Plinio Corrêa de Oliveira

 

HISTÓRIA DA CIVILIZAÇÃO


1936


Colégio Universitário

anexo à Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo

 

 

 

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Parte XIV

Organização política medieval

 

A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é cópia ipsis litteris das apostilas para o curso de "História da Civilização". Portanto, os erros de ortografia, falta de palavras, eventuais acréscimos ou omissões são da responsabilidade de quem taquigrafou e datilografou ditas apostilas. Texto não revisto pelo Prof. Plinio.

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Fatores da Civilização Medieval

Os fatores da civilização medieval são três: o romano, o bárbaro e a Igreja Católica.

Fator romano - Com a palavra bárbaro, os romanos designavam todos os estrangeiros, qualquer que fosse o seu grau de cultura. Essa palavra não tinha então o sentido pejorativo que hoje se lhe atribui. Pelo contrário, podia ser aplicada a povos muito civilizados. Mas os historiadores modernos reservam essa palavra para as tribos selvagens que habitavam as margens ou matas do Reno e do Danúbio.

A luta sustentada pelo Império Romano contra os povos bárbaros foi multissecular. Se bem que árdua, ela redundou em vitória brilhante para os romanos, que conseguiram submeter a Gália e a Península Ibérica.

A evidente superioridade dos romanos deve-se principalmente à grande vantagem proporcionada por uma técnica militar perfeita, e às qualidades militares dos soldados romanos. Esses foram os elementos da vitória, que levaram os romanos a obter resultados tais, pois nem outros poderiam ser admitidos da ação metódica e inteligentemente desenvolvida por um grande povo contra as hordas bárbaras, desprovidas de todos os elementos de resistência que a civilização confere.

Atrás das penetrações militares romanas vinha a penetração cultural. Roma civilizou quase todo o território europeu de seu império. Particularmente nas Gálias a penetração cultural foi tão profunda, que uma indissolúvel união efetiva a ligava a Roma. As cidades gaulesas eram construídas em estilo romano. Copiava-se tudo de Roma, e nas casas dos grandes ricos falava-se o latim. Trajava-se, vivia-se e pensava-se à maneira de Roma, e muitas vezes os grandes ricos ocupavam em Roma altos cargos políticos.

Essa fusão completa levou para as Gálias e a Península Ibérica as duas influências que se entrechocaram em Roma: a corrupção moral do paganismo e, por outro lado, a Igreja Católica. Quando as hordas bárbaras investiram contra a Gália, Ibéria e Itália, encontraram uma dupla ordem de obstáculos: de um lado a organização política do Império Romano, com o seu quadro tradicional de grandes e pequenos funcionários; de outro lado a Hierarquia da Igreja Católica, com as suas dioceses governadas por bispos e paróquias governadas por párocos.

A conduta dos funcionários imperiais ante a pressão das hordas bárbaras foi a mais deplorável. Alguns procuravam reagir contra os bárbaros, aproveitando entretanto a oportunidade para se proclamarem soberanos independentes de Roma. Outros, pelo contrário, abandonaram qualquer veleidade de reação.

Assim, quer em virtude da rebelião traiçoeira dos pequenos monarcas improvisados, quer em virtude da fuga de outros que, todos eles, foram esmagados pelos bárbaros, quer ainda pela covardia dos que permaneceram fiéis, mas que não tiveram coragem de lutar, todo o império caiu em poder dos bárbaros, inclusive a própria Roma.

A civilização romana foi então desaparecendo, tanto na Gália quanto na Península Ibérica, como também no norte da África. Por toda parte o mato invadia as estradas abandonadas. E as intempéries destruíam aos poucos os teatros, os templos, as piscinas, os aquedutos e os palácios, sem haver quem tomasse conta da conservação desses monumentos públicos, cuidando de os reparar, porque não compreendiam as vantagens deles.

Assim, no território outrora culto e florescente do Império Romano, o embrutecimento dos espíritos havia sido tal, que a civilização romana desapareceu quase completamente, refugiando-se seus últimos monumentos literários nos mosteiros, à sombra do clero, a única classe social que cultivava ainda a vida da inteligência.

Fator bárbaros - Os povos bárbaros não invadiram o Império como numa simples incursão militar, mas com o intuito de fixarem ali a sua residência. Assumindo pela força a direção da sociedade, provocaram um tal embrutecimento que a Idade Média se iniciou com o mais pavoroso colapso de civilização, que a História registrou.

O que é o selvagem - Para que a extensão desse colapso possa ser medida, é necessário ter-se em conta aquilo que diferencia o selvagem do homem civilizado.

A total ignorância de tudo ou quase tudo o que constituiu a civilização cria no selvagem uma inadaptabilidade quase completa para a vida civilizada. Por isso muitos selvagens, como ainda em nossos dias se observa nas missões que levam a cabo a catequese dos nossos índios, não podem resistir à brusca transplantação de toda a sua existência para um ambiente plenamente civilizado.

Muitos sofrem com essa transplantação um dano irreparável em sua saúde. Os poucos dentre eles que sobrevivem ao choque, depois de viverem longos anos em uma vida civilizada fogem bruscamente. E o mesmo fato se dá, se bem que mais raramente, com os filhos de selvagens já catequizados, quando transplantados para um ambiente de grandes cidades. Essa inadaptabilidade resulta, em última análise, da oposição profunda existente entre os hábitos de um povo civilizado e os de um povo selvagem.

Hábitos dos povos bárbaros - Os bárbaros, singularmente parecidos sob alguns pontos de vista com os nossos índios, tinham hábitos que facilmente explicam o que acima ficou dito.

Em tempo de guerra, pintavam o corpo de modo a amedrontar o adversário. Com o mesmo objetivo, os homens de certas tribos atavam à cabeça crânios de animais selvagens. Uivando e silvando como animais, costumavam atacar os inimigos em hordas compactas, cujos componentes semi-embriagados executavam saltos ferozes. A certa distância, as mulheres cantavam melodias guerreiras, em que incitavam os combatentes a sacrificar suas vidas em defesa de sua nação.

Um dos hábitos dessas tribos era o chamado juízo de deus. Partindo do princípio verdadeiro de que Deus prefere o inocente ao culpado, concluíam eles erroneamente que em uma luta o vencedor tinha sempre a razão, porque sem a proteção divina ele não poderia ter vencido.

O processo para provar a inocência dos indivíduos, quanto a crimes de que eram acusados, também se inspirava na mesma ordem de idéias. Daí o fato de serem submetidos os acusados a certas provas, como por exemplo de caminhar, com os pés descalços, sobre metal incandescente, ou a de carregar durante certo tempo barras de metal incandescente. O direito penal consagrava também a obrigação de certas mutilações por certos crimes.

Frequentemente, a pena consistia no pagamento de certa quantia, existindo a esse respeito curiosas tabelas em certos povos bárbaros do norte da Europa, que especificavam o preço de um olho, de uma orelha ou de um braço, ou computavam o preço da vida de um rei, de um príncipe ou de um nobre, servindo como padrão o valor das vacas.

Certas tribos eram tão selvagens que, quando invadiram o Império Romano, não pousavam nas cidades, por se sentirem asfixiadas. Tinham grande cavalheirismo, grande respeito à mulher e irrepreensível hospitalidade.

De todos esses costumes bárbaros — como o duelo judiciário, torturas e penas corporais — se ressentiu durante muitos séculos a civilização.

Fator cristão ou Igreja Católica - Entre os dois perigos extremos que ameaçavam a humanidade — de um lado a corrupção requintada da civilização romana decadente, e do outro a barbárie devastadora das hordas invasoras — ergueu-se uma força que procurou reconstruir um mundo novo, aproveitando dos bárbaros a sua simplicidade e a relativa pureza de seus costumes, e dos romanos tudo quanto podia ser salvo no que se refere às conquistas culturais de sua civilização. Esse fator foi a Igreja Católica, inimiga irredutível da depravação moral que afetou a fundo a civilização romana.

Sofrera ela as mais duras perseguições, a despeito das quais cresceu de tal maneira que, quando Constantino lhe deu liberdade, ela apareceu à luz do sol, emergindo das catacumbas como uma das maiores forças da época. Isso não obstante, não lhe foi possível recolocar Roma na linha moral de suas primitivas virtudes, pelo que a decadência do Império se acentuou até chegar à catástrofe da invasão bárbara.

Mas se a Igreja não conseguiu estender sobre todo o mundo romano sua ação moralizadora, essa ação era admiravelmente vigorosa no que se refere aos que tinham entrado para a Igreja. Por isso, enquanto os governadores, os generais e os funcionários romanos fugiam por toda parte, desmantelando a organização do Estado, os bispos, vigários e fiéis permaneceram firmes nos seus postos. E a onda bárbara passou sobre eles sem os desorganizar.

A tarefa que a Igreja tinha a realizar consistia nos seguintes pontos:

1 - Moralizar, evangelizar, e portanto civilizar as hordas bárbaras;

2 - Nesta tarefa evangelizadora, aproveitar e desenvolver certas qualidades dos bárbaros, como por exemplo o respeito pelas mulheres, o espírito cavalheiresco e heroico, e sobretudo a sua grande capacidade realizadora, profundamente diversa do efeminamento dos romanos da decadência;

3 - Evitar, na medida do possível, que a corrupção romana contaminasse os bárbaros;

4 - Salvar da destruição completa todos os valores culturais e artísticos da civilização romana.

A tarefa de evangelização dos bárbaros se desenvolveu em duplo sentido:

1) a evangelização dos que haviam invadido o Império;

2) a penetração do apostolado por toda a Europa.

Como é óbvio, e a experiência sobre os selvagens dos nossos dias prova fartamente, é impossível elevar bruscamente os bárbaros de sua baixíssima condição à plenitude da civilização. Essa tarefa só alcançou resultado quando os que a ela se dedicaram compreenderam que ela devia ser gradual. A história da Idade Média, como veremos, é uma ascensão segura, profunda, e por isso mesmo relativamente lenta, de um mundo bárbaro a um alto grau de civilização.

O direito penal perdeu gradualmente seu primitivo rigor bárbaro, de tal forma que, se ele ainda conserva no fim da Idade Média muitos vestígios bárbaros, já é incomparavelmente mais civilizado do que as cruentas leis bárbaras. Interveio para isto, entre outros fatores de origem cristã, a preocupação da regeneração do criminoso, que nunca foi tão desenvolvida em épocas anteriores. Cumpre acrescentar que muitos aspectos do direito penal medieval, como por exemplo as penas corporais, foram computados como selvagens pelo sentimentalismo romântico da mentalidade liberal, mas hoje em dia são reputados oportunos por penalistas modernos.

Se a obra civilizadora dos bárbaros se fez em parte pela mitigação dos costumes, em grande parte também procurou a Igreja aproveitar a exuberância da atividade e de forças dos povos bárbaros, por meio de instituições que canalizaram para fins úteis à sociedade a violência dos bárbaros. Neste sentido foi característica a obra da cavalaria.

As origens históricas desta instituição foram muito discutidas. Mas é certo que, dando-lhe um caráter religioso, a Igreja fazia o novo cavaleiro jurar que se devotaria inteiramente à obra da defesa da Civilização Católica, quer pela manutenção da justiça e da equidade na vida diária dos povos cristãos, quer ainda na luta contra as grandes heresias que suscitavam largos movimentos de caráter revolucionário, quer finalmente na luta contra as agressões desferidas pelos pagãos e muçulmanos.

Assim, pois, a Igreja arranjou meio de transformar os mais turbulentos dentre os elementos bárbaros em mantenedores da ordem e paladinos da civilização. Isto se tornava particularmente meritório no tocante à cavalaria andante, cujos elementos, fazendo às vezes de advogados e policiais ao mesmo tempo, percorriam as cidades e os campos à procura de injustiças a reparar. Nesta obra eram eles obrigados a empregar, por um compromisso livremente assumido, o recurso da força, até mesmo com prejuízo da própria vida, e isto sem qualquer retribuição material.

Evangelização da Europa não romana - Não contente em instaurar uma civilização nova e cheia de seiva no território de um império sobre o qual tinha ruído a mais terrível das catástrofes, a Igreja, pela ação dos missionários, evangelizou toda a parte da Europa situada além dos limites romanos. A esses missionários se deve a integração da Europa Central, da Rússia, dos países escandinavos e de quase toda a Escócia, bem como da Irlanda, no mapa da civilização, que coincidia exatamente com o mapa dos territórios em que se realizaram os feitos missionários.

O feudalismo

O que foi o feudalismo - Para que os Srs. tenham uma idéia concreta do que foi o feudalismo, imaginem algum dos nossos fazendeiros, que, além de ser proprietário de uma extensa zona de terras, nessa zona exercesse os poderes de prefeito municipal, juiz, delegado e chefe militar. Evidentemente, esse fazendeiro seria, dentro de seus domínios, um verdadeiro rei em miniatura. Era análoga a esta a situação dos senhores feudais. Proprietários agrícolas, exerciam eles sobre suas terras todos os direitos inerentes à propriedade.

Ao exercício desses direitos se vieram acrescentar, pela ação de circunstâncias que adiante exporemos, outros direitos. Faziam eles leis para seus feudos, cobravam impostos, cunhavam moeda, fomentavam a vida econômica, declaravam guerra e faziam a paz, fortificavam o feudo, capitaneavam as forças deste em combate, e, de modo geral, exerciam funções governamentais das mais amplas. Entre tais funções, convém não esquecer as de juiz. Em outros termos, o senhor feudal encarnava, dentro do feudo, quase toda a autoridade do rei.

Origem do feudalismo - Não há unanimidade entre os historiadores a respeito do modo de explicar as origens do feudalismo. Dentre as várias hipóteses possíveis, alguns preferem umas, e outros optam por outras. Entretanto, parece-me mais acertado não ser tão exclusivista, e admitir que a maior parte destas possíveis causas se conjugaram para dar origem ao regime feudal.

Primeira causa - Em preleções anteriores, já tivemos ocasião de observar a terrível desorganização que se insinuou em toda a estrutura política e social dos povos europeus civilizados, em consequência da invasão dos bárbaros. Por toda parte a velha administração imperial romana se desarticulava e ruía. A administração pública caía a um nível difícil de se imaginar. Rompiam-se os aquedutos, desapareciam as estradas sob a vegetação que as invadia, desmoronavam os templos e os palácios, enchiam-se de escombros as praças públicas, e não havia quem, com ânimo resoluto e fecunda continuidade administrativa, soubesse pôr cobro a uma tal decadência.

Nessa desorganização geral, decorrente da influência bárbara, começou a Europa a sofrer desgraças de outro gênero. Os povos bárbaros tinham o hábito de se guerrearem uns aos outros incessantemente, fazendo do saque um meio de vida habitual. Invadindo a Europa romana, não perderam estes hábitos, e o sistema de pequenas guerras fragmentárias, de tribo para tribo, continuou a prevalecer entre os invasores, que assim traziam em um ambiente de guerras incessantes os povos de toda a Europa por eles ocupada. Um rei se via na obrigação de estar constantemente em guerra com seus vizinhos, pois do contrário seria abandonado por seus guerreiros, que não tinham interesse em servir a um senhor pacífico, que não proporcionasse a seus militares os lucros de sucessivos butins de guerra. Muitos reis, quando não se sentiam em condições de declarar guerra aos vizinhos, mas não querendo perder seus guerreiros, lhes davam carta branca para saquear esta ou aquela província. A tal aviltamento caiu, em consequência das invasões bárbaras, toda a Europa romana!

Não é inadmissível que esses sistemas estranhos e deploráveis de entreter tropas tenha concorrido para a formação do feudalismo. De fato, muito dos guerreiros a que eram assim entregues províncias inteiras prefeririam provavelmente, em lugar de as saquear, confiscar nelas propriedades, de boa mente cedidas pelos habitantes para evitar os horrores de uma devastação completa, e exercer aí um poder absoluto. Estava assim praticamente inaugurado o feudalismo.

Segunda causa - Também é muito provável que várias das tribos bárbaras que se estabeleceram no Império Romano, deixando seu modo nômade de viver, tenham começado a praticar a agricultura. Ora, estas tribos tinham cada qual seu chefe, que, evidentemente, se tornava a mais alta autoridade junto àquelas populações já então sedentárias.

Em tempo de guerra, o péssimo estado da conservação das estradas impedia ao chefe que mandasse sempre pedir socorros ao rei. O inimigo estava às portas de sua propriedade rural, e cumpria opor-lhe imediata defesa. Para tanto, a maior parte dos grandes proprietários rurais começou a construir fortificações, por detrás de cujas muralhas se abrigavam todas as populações circunvizinhas em caso de guerra, trazendo consigo seus tesouros, isto é, as cabeças de gado e os objetos de uso que pudessem transportar.

Evidentemente, os grandes proprietários rurais não se contentaram em servir de defensores dos vizinhos: exigiram deles, em troca desse importantíssimo serviço, uma compensação, que consistia em vínculos de dependência política e obrigações de caráter econômico. Assim, a autoridade do senhor feudal nascia da própria natureza das coisas, como consequência inelutável da desorganização do poder real por motivo das invasões bárbaras. Parece muito plausível que também esta causa tenha concorrido para gerar o regime feudal.

Terceira causa - Todo reino se divide em circunscrições territoriais, comumente chamadas províncias. Por várias circunstâncias, que seria por demais longo enumerar, certos soberanos do início da Idade Média sentiram a necessidade de tornar vitalícios os governadores de província, renunciando ao direito de lhes dar demissão quando entendessem. Mais tarde, esses governadores teriam conseguido tornar hereditários seus cargos. E assim vinham a constituir, sob a hegemonia da dinastia real, verdadeiras dinastias provinciais. Essas dinastias provinciais, que em geral eram constituídas por grandes proprietários agrícolas, vinham a ser as famílias feudais.

É evidente que também esta causa é de molde a gerar o feudalismo. Não me parece que qualquer dessas causas exclua inteiramente a outra. Elas se completam, como fatores que deram origem ao feudalismo.

A hierarquia feudal - Os proprietários dos grandes feudos também os desmembraram, em benefício de outros senhores. Este desmembramento tinha várias causas:

1 - O grande senhor feudal, pelo mesmo motivo que dificultava ao rei atender à defesa de todo o reino, também não podia atender à defesa de todo o seu feudo, e por isto o desmembrava, criando dentro dele feudos menores;

2 - Ao morrer, o grande senhor feudal deixava o feudo para o primogênito, legando entretanto para os outros filhos pequenos feudos, que desmembrava da herança do primogênito;

3 - Atendendo a necessidades financeiras, vendia seus direitos feudais sobre parte de suas terras a terceiros.

Seja como for, os senhores dos feudos assim desmembrados ficavam, perante o grande senhor feudal do qual tivesse sido desmembrado o feudo, como este grande senhor ficava perante o rei. Constitui-se pois uma hierarquia de senhores feudais, sujeitos uns aos outros. Daí a origem dos títulos de nobreza, que em ordem crescente são: barão, visconde, conde, marquês, duque, príncipe, sem falar em outros títulos intermediários, como os baronetes (Inglaterra), margraves e landgraves (Alemanha), arquiduques, grão-duques (Alemanha, Áustria, Rússia), etc.

Os grandes senhores eram diretamente sujeitos ao rei. Os pequenos senhores estavam sujeitos ao grande senhor, de cujo feudo seu feudo menor houvesse sido desmembrado. Finalmente, o pequeno senhor poderia ter ainda sujeitos a si senhores de uma graduação ainda menor, até atingir, em ordem decrescente, os mais baixos graus de nobreza.

Complexidade da hierarquia feudal - Entre os grandes senhores feudais (suseranos) e os pequenos senhores que lhes deviam dependência (vassalos), as relações nem sempre eram boas. De fato, nessa época em que as instituições ainda começavam a se delinear, em que os direitos e deveres recíprocos não tinham aquela nitidez e aquela fixidez próprias a sociedades perfeitamente organizadas, o modo de interpretar as relações de vassalagem e suserania era muito variável. Os vassalos entendiam muitas vezes seus deveres restritivamente, enquanto os suseranos tendiam a considerá-los de modo muito ampliativo. Não é difícil imaginar que essa situação tenha originado, em muitos casos, relações tensas de parte a parte.

Por outro lado, também as relações entre grandes senhores eram suscetíveis de criar dificuldades. Entre eles havia, evidentemente, rivalidades de interesses, e o hábito existente na primeira fase da Idade Média, de se guerrearem reciprocamente os senhores feudais como se fossem chefes de Estado independentes, acrescia a complexidade da situação.

Isto posto, evidentemente havia a tendência, por parte dos grandes senhores feudais, de se aliarem aos pequenos senhores que eram vassalos de seus rivais. Assim, podiam eles limitar o mais possível o poder dos rivais. Estes, por sua vez, não se embaraçavam: aliavam-se também aos vassalos do grande senhor com que estivessem em luta. Assim, a política feudal era complexa em extremo.

Política dos matrimônios - O modo de desenvolver um regime de alianças era, evidentemente, o casamento. Exemplifiquemos: os grandes senhores feudais A e B estão em luta. A tem um vassalo C, com quem vive em situação tensa. Tal vassalo, por sua vez, tem só uma filha, e não tem filhos. Convém muito a B casar seu primogênito com a filha de C. Assim, o primogênito de B adquirirá um feudo encravado em pleno coração das terras de A. E implicitamente poderá ter um foco de rebelião em território do adversário.

Por esse casamento, o filho de B tem uma dupla situação: 1) pelo feudo que herdar de seu pai, será um grande senhor feudal; 2) pelo feudo pequeno que herdar de seu sogro, será um vassalo de A.

"A" sente o golpe, e revida: casa seu filho com a filha de D, pequeno senhor feudal cujas terras estão encravadas no feudo de B. Assim, o primogênito de A será: 1) grande senhor feudal, pela herança de seu pai A; 2) vassalo do primogênito de B, pela herança do sogro D, com cuja filha o primogênito de A se casou. Em outros termos, os filhos de A e de B serão reciprocamente vassalos e suseranos.

Não é difícil perceber que complexidade este estado de coisas acarretou para a vida feudal. Essas combinações não se produzem só entre senhores feudais, mas também entre reis, que por um jogo de casamentos idêntico ao que acima ficou descrito se tornavam reciprocamente vassalos e suseranos uns dos outros.

Por aí se vê a influência preponderante que o casamento tinha na vida política de um senhor. Daí, para ele, um pesado tributo, que ele pagava aos interesses do público. Enquanto qualquer particular podia escolher sua esposa livremente, o senhor feudal devia escolher, não aquela que lhe fizesse a felicidade pessoal, mas aquela que mais conviesse à grandeza e prosperidade dos súditos residentes no feudo.

Para que os Srs. compreendam a que resultados fabulosos podia chegar essa política matrimonial, bastará que considerem que o maior império constituído no mundo foi certamente o da Casa d’Áustria, que culminou com Carlos V. Ora, a grandeza desse Império foi constituída muito mais pela abnegação de inúmeras gerações de príncipes e princesas, que se casavam segundo os interesses do Estado, do que pelo poder das armas. A tal ponto é isto verdade, que se conhece universalmente esta divisa, famosa na Áustria: "Gerant allia bella, tu felix Austria, nube!" - Que os outros façam guerras: tu, Áustria feliz, casa-te!"

Processo cruel para os príncipes, mas suave para os povos, de engrandecimento territorial!

Prerrogativas do senhor feudal - Há uma série de disposições próprias ao regime feudal, que a nós nos parecem sumamente irritantes e injustas, mas que compreenderíamos melhor e justificaríamos plenamente se conhecêssemos os fundamentos sobre os quais se baseiam.

O senhor feudal era, no feudo, a encarnação de toda a autoridade do Estado; e exercia, sem receber um tostão do rei, todas as funções públicas. Evidentemente, não poderia arcar com os ônus da administração, a não ser por meio de impostos, pois que estes sempre foram os meios normais de subsistência de todas as administrações, em todos os tempos, entre todos os povos.

Era o senhor feudal que deveria combater em tempo de guerra, levando ao rei o concurso de um certo número de homens. Como obtinha ele estes homens indispensáveis ao serviço da Pátria? A Idade Média não conheceu o serviço militar obrigatório, tal e qual o temos hoje. Por esta razão, a classe guerreira por excelência era só a nobreza. E é frequente, na Idade Média, verem-se as nobrezas de dois povos combatendo, enquanto as populações plebeias colocadas fora da zona de combate, quer urbanas quer rurais, estavam em profunda paz. Além do tributo do afeto, pago pela nobreza ao Estado por meio da política do casamento, tinha ele o duro privilégio de derramar seu sangue obrigatoriamente em campo de batalha, enquanto o plebeu tinha sempre a faculdade de ficar em casa.

Como conseguia o nobre os contingentes que era obrigado a levar ao rei em tempo de guerra? Pagando-lhes, e às vezes pagando-lhes bem. Assim, o nobre pagava aos homens, comprava os cavalos, armava os soldados, adquiria toda a equipagem. Para quê? Para um serviço público. Como os custeiam os serviços públicos? Por meio de impostos, evidentemente.

O castelo feudal não era apenas uma habitação suntuosa. Muito mais do que isto, era a suprema garantia dos habitantes do feudo contra incursões de toda ordem. Garantia não apenas da vida, mas do dinheiro e dos bens, uma vez que, quando havia incursão de tropas em um feudo, as tropas invasoras talavam tudo, saqueavam tudo e tudo destruíam, tal e qual acontece hoje. Por isto, verificada a iminência de uma invasão, todos os habitantes do feudo encontravam guarida segura por detrás dos muros gigantescos dos castelos feudais.

O castelo feudal era, pois, uma obra de utilidade pública, um meio de defesa coletiva, como são hoje a linha Siegfried ou a linha Maginot. A segurança do castelo, a integridade de suas torres, a inviolabilidade de suas muralhas, a profundidade do valo de água que o circundava, não diziam respeito ao conforto ou ao esplendor de vida do senhor feudal, mas à segurança coletiva de todos os habitantes do feudo. A construção de um grande castelo era, para o senhor feudal, não uma vantagem nem um direito, mas sobretudo um dever, talvez o mais fundamental de seus deveres, um interesse de primordial importância para todo o feudo.

Assim, nada havia de mais natural do que a obrigação imposta a todos os habitantes do feudo de, por uns tantos dias do ano, trabalharem gratuitamente no castelo, para reparar suas muralhas, elevar suas torres e escavar mais a fundo o valo do castelo, que, pelas secas ou por mil outras circunstâncias, poderia ser facilmente transposto a pé, se não fosse constantemente retirada a terra assoreada no seu fundo.

De que maneira se pagam hoje as obras de defesa militar? Por impostos pecuniários. Digamos que eu pague para a manutenção das forças armadas 30$000 por ano; desde que eu seja operário e ganhe 300$000 por mês, o que quer dizer isto, senão que trabalhei 5 dias grátis pela grandeza militar do país? E quem ousaria taxar isto de injustiça?

Outro privilégio dos senhores feudais, que era tido pelos escritores liberais e demagógicos do século passado como irritante, era o direito de cobrar impostos de todos aqueles que passassem pelas estradas do feudo. Entretanto, a coisa se explica. Há hoje, em todos os países, um orçamento público especial para custear o serviço de conservação e desenvolvimento da rede rodoviária. Como se mantém esse orçamento? Pelos impostos do público. Naquela época, as estradas eram muito frequentemente, senão sempre, abertas pela administração feudal, fazendo cada feudo uma parte. Qual o meio de cobrar o imposto atinente à conservação da estrada, ou à sua abertura? Evidentemente, taxando os seus transeuntes. É o sistema ultra-moderno, muito justo e razoável, usado para custear as despesas de certas estradas, como por exemplo a de Santo Amaro, entre nós.

Outro meio muito utilizado hoje em dia, para facilitar as despesas da administração, é o que se chama monopólio. O Estado adquire certas indústrias especialmente rendosas, que ele se atribui o privilégio de explorar, negando tal privilégio a outras particulares. Assim, os lucros do Estado lhe permitirão cobrar impostos menos onerosos ao público.

Daí o fato de, em muitos feudos, pertencer ao senhor feudal o direito de moer, ou outro monopólio qualquer. À primeira vista, isto parece odioso. Mas basta que a gente se lembre de que o senhor feudal não era um particular qualquer, mas sim uma encarnação do Estado, para então tudo se explicar.

O mesmo se dá quanto ao direito que, em outros feudos, tinha o senhor feudal a uma porcentagem do que moessem os moinhos do feudo. Hoje, cola-se uma estampilha sobre o saco e se diz que é imposto de consumo. Outrora, o imposto de consumo não era cobrado por estampilha, nem em dinheiro, mas em mercadoria. Era a única diferença. E quem ousaria negar o direito de o Estado cobrar imposto de consumo?

Se formos examinar uma a uma todas as prerrogativas dos senhores feudais, veremos que se cifram em coisas razoáveis como estas. A imagem do plebeu faminto, pobre, indo levar seu dinheiro de imposto ao senhor feudal rico e bem nutrido, é infantil como a que representasse algum chefe de Estado contemporâneo como um tirano, só porque ele cobra impostos do povo. E, direta ou indiretamente, em qualquer país contemporâneo, qual o homem que não paga impostos, por mais romanticamente faminto que seja?

A hierarquia e a desigualdade social - Esta descrição, sumária embora, dos encargos que oneravam o senhor feudal na Idade Média nos leva a verificar que a nobreza ocupava, na organização daquele tempo, uma situação especialíssima. Pode-se dizer que ela era uma classe que existia para o serviço do Estado, e que encontrava no exercício das funções militares, bem como no desempenho dos encargos do governo, toda a sua razão de ser.

À primeira vista, poder-se-ia supor que a atribuição, à nobreza feudal, de todos os encargos governamentais, constituía muito mais um privilégio do que um dever, e que portanto é um paradoxo afirmar-se que a nobreza tinha a obrigação de governar seus feudos, devendo antes dizer-se que ela tinha tal direito. Não é esta, entretanto, a realidade. Governar é uma função árdua, que exige o consumo de consideráveis energias. A prova disto está em que todos os Estados contemporâneos — para falar somente nestes — julgam constituir para eles um dever elementar de moralidade pagar os funcionários designados para o exercício das mais altas funções do Estado. Assim, reis, imperadores, presidentes de República, todos fazem jus a uma remuneração. Por que isso, se a função governamental constituísse apenas uma vantagem, e de nenhum modo um encargo?

Já tive ocasião de dizer que poderíamos ter uma certa idéia do que era um senhor feudal, se imaginássemos um fazendeiro, que ao mesmo tempo exercesse as funções de prefeito municipal, juiz, delegado, coletor e chefe do destacamento militar local. Qual o fazendeiro de hoje, entretanto, que se disporia de boa mente a exercer, sem qualquer retribuição, tais encargos? Perguntem a esses fazendeiros comodistas que residem em São Paulo, e confiam os encargos da administração rural a prepostos de confiança, que os exoneram de qualquer preocupação ou trabalho, se gostariam de renunciar às delícias da vida folgada na capital, a fim de ir para o fundo do sertão, exercendo ali tantas e tão complexas funções, sem remuneração de qualquer espécie.

Também a nobreza feudal poderia levar uma vida mais folgada. Se bem que a capital não tivesse então tantos atrativos quantos costumam possuir hoje as grandes capitais, ser-lhe-ia certamente suave e fácil fazer o que fez a nobreza do tempo de Luís XIV, isto é, abandonar a roça e os castelos, renunciar à vida simples do campo e às preocupações do exercício das funções feudais, a fim de ir viver nas delícias da corte. Este grave erro, que a nobreza francesa praticou nos Tempos Modernos, a nobreza feudal soube evitá-lo sabiamente e com abnegação, renunciando à vida larga da capital em benefício do cumprimento dos próprios deveres.

Aliás, cumpre acrescentar que, se realmente é interessante e por vezes empolgante o exercício das funções governamentais quando se está à testa de um país de considerável importância, o governo de pequenas unidades territoriais vê-se forçado a entrar em questões prosaicas, que tiram à vida pública todo o seu encanto.

De que se devia ocupar quotidianamente um senhor feudal? Primeiramente, do que poderíamos chamar a política externa do feudo. Durante grande parte da Idade Média, a guerra entre os feudos era considerada coisa tolerável, em virtude do vigor das nações bárbaras, ainda tão recentes na Europa. Assim, o senhor feudal devia exercer sobre seus vizinhos uma vigilância atenta, manter uma diplomacia "inter-feudal" ativa, que lhe assegurasse aliados, bens, e ao mesmo tempo enfraquecesse quanto possível o adversário. Toda a segurança pessoal e patrimonial de todos os habitantes do feudo repousava sobre isto.

Em segundo lugar, tratava-se de manter o castelo em inalteráveis condições de máxima eficácia militar, acompanhando gradual e atentamente as evoluções técnicas do castelo feudal, a fim de o manter sempre no mais alto nível de eficácia militar. Finalmente, abrir e conservar estradas, lançar e cobrar impostos, fiscalizar toda a administração do feudo e distribuir justiça.

Quando as funções eram por demais numerosas e complexas, os senhores feudais pagavam funcionários que os auxiliassem para tal. Foi o que se deu, por exemplo, com a função judiciária dos senhores feudais. A princípio, quase todos eles a exerciam pessoalmente. Entretanto, à medida que a penetração dos princípios cristãos na sociedade se fez mais profundamente, e que as idéias de moralidade e justiça se iam alicerçando no espírito público, os senhores feudais compreenderam melhor sua própria responsabilidade como juízes. Receosos de assumir essa responsabilidade, que demandava habitações especiais que não possuíam e o emprego de um tempo longo de que não podiam dispor, costumavam os senhores feudais pagar funcionários — os juízes — que os substituíssem na função.

Note-se, entretanto, que o rei não desembolsava a menor quantia para fazer face a todas essas despesas. Como haveria de agir o senhor? Evidentemente, cobrando impostos. Essa justíssima cobrança de impostos é que foi explorada ignobilmente pelos enciclopedistas e conspiradores, de cujo trabalho nasceu a tristemente famosa Revolução de 1789.

Como já disse, todas essas funções eram sumamente onerosas. Assim, por exemplo, a função judiciária não consistia, na maior parte dos casos, em resolver pendências interessantes, mas em decidir de quem era uma vaca perdida no campo, ou que indenização A devia a B por ter o cavalo de A trotado sobre as hortaliças de B. Também as funções administrativas eram prosaicas. Era preciso ver se o moinho tinha moído mais do que tinha o direito de moer, se o camponês X não estava ocultando uma produção agrícola a fim de pagar menos, etc. Tudo isto era terra-a-terra, insípido, oneroso, como são onerosas as funções de jurado, que ninguém gostaria de exercer hoje em dia, e que a maior parte das pessoas só exerce porque há uma pesada multa a pagar, se não comparecer.

É dessa situação tão sobrecarregada de deveres, em que se encontrava a nobreza feudal, que decorria a famosa expressão, de grande valor jurídico na época: "noblesse oblige" — a nobreza é uma condição social que impõe encargos maiores do que ao comum dos indivíduos. Releva acrescentar que, de modo geral, e ressalvadas sempre as exceções inevitáveis, a nobreza não só se desempenhava razoavelmente de suas obrigações, mas o fazia magnificamente.

Toda a educação de um herdeiro de senhor feudal já era orientada no sentido de o aparelhar a servir do melhor modo possível os interesses públicos, dos quais o fidalgo era servidor nato. Ainda em tenra idade, as crianças nobres eram separadas de seus pais, em benefício dos interesses coletivos. A menina, cujo casamento em geral se tratava na mais extrema infância, era entregue, depois de uma solenidade de noivado, à família do futuro marido, onde era educada até chegar a idade em que o casamento se tornava possível. Então cessava a separação rigorosa existente entre os dois futuros cônjuges e a cerimônia do casamento era celebrada, pois que a primeira cerimônia não era, praticamente, senão a de um noivado solenemente declarado. Assim, a menina nobre era educada em casa dos sogros, no ambiente onde teria de passar sua vida inteira, a fim de conhecer convenientemente todas as particularidades da vida do feudo, e a elas se adaptar plenamente.

Também os meninos, ainda na infância, eram enviados à corte dos senhores mais poderosos, ou do rei, a fim de servirem de pajens. Essa separação tinha uma vantagem muito grande: longe da família, o espírito de luta, de iniciativa e de independência dos futuros cavaleiros se aguçava em extremo. Com isto sua formação psicológica se desenvolvia bastante, enquanto a formação militar era administrada pelo próprio senhor feudal em cuja corte o pajem servia.

Servidores natos do Estado, menino e menina deveriam pois, desde cedo, se adestrar a seu "métier", e a mãe não se julgava no direito de fazer nenhuma queixa: também ela era uma servidora do Estado.

Se quiséssemos considerar a fundo as coisas, poderia quase parecer uma crueldade que os encargos de combater, de guerrear e de morrer pesassem de modo tão mais sensível sobre a nobreza. Esta, entretanto, não se limitava a suportar jovialmente tão duro encargo. Ufanava-se dele como seu mais alto título de glória. O heroísmo — ou seja, a dedicação aos interesses coletivos levada no mais alto grau, pois que o heroísmo militar não é senão isto — era a virtude distintiva do nobre. O nobre morria em campo de batalha, com entusiasmo. Quando, pelas noites frias de inverno, os menestréis enchiam o ócio das longas horas de noitada cantando as proezas dos heróis, os nobres que ouviam estes feitos, em lugar de se atemorizarem com a descrição realista e por vezes brutal do futuro que os esperava, sentiam pulsar com maior ardor seu coração, e mais do que nunca brilhava neles o heroico desejo de morrer pelo bem comum, e especialmente pelo bem da Cristandade, ameaçada pelos mouros.

Em outros termos, o nobre era educado para exercer durante toda a sua vida, sem dispêndio para o rei, as funções hoje exercidas, às custas dos cofres públicos, pelos ministérios da Guerra e da Justiça, bem como pela administração regional, na maior parte dos países contemporâneos.

Entretanto, não convém esquecer que a nobreza, constituindo o escol do país, não era apenas obrigada a tais funções, mas ainda tinha uma outra, que é peculiar a todas as elites: o desenvolvimento progressivo da vida artística, cultural, intelectual e social do país. Ai do país que não possui classes de escol, capazes de exercer tais funções!

Enquanto, com a espada na mão, os nobres defendiam em campo raso a civilização ocidental já cristã, enquanto administravam a Europa decadente e a reerguiam dos escombros decorrentes da invasão bárbara, também eles mesmos (que outra coisa não eram senão semi-bárbaros em via de se civilizarem gradualmente) se apuravam em distinção, em elegância, em verdadeira fidalguia e, elevando-se, elevavam consigo todo o teor da vida social da época.

Os castelos, outrora toscas fortificações de madeira, se transformaram nos magníficos monumentos que até hoje atraem para a Europa turistas do mundo inteiro. Vitrais admiráveis, tapeçarias luxuosíssimas, peças de mobiliário feitas à mão e representando um valor inestimável, taças preciosas, jóias, reposteiros de sedas ou de outros estofos preciosos, lustres, esmaltes, prataria, tudo isto começava a ornar a vivenda do senhor feudal, outrora mero chefe bárbaro, boçal e ignorante. Toda uma etiqueta sutil, requintada, complexa, substituía a primitiva rudeza dos bárbaros. Em suma, os artistas, os intelectuais, os elementos exponenciais da vida cultural em geral, recebiam dessa nobreza o mais precioso estímulo, e essas sucessivas gerações de heróis souberam ser, em tempo de paz, sucessivas gerações de mecenas.

O Clero - Outra classe totalmente votada ao serviço do público, que era também o serviço de Deus, era o Clero.

A organização dessa classe, que se conserva ainda hoje a mesma na Igreja Católica, era curiosa. Em todos ou quase todos os países da antiguidade, o clero das religiões pagãs constituía uma casta social hermeticamente fechada, cujos cargos se transmitiam por via hereditária. Com o clero católico dava-se o contrário. Qualquer pessoa, ainda mesmo que pertencesse às mais ínfimas camadas sociais, podia ascender aos mais altos cargos eclesiásticos, e não foi raro contemplar-se, no mais alto Trono do mundo — isto é, no Trono de São Pedro, que é o Trono do Papa — pessoas provenientes da última camada do povo.

Democrática quanto ao modo de se constituir, tal classe era, entretanto, muito aristocrática quanto à sua organização interna. O Papa, os Bispos e os Párocos constituem uma organização sumamente hierarquizada e disciplinada, a tal ponto que Edison pôde escrever, em seu testamento, que as organizações mais perfeitas do mundo eram a Igreja Católica e a Companhia de Petróleo Anglo-Mexicana (era esta a Companhia, se não me engano).

Nunca será suficiente insistir em que a função principal do Clero, em matéria de serviços ao público, consistiu na cristianização das massas.

Já tive ocasião de expor aos senhores que, dos princípios religiosos da doutrina católica, decorrem necessária e inelutavelmente consequências de caráter político, social e econômico da mais transcendental importância, de modo que um povo profundamente católico tem constituições políticas, sociais e econômicas, organização doméstica, etc, tudo inspirado nos princípios católicos. É a isto que se chama Civilização Católica.

Até hoje, mesmo os Chefes de Estado, por vezes hostis à Igreja, timbram em afirmar que nossa civilização é cristã. O que quer isto dizer, senão que os princípios cristãos ainda constituem hoje o substrato de nossa civilização?

Ora, quem difundiu o Cristianismo pela Europa, quem civilizou os bárbaros que haviam invadido o império, quem amenizou os seus costumes selvagens, quem abriu seu espírito para os encantos da vida intelectual, quem inspirou os primeiros artistas, os primeiros literatos, os primeiros estadistas surgidos entre eles? A Igreja. Se quisermos saber o que foi a principal tarefa do Clero católico na Idade Média, verifiquemos o que fez Anchieta no Brasil: a tarefa foi a mesma.

Em segundo lugar, todo o serviço de beneficência estava no encargo do Clero. Hospitais, orfanatos, centros de isolamento para leprosos, casas de segurança para receber os viandantes na incerteza dos caminhos quase intransitáveis. Na antiguidade pagã não se conhecia, nem de longe, esse admirável conjunto de obras de beneficência, e todas elas brotaram do espírito de caridade da Igreja. Em outros termos, toda a verba hoje consignada para a assistência social era então despendida pela Igreja, sem auxílio do Estado.

Por outro lado, cabia à Igreja o exercício da instrução pública. Há a este respeito fábulas que fazem rir. Fala-se muito na ignorância do homem medieval. Não é fácil combater o analfabetismo, e a experiência brasileira mostra bem como, a despeito de todos os recursos modernos, inexistentes na Idade Média, é difícil debelar esse mal. Entretanto, quando a Idade Média findou, na quase totalidade das igrejas funcionavam, anexas ao Templo, escolas primárias gratuitas para os pobres. E ainda se diz que a Igreja procurou incentivar o analfabetismo!

Aliás, há a este propósito uma contradição sumamente curiosa. Diz-se que a Idade Média era uma era do analfabetismo. Por outro lado, diz-se que a saída imensa que tiveram as sucessivas edições da Bíblia, logo depois do invento de Gutenberg, determinaram uma tal transformação dos espíritos, que a pseudo-Reforma nasceu daí. Mas como, então? Esses analfabetos consumiam enormes edições de livros? Para quê? Poder-se-ia argumentar que foi a saída da edição que estimulou todos a que aprendessem a ler. Singular tolice! Não saem hoje edições de milhões de livros? E o analfabetismo por isto desapareceu?

Jamais se poderia falar na influência doutrinária da Igreja sem aludir ainda às universidades. As mais famosas universidades da Europa foram fundadas pelos Papas, e enriquecidas por eles de toda sorte de privilégios. Jamais a Europa contou, antes da Idade Média, com uma organização de ensino superior comparável à das universidades medievais.

Assim, também todo o orçamento da instrução pública, ministério hoje muito dispendioso na maior parte dos países, estava a cargo do Clero. Como fazia ele tais despesas? Cobrando impostos? Não. Recebendo subvenções do Estado? Raramente. Era a caridade pública que lhe fornecia os meios. O Estado se limitava, em troca de tantos serviços, a isentá-lo de impostos. Aliás, isenção de impostos existem em quase todos os Estados, ainda hoje, para os templos ou para as obras de caridade. Era esse o compreensibilíssimo privilégio contra o qual se insurgiu a Enciclopédia!

Situação da plebe - O conceito existente na Idade Média, a respeito das classes sociais, era de que o Clero rezava pelo País, instruía-o e o educava, além disto protegendo os pobres na sua indigência e os doentes em sua desgraça. Em suma, o Clero devia criar condições morais e intelectuais as mais auspiciosas para a grandeza do país.

A nobreza devia administrar o país, viver no serviço público, do serviço público e para o serviço público, e, eventualmente, por este morrer no campo de batalha. Em suma, as funções governamentais e militares tocavam aos nobres.

Estas funções são de si tão absorventes, que não comportam o exercício de outras funções. Mas se é exato que "não é só de pão que vive o homem", não é menos exato que sem pão ele não vive. Se havia uma classe docente, outra administradora e guerreira, deveria haver também uma classe produtora, do ponto de vista econômico. Qual era? Essa função incumbia à terceira classe — a plebe.

Costuma-se apresentar o plebeu da Idade Média como o homem mais desgraçado de todos os tempos, reduzido a uma condição injusta e inclemente, privado de todos os direitos, sobrecarregado com todos os deveres, e obrigado a funções tão humildes, que qualquer ascensão na hierarquia social lhe era absolutamente vedada.

A acusação seria infantil, se não fosse pérfida. Efetivamente, costuma-se apresentar como uma das características da Idade Média a formação de uma burguesia rica, classe plebeia que se guindou a um alto grau de prosperidade, a ponto de poder rivalizar com reis e nobres. Mas como conseguiram isto os plebeus, se não eram outra coisa que não míseros escravos? Contra o preconceito anti-medieval não valeu sequer o testemunho insuspeitíssimo de Marx, que afirmou ter sido a Idade Média a era de ouro do trabalhador europeu.

Para garantir à plebe o exercício de suas funções econômicas, em muitos países a única atividade remuneradora que se permitia ao nobre era a agricultura, sendo que a indústria e o comércio eram privativos do plebeu. Em outros termos, só o plebeu podia aproximar suas mãos dos mais importantes mananciais de riqueza.

Em todos os países de economia bem organizada o comércio e a indústria, exercidos com inteligência, proporcionam lucro dos mais consideráveis, muitas vezes superiores aos da agricultura. Enquanto o sacerdote pregava, ensinava e orava, enquanto o nobre administrava, julgava, lutava e morria, o plebeu... ganhava dinheiro. Daí a formação de uma classe plebeia riquíssima, cuja prosperidade, entretanto, não prejudicou a felicidade e bem-estar material das camadas baixas da plebe, como Karl Marx reconheceu, louvando as ótimas condições em que vivia o trabalhador medieval.

Era, pois, perfeitamente explicável que os impostos fossem pagos por aqueles que produziam o dinheiro. Por quem haveriam de ser pagos? Por aqueles que o não produziam, e que viviam só para o serviço público? Assim, enquanto a contribuição das classes "privilegiadas" era no sentido de trabalhar para o Estado, o plebeu pagava o imposto, não em trabalho, mas em dinheiro. Foi, entretanto, contra isto que se ergueu o espírito revolucionário.

Equivalência de direitos e deveres - O que os revolucionários não compreenderam, ou não quiseram compreender, foi que a organização social da Idade Média conferia direitos desiguais, mas também deveres desiguais, e que a absoluta justiça se estabelecia, não pela atribuição de direitos e de deveres iguais para todos, mas pela atribuição de direitos maiores para quem desempenhava maior tarefa, e de direitos menores para quem desempenhava tarefa menor.

Esclareçamos este pensamento. Hoje em dia, todos temos para com o Estado iguais deveres. Por isto, é justo que tenhamos também direitos iguais. Mas se algum de nós tem deveres maiores para com o Estado, o Estado lhe deverá reconhecer maiores direitos. Do contrário, esse alguém sairá prejudicado.

Assim, se o Estado, além dos deveres que me tocam como cidadão, me incumbe do dever de lecionar, que é evidentemente um dever que não toca a todos, ele deve me dar uma remuneração que não dá a todos. Como funcionários do Estado, os professores têm deveres maiores do que a massa geral dos cidadãos, pois que estão obrigados a ensinar. Em compensação, têm direitos maiores, pois que ganham um ordenado.

O sacerdote era antes de tudo servidor de Deus. Mas como tal ele prestava implicitamente ao Estado o mais precioso dos serviços: o Estado recebia mais dele do que do comum dos cidadãos, e assim lhe devia mais. Daí o fato de o sacerdote, que trabalhava sem paga para os interesses públicos, também gozar de isenção de impostos e ser a primeira classe do país. A dignidade de suas funções o exigia.

Também o nobre tinha seus privilégios originados do princípio "noblesse oblige", de que o nobre é um servidor do Estado.

Assim, a deveres desiguais em relação aos da massa dos cidadãos correspondiam também direitos diferentes dos da massa. A justiça estava na proporção entre os serviços prestados e a recompensa recebida como honrarias e como isenção de impostos.

Formação do feudalismo

Os povos medievais tiveram organizações políticas muito variadas, nas quais se notavam tendências monárquicas, aristocráticas ou democráticas que preponderavam conforme as circunstâncias.

A forma de governo mais generalizada foi a monarquia. A França, a Península Ibérica e a Inglaterra foram monarquias hereditárias. O Santo Império Romano Alemão e a Polônia foram monarquias eletivas, nas quais, morto um soberano, era eleito outro por assembleias constituídas por pessoas da aristocracia.

As cidades livres e comuns da Holanda e Alemanha foram puras democracias burguesas, sem nenhum caráter monárquico. A República de Veneza, pelo contrário, era um Estado exclusivamente aristocrático, no qual só tinham direitos políticos as pessoas do patriciado. Na Inglaterra a monarquia evoluiu em sentido democrático, para a limitação dos poderes da coroa. Na França, na Espanha, em Portugal e na maior parte das unidades que compunham o Império Romano Alemão, a monarquia evoluiu para o absolutismo. Na Polônia, a monarquia existia só de nome, pois que na realidade era a nobreza que governava. Em Veneza, a monarquia não existia nem de nome, porque a nobreza era onipotente, não admitia rei nem queria saber de qualquer participação do povo no governo.

Uma das grandes características políticas da Europa na Idade Média foi o feudalismo. Como os senhores já tiveram ocasião de ver, no Egito, China e Japão o regime feudal também foi posto em prática. O feudalismo medieval não foi, pois, um regime inteiramente novo, mas foi a aplicação, na Europa, de um regime já experimentado por outros povos de grande civilização, anteriormente à formação da Europa medieval. Aliás, no Japão o feudalismo durou tanto, que só terminou no século passado.

Não se sabe muito exatamente quais tenham sido, na Europa, as origens do regime feudal. Talvez encontre ele sua explicação em antigas leis dos povos bárbaros; talvez tenha ele resultado de uma deformação da organização administrativa de Carlos Magno; talvez, ainda, tenha ele procedido do natural empenho das populações pobres, em se abrigar sob a proteção dos homens ricos, nos períodos das grandes calamidades sociais; talvez tenham convergido todos estes fatores, para a formação do feudalismo. Não há unanimidade entre os historiadores a respeito das causas do feudalismo, sendo que a última hipótese me parece a mais plausível.

Como os senhores já devem saber pelos estudos ginasiais que tiveram, o império de Carlos Magno foi dividido em diversas províncias, à testa das quais o Imperador nomeava governadores demissíveis por ele a qualquer momento. Esses governadores eram inspecionados por funcionários imperiais itinerantes, que lhes pediam estreitas contas do modo pelo qual desempenhavam seus poderes.

Com o enfraquecimento dos poderes reais e a desorganização dos Estados europeus durante os reinados dos sucessores de Carlos Magno, parece que os governadores de província conseguiram tornar vitalícios os seus cargos, de sorte que, nomeados uma vez pelo rei, não podiam mais ser demitidos, só ficando vago o cargo com a morte do governador. Mais tarde conseguiram eles tornar hereditário o cargo, e os reis perderam qualquer autoridade direta sobre as províncias que integravam seus reinos.

Os governadores de província, sendo vitalícios e hereditários, eram, na província, pequenos reis a quem incumbia governar todo o seu território à vontade, sendo apenas obrigados a prestar auxílio ao rei em caso de guerra com o estrangeiro, e a lhe pagar, em certos casos, alguns impostos.

Um outro fato que pode ter concorrido para a formação do regime feudal foi que, sendo os reis insuficientemente fortes para se opor às constantes invasões que a Europa sofria por parte dos sarracenos e dos germanos bárbaros, e para fazer face às lutas dos povos europeus e cristãos entre si, ficaram os grandes proprietários de terras inteiramente abandonados às suas próprias forças em caso de invasão, não podendo mais contar com a autoridade pública e com as tropas do rei. Então, procuraram organizar exclusivamente com seus próprios recursos a defesa. Por isto construíram fortificações nas suas próprias terras, e, ajudados pelas pessoas pobres dos arredores, defendiam-se contra o adversário comum.

Evidentemente, nestas conjunturas, a situação de um grande proprietário era muito melhor que a de um pobre camponês. Invadidas as terras que lhe pertenciam, o proprietário podia entrincheirar-se com seus rebanhos e seus parentes em alguma fortificação, e resistir vitoriosamente ao assalto. Mas o camponês, que não podia construir para si fortificações, ficava inteiramente desamparado, porque os invasores, em geral, incendiavam sua casa, se apoderavam de seus rebanhos e dos mantimentos que encontrassem em sua dispensa, de seu mobiliário, e, o que é pior do que tudo, de sua família, que sofria maus tratos duríssimos, principalmente as mulheres, que frequentemente perdiam a honra em tais calamidades.

Por isto, na iminência de uma invasão, o homem do povo pedia proteção ao grande proprietário, que o autorizava a conduzir sua família, seus poucos haveres e as poucas cabeças de gado que tivesse, para dentro da fortificação, salvando-o assim de uma ruína financeira completa e da destruição de seu lar. O senhor feudal recebia assim um soldado, mas em troca tinha que alimentar muitas bocas inúteis. Para ele, seria preferível ter soldados mercenários, em vez de defender-se com a ajuda dos seus camponeses. Então ele exigia do camponês uma submissão política, em troca da proteção que lhe dispensava em tempo de guerra. Por isto formaram-se relações de dependência política entre os grandes proprietários agrícolas e seus camponeses, ao par das relações de dependência econômica já existentes.

Como se vê, quer em virtude da deformação do regime administrativo de Carlos Magno, quer em virtude da necessidade de defesa das populações rurais contra os inimigos externos, o resultado a que se chegava era este: as pessoas do povo não dependiam mais diretamente do rei (como acontece nas monarquias ou repúblicas modernas, em que todos nós dependemos do Estado); pelo contrário, dependiam de certos governadores ou senhores territoriais, que por sua vez dependiam do rei. Esse regime estendeu-se a tal ponto por toda a Europa, que, por fim, não se admitia mais que um homem da plebe não tivesse um senhor.

Em geral, não eram todas as terras do País entregues a senhores feudais. Havia, em cada reino, duas espécies de terras: 1) terras dependentes diretamente do rei, e nas quais não havia senhores feudais; 2) terras dependentes dos senhores feudais, nas quais o rei só tinha uma autoridade indireta, exercida por intermédio dos senhores.

O regime feudal começou a se difundir na Europa a partir do século IX.

Hierarquia feudal

Com o correr do tempo o regime feudal se complicou, pois os grandes senhores feudais tomaram o hábito de desmembrar suas próprias terras, concedendo parte delas a outras pessoas, com plena autoridade, sendo os novos senhores também hereditários e vitalícios. Estes deviam ao senhor feudal que lhes tinha feito a concessão: 1) auxílio militar em caso de guerra; 2) pagamento de certos impostos. Nestas condições, o grande senhor feudal que cedia estava, para o pequeno senhor que recebia a concessão, assim como o rei estava para o grande senhor feudal. Passou a haver, pois, nos grandes feudos, duas espécies de terras: 1) terras nas quais o grande senhor exercia pessoalmente sua autoridade; 2) terras em que a autoridade direta era de um pequeno senhor feudal que as tinha recebido do grande senhor, e sobre as quais o grande senhor tinha uma autoridade apenas indireta.

Os senhores podem imaginar facilmente a complexidade de um tal modo de organização político-social. O grande senhor feudal que concedia terras a um pequeno senhor era chamado suserano. O pequeno senhor era chamado vassalo. Assim, constituiu-se uma verdadeira hierarquia feudal, que tinha no alto o rei, logo abaixo os grandes senhores, que dependiam do rei, e abaixo destes os pequenos senhores, que dependiam diretamente dos grandes senhores, e indiretamente do rei.

Em caso de guerra com o estrangeiro, o rei pedia o auxílio de todos os grandes senhores feudais. Estes, por sua vez, pediam o auxilio dos pequenos senhores, ou vassalos, e assim todo o país se movia para a guerra.

Considerada em si, essa organização poderia prestar excelentes serviços, e realmente ela os prestou. Uma vez que os reis eram impotentes para se defenderem nas guerras, não se podia inventar um sistema mais engenhoso do que este. E realmente foi graças à resistência dos senhores feudais que a Europa venceu os grandes inimigos externos com que teve de lutar, quer muçulmanos quer europeus bárbaros, ainda não convertidos ao Catolicismo e à civilização. O feudalismo foi um dos mais importantes meios de defesa da civilização européia, ocidental e cristã.

Mas a hierarquia feudal se complicou ainda mais com o correr dos tempos. Primeiramente, muitos reis herdavam feudos em outros países, feudos estes que lhes provinham como herança de algum antepassado por linha feminina, ou de algum parente colateral mais ou menos distante. Com isto o rei se tornava senhor de uma importante extensão de terras de um outro país, e se tornava vassalo de outro rei. Esta vassalagem não importava em diminuição moral para o vassalo, mas em acréscimo, porque a vassalagem só existia quanto ao feudo herdado, e não quanto à monarquia de que o rei era soberano. Pelo contrário, essa vassalagem era, para o rei que herdava o feudo, um meio precioso de enfraquecer o rei de quem era vassalo, porque ele adquiria uma autoridade própria e direta sobre uma extensa parte dos domínios do outro rei. Foi, por exemplo, o que se deu com os reis da Inglaterra, sempre em luta com os da França, e que conseguiram herdar muitos feudos em terra francesa. Com isto conseguiram tornar-se também reis da França.

O mesmo que sucedia entre reis acontecia também entre senhores feudais. Muitos grandes senhores feudais herdavam pequenos feudos encravados nas terras de algum grande senhor feudal rival. Assim, eles se tornavam vassalos do grande senhor feudal, mas esta vassalagem só existia quanto ao pequeno feudo. E o grande senhor que se tinha tornado vassalo, passando a ter uma autoridade direta em parte das terras de seu rival, enfraquecia a este. Podia perfeitamente acontecer, e realmente aconteceu, que houvesse grandes senhores feudais respectivamente suseranos e vassalos, e o mesmo em relação aos reis.

Deformações do regime feudal

Como todos os regimes, também o regime feudal se presta a deformações. Embora tão sábio quando considerado em si, ele foi, na prática, deturpado de modo a gerar os maiores abusos. Realmente, muitos grandes senhores feudais conseguiram, por meio de casamentos e combinações genealógicas habilmente estudadas, concentrar sobre a cabeça de alguns descendentes um número enorme de grandes feudos, e com isso tornaram os reis fracos demais para exercer sua autoridade sobre eles.

Na França houve ocasião em que o rei era o menor dos grandes senhores feudais, isto é, ele tinha terras menores do que qualquer grande senhor de seu reino. Ora, nestas condições a disciplina dos senhores feudais em relação à coroa era muito precária, e na realidade cada feudo constituía um país totalmente independente do rei. Daí originou-se entre reis e senhores feudais, muito frequentemente, uma interminável série de lutas, que os senhores devem ter estudado no curso ginasial.

Era frequente encontrar senhores feudais que se aliavam a soberanos estrangeiros, para mais facilmente derrotarem o respectivo rei. E assim o feudalismo, que tinha sido instituído como medida de garantia do território nacional contra os inimigos externos, era utilizado em sentido diametralmente oposto a este.

Também era frequente encontrar pequenos vassalos que se aliavam a inimigos de seu próprio suserano, para vencer a este. Em todas as escalas da hierarquia feudal se tinha introduzido uma certa desordem. Cumpre acrescentar que os reis, muito frequentemente, concorriam para agravar esta situação, tão desfavorável para eles, desmembrando seus próprios domínios ao morrerem, deixando grandes feudos para os filhos mais moços e a coroa real para o primogênito. Por esta forma, as terras sobre as quais os reis tinham uma autoridade direta foram diminuindo cada vez mais.

A política de casamentos

Começaram os reis a desenvolver uma série de casamentos bem estudados, em que procuravam fundir à sua as outras monarquias vizinhas ou reabsorver os grandes feudos do reino, casando os herdeiros do trono com as herdeiras dos grandes senhores feudais. Por outro lado, tornaram eles ainda mais enérgica essa política, reprimindo tanto quanto possível, e à mão armada, os surtos revolucionários dos senhores feudais.

Na França e na Espanha os resultados dessa política foram excelentes. Quando terminou a Idade Média, a Espanha estava atingindo a sua unificação (os senhores não ignoram que essa unificação se deu com o casamento de Fernando e Isabel a Católica, o que fez desaparecer os pequenos reinos de Aragão e Castela, em que se dividia a Espanha) e a França tinha abatido quase por completo os grandes senhores feudais, iniciando-se em um e outro país a era da monarquia absoluta. Na França, o maior campeão da unificação do país e da destruição do poder dos senhores feudais foi o rei Luís XI, de cujas guerras com o Duque da Borgonha, Carlos o Temerário, os senhores se devem recordar.

A nenhuma dinastia coube maior soma de vantagens, com a política dos casamentos, do que à dos Habsburg. Essa família era originária da Suábia, e conquistou, com Roberto o Rico, grandes territórios na Suíça e na Alsácia, e com Rodolfo de Habsburg chegou ao trono imperial alemão. Chefes do então arquiducado da Áustria, iniciaram eles uma tão ativa política de casamentos, que conseguiram para sua dinastia a mais assombrosa expansão que a História deste continente registre. A Áustria tinha duas divisas interessantes. A primeira exprimia o imperialismo desse povo, e se resumia com as iniciais A.E.I.O.U., que significavam "Austriae est imperare orbi universo", ou seja, "cabe à Áustria imperar sobre o mundo inteiro"; a outra indica de que modo essa dominação universal foi realizada: "Gerant allia bella; tu, felix Austria, nube" — "Que os outros provoquem guerras à vontade; tu, Áustria feliz, casa-te!"

Realmente, a família dos Habsburg conseguiu, por meio da política de casamentos, a formação de um império que se estendeu até à América, como futuramente veremos.

Direitos e deveres dos senhores feudais

Em relação ao rei, os senhores feudais deviam o pagamento de certas quantias e a assistência militar em caso de guerra. Em relação aos homens que habitavam seus feudos, eles tinham a obrigação de exercer o poder judiciário, administrar todo o feudo, velar pela sua segurança e pela prosperidade de suas finanças, manter a ordem pública e fazer executar todas as obras de utilidade pública que se tornassem necessárias, como pontes, caminhos, etc.

Por sua vez, o rei o os homens do povo habitando o feudo deviam auxiliar o senhor feudal em caso de agressão externa. Os homens do povo eram obrigados ao pagamento de certas quantias e à prestação de certos serviços, de que mais adiante tratarei.

A sociedade medieval

A sociedade medieval se baseava sobre a desigualdade social. As classes privilegiadas eram duas: 1) o Clero; 2) a Nobreza. Além destas classes havia a terceira, o povo, que não tinha privilégios. Era a plebe.

O Clero era obrigado a manter o culto divino, velar pela moralidade pública pregando os princípios salutares da Religião, visitar os doentes, os pobres, os encarcerados, etc. Além destas funções, o Clero exercia duas outras, que hoje são — ao menos em certos países — exercidas pelo Estado. Em primeiro lugar a instrução pública, e em segundo lugar a assistência social.

Como mais adiante direi, as universidades medievais foram, em grande parte, criadas pelos papas, e funcionavam sob a alta orientação dos pontífices romanos e da Igreja. Muitas das universidades hoje existentes foram fundadas na Idade Média por papas. A famosa Sorbonne foi fundada no século XIII por Robert Sorbon, capelão e confessor do Rei São Luís de França.

Além disto, o Clero difundia a instrução pública na população, havendo na Europa extensas regiões que tinham, ao lado de cada igreja matriz, uma escola gratuita para crianças pobres, mantida pelo vigário. O Clero realizava, pois, todas as tarefas atualmente a cargo do Ministério da Instrução Pública ou da Educação.

Além disto, o Clero é que fazia toda a assistência social, mantendo hospitais, asilos para inválidos, instituições distribuidoras de víveres para pobres, etc. É justo que, a funções tão elevadas e meritórias, correspondesse uma grande consideração social, e que, uma vez que o Clero exercia gratuitamente tantas ocupações benéficas para a população, ele não fosse obrigado a pagar impostos, pois que as despesas que tais funções lhe acarretavam já eram um verdadeiro imposto.

Quanto à Nobreza, ela exercia todas as funções que hoje competem aos ministérios da Guerra, da Agricultura e da Justiça. Era ela que organizava gratuitamente todas as forças militares do país. Era ela que derramava em primeiro lugar o seu sangue na guerra, ocupando sempre as posições de maior risco pessoal. Era ela que administrava e mantinha em ordem todo o país, fazendo seu policiamento, etc. Era ela que exercia o poder judiciário. Era ela que cultivava todo o país, porque a aristocracia era essencialmente agrícola. Era ela que construía e mantinha no feudo as pontes, estradas e calçadas, que isolava os morféticos, etc. Também era, pois, de estrita justiça que esta classe não pagasse impostos, porque o senhor feudal era um verdadeiro funcionário público gratuito.

A plebe, pelo contrário, não realizava serviço público algum, exceto ir à guerra, o que fazia com muito menos risco do que os nobres, porque os plebeus ocupavam os cargos ou posições menos arriscados, e portanto sofriam muito menos com a guerra. Era justo, pois, que pagassem impostos. Principalmente, era isto justo porque formou-se, na Europa medieval, uma classe de plebeus extremamente ricos, habitando as cidades ou "burgos", como então se dizia na Alemanha, e que por isto se chamavam "burgueses".

Os burgueses tinham enriquecido extraordinariamente no comércio e na indústria então nascentes, e eram às vezes mais ricos do que o próprio rei. Esta classe plebéia, que levava uma vida regalada e confortável, não exercia nenhuma função pública, mas os nobres não tinham o direito de exercer a indústria e o comércio, que lhes possibilitariam enriquecer como a burguesia. Era, pois, uma classe que estava em excelentes condições, e que podia e devia pagar muitos impostos.

Veremos de que modo essa classe conquistou mais tarde a supremacia nos Estados europeus, e de que modo ela trabalhou para se libertar da autoridade dos senhores feudais nos municípios.

A observação fundamental que os senhores devem reter é que, na Idade Média, as diversas classes sociais tinham direitos e deveres desiguais. Isso não era injusto, porque havia uma perfeita proporção entre os direitos e os deveres de cada classe, e a maiores direitos correspondiam sempre maiores deveres. Hoje em dia os direitos e deveres, pela lei, são iguais. Ambos os regimes podem ser justos, tanto o da igualdade quanto o da desigualdade. Injusto seria que houvesse grandes direitos correspondendo a pequenos deveres, ou vice-versa. Mas desde que a desigualdade seja equilibrada, não constitui injustiça.

As cortes

Na maior parte das monarquias européias, as diversas classes sociais tinham câmaras representativas, eleitas por elas, que se destinavam a limitar a autoridade real. Essas câmaras, chamadas "cortes" em Portugal e na Espanha, "estados gerais" na França, parlamento na Inglaterra, dieta na Alemanha e na Polônia, se compunham em geral de representantes das três classes: Clero, Nobreza e Povo. Cada classe tinha seus representantes próprios. As cortes ou dietas intimidavam muito os reis, e determinavam que impostos o povo deveria pagar, de sorte a evitar os abusos de autoridade. A audácia de tais cortes chegava a tal ponto que, certa vez, em Portugal, elas chegaram a determinar que qualidades o rei deveria preferir para sua esposa: 1) virtude; 2) nobreza; 3) depois a beleza, a riqueza, etc. Nenhum parlamento contemporâneo se atreveria a fazer o mesmo.

Tendências políticas das monarquias europeias

Já me referi à Espanha, Portugal, França, Alemanha e Polônia. Merece menção a Inglaterra. O feudalismo inglês nunca constituiu risco para o poder da coroa, uma vez que os feudos nunca foram maiores do que as terras de que dispunha o rei. Por isto os nobres ligaram-se ao povo, para limitar os poderes do rei, sendo impotentes por si sós para fazê-lo. Daí a série de lutas que culminaram com a Magna Carta. Não vou recordar aqui estes fatos, que os senhores devem ter estudado no ginásio. Bastará acentuar que a Inglaterra, de lá para cá, tem evoluído incessantemente no sentido democrático, perdendo os reis e a nobreza, cada vez mais, suas prerrogativas em benefício do povo.

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