plinio Corrêa de Oliveira previa o desabar do
mundo moderno e o fim do comunismo, ou melhor, a sua metamorfose, a tentativa
da Revolução de passar da hipertrofia do Estado à dissolução do Estado, do
Estado comunista ao comunismo sem Estado, da utopia do progresso ao reino do
caos: um processo por ele definido "Quarta Revolução".
A Revolução, porém, não teria vencido. Sob as ruínas
do mundo moderno sairia a Civilização Cristã do século XXI: "Caminhamos
para a conquista deste ideal, com a coragem, a perseverança, a resolução de
enfrentar e vencer todos os obstáculos, com que os cruzados marcharam para
Jerusalém.” Com palavras análogas, em seu último livro, publicado em 1993, dois
anos antes de seu falecimento, Plinio Corrêa de
Oliveira dirige aos nobres e às elites tradicionais, um apelo extremo à
cruzada.
“Se o nobre do século XX se conservar cônscio dessa missão — escreveu ele — e se, animado pela Fé e pelo amor a uma tradição bem entendida, tudo fizer para se desempenhar dela, alcançará uma vitória de grandeza não menor do que a dos seus antepassados quando contiveram os bárbaros, repeliram para além Mediterrâneo o Islã, e sob o mando de Godofredo de Bulhão derrubaram as portas de Jerusalém” (20). Também estas devem ser meditadas. Nelas encontramos o espírito de todos os combatentes cristãos que, a partir de Saxa Rubra, no curso dos séculos enfrentaram face-a-face o inimigo: colocaram toda a própria confiança em Deus, combateram e venceram.
In
hoc signo vinces.
É este e não outro o espírito da Mensagem de Fátima, que se conclui, no
Terceiro segredo, com uma visão no centro da qual campeia “uma grande Cruz de
troncos toscos como se fora de sobreiro com a casca”, aos pés da qual o
Santo Padre “foi morto por um grupo de
soldados que lhe dispararam vários tiros e setas, e assim mesmo foram morrendo
uns trás outros os Bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas e varias pessoas
seculares, cavalheiros e senhoras de várias classes e posições”. Uma cena que
evoca terríveis perseguições, mas também lutas cruentas, tendo ao fundo uma
cidade devastada que recorda as ruínas do mundo moderno das quais, segundo
Plinio Corrêa de Oliveira, nasceria a Civilização Cristã,
como das ruínas do mundo romano nascera a Civilização medieval.
A confiança nesta vitória recebeu um sigilo
sobrenatural pela mensagem de Fátima.
Plinio Corrêa de Oliveira não tinha ainda nove anos quando,
no extremo daquela Europa onde surgia o comunismo, a Santíssima Virgem, confiou
aos três pastorinhos da Cova da Iria
esta mensagem dramática, iluminada pelas palavras plenas de esperança: “Por fim
o meu Coração Imaculado triunfará".
As palavras de Nossa Senhora, como aquelas de Cristo a
Constantino, são hoje um sinal que se levanta no horizonte. A mensagem de
Fátima, como aquela de Saxa Rubra, é um apelo à luta
e ao triunfo da Civilização cristã, que Saxa Rubra
inaugurou na História e que Fátima promete de realizar no seu esplendor. Entre as condições requeridas por Nossa Senhora em
Fátima para a instauração de seu Reino encontra-se a consagração da Rússia ao
Seu Coração Imaculado. Consagrar significar ordenar e subordinar a Deus o homem
e a sociedade (21). A promessa do triunfo do Coração Imaculado exprime o ideal
da sacralização da ordem temporal, representado pela
Civilização Cristã que se submete inteiramente a Deus e reconhece a suprema
realeza de Jesus Cristo e de Maria.
A realização deste ideal se projeta em nosso futuro,
mas ao termo de uma luta cujo eco chega aos nossos corações proveniente de
séculos longínquos e que nos leva a afrontar duras provas, espirituais e
morais, mais do que físicas e materiais. “A vida da Igreja e a vida espiritual
de cada fiel — escreveu Plinio Corrêa de Oliveira
referindo-se a Santa Teresinha do Menino Jesus — são uma luta incessante. Deus
dá por vezes à sua Esposa dias de uma grandeza esplêndida, visível, palpável.
Ele dá às almas momentos de consolação interior ou exterior admiráveis. Mas a
verdadeira glória da Igreja e do fiel resulta do sofrimento e da luta. Luta
árida, sem beleza sensível, nem poesia definível. Luta em que se avança por
vezes na noite do anonimato, na lama do desinteresse ou da incompreensão, sob
as tempestades e o bombardeio desencadeado pelas forças conjugadas do demônio,
do mundo e da carne. Mas luta que enche de admiração os Anjos do Céu e atrai as
bênçãos de Deus.” (22) É esta a nossa luta hoje em curso e devemos
compreender o seu alcance, significado e meta. Somos os herdeiros daqueles que
um dia levaram com entusiasmo os escudos em Saxa
Rubra. Somos os herdeiros dos que desfraldaram a bandeira da Igreja nos campos
das cruzadas e nas águas de Lepanto. Somos e queremos
ser herdeiros do cruzado por excelência do século XX: Plinio
Corrêa de Oliveira. Queremos fazer nossa a sua batalha contra a Revolução.
Queremos fazer nossa a sua certeza sobrenatural na vitória final da
Contra-Revolução.
Como ele, nós não empunhamos armas materiais. A nossa
luta não é armada, mas pacífica, o nosso espírito de luta é mais intenso, mais
radical e mais determinado.
Nós somos os herdeiros de Plinio
Corrêa de Oliveira e em seu nome repetimos:
Notas:
1. EUSEBIO,
Vita Constantini,
37-40.
2. LATTANZIO, De mortibus
persecutorum, 16-17
3. CARD. ROSALIO CASTILLO LARA,
Coacción eclesiastica y Sacro
Romano Imperio, Pontificio
Ateneo Salesiano,
Augustae Taurinorum 1956, p. 115.
4. JONATHAN RILEY-SMITH Crusading
as an act of
love,“History. The Journal of Historical Association”, vol. 65,
n. 213 (february 1980), pp. 177-191. A obra foi
reproduzida em 2002 na antologia
The Crusades sob a direção de THOMAS MADDEN (Blackwell, Malden MA 2002).
5. ROBERTO DE MATTEI, Il
crociato del
secolo XX - Plinio Corrêa de
Oliveira, Piemme, Casale Monferrato
1996
6. DENZ-H, nn.
3004-3006.
7. PIO XII, Discorso
La elevatezza ai
nuovi cardinali
del 20 febbraio 1946.
8. PLINIO CORRÊA DE OLIVEIRA, Passio
Christi, conforta me, in “O Legionario” n. 637 (22 de
outubro de 1944).
9. SANT’AGOSTINO Enarrationes
in Psalmos, 34, 13, col.
331.
10. P. CORRÊA DE OLIVEIRA,
Rivoluzione e Contro-Rivoluzione,
Cristianità, Piacenza 1977,
p. 161.
11. Ivi, p. 162.
12. Ivi, p. 163.
13. Ivi, p. 125.
14. SANT’AGOSTINO, De Civitate
Dei, lib. 19, c. 12, 1.
15. Cfr. PIO XI
, Enciclica Quas Primas de
11-12-1925
16. S. PIO X, Enciclica
Il fermo
proposito de 11-6-1905.
17. P. CORRÊA DE OLIVEIRA, 17 anos, in “O
Legionário”, n. 616 (28-5-1944).
18. P. CORRÊA DE OLIVEIRA, A cruzada do
século XX, in “Catolicismo” n. 1 (janeiro de 1951)
19. Ivi.
20. P. CORRÊA DE OLIVEIRA,
Nobiltà ed élites
tradizionali analoghe
nelle allocuzioni
di Pio XII, Marzorati,
Milano 1993, p. 123.
21. S. AGOSTINO, De Civitate
Dei, lib. 10, c. 6.
22. P. CORRÊA DE OLIVEIRA, A verdadeira
gloria só nasce da dor, in “Catolicismo”, n. 78 (junho 1957). |