Catolicismo Nº 44 - Agosto de 1954
Fazemos hoje os últimos comentários sobre o importante discurso do Santo Padre Pio XII aos participantes do V Congresso Nacional da União de Juristas Católicos Italianos (*). Nesse documento, o Soberano Pontífice formula o seguinte problema: "Conforme a confissão da grande maioria dos cidadãos, ou com base numa declaração explícita de seus Estatutos, os povos e os Estados-membros da Comunidade se dividirão em cristãos, não cristãos, religiosamente indiferentes ou conscientemente laicizados, ou ainda abertamente ateus. Os interesses religiosos e morais exigirão para toda a extensão da comunidade um regulamento bem definido, que valha para todo o território de cada um dos Estados soberanos membros de tal Comunidade das nações. Segundo as probabilidades e circunstâncias, é previsível que esta regulamentação de Direito positivo será enunciada assim: No interior de seu território e para os seus cidadãos cada Estado regulará os assuntos religiosos e morais com lei própria; sem embargo, em todo o território da Comunidade dos Estados será permitido aos cidadãos de cada Estado-membro o exercício das próprias crenças e praticas éticas e religiosas, sempre que estas não violem as leis penais do Estado em que eles residem. Para o jurista, o homem político e o Estado católico surge aqui a questão: podem eles dar consentimento a tal regulamentação, quando se trata de entrar na Comunidade dos povos e de permanecer nela?" Como vimos em artigo anterior, o Soberano Pontífice responde afirmativamente à questão. Assim pois, pode prever-se no futuro o estabelecimento no mundo de uma sociedade de nações soberanas, cristãs, pagãs, quiçá atéias, que inclua em seu estatuto a obrigação - livremente contraída pelos Estados-membros - de tolerar no território de cada uma a prática dos respectivos cultos aos súditos estrangeiros.
Esta tolerância terá um limite. Sempre que a prática de uma religião implique em atos considerados criminosos pela lei nacional, não será obrigatório tolerar esses atos. Bem entendido, esta restrição precisa ser interpretada com muito boa fé pelos Estados-membros. Qualquer chicana neste ponto destruiria pela raiz o delicado sistema. Assim, espera-se que só qualifiquem como criminosas ações que realmente o são segundo a ordem natural. Um Estado-membro poderá a este título proibir, por exemplo, e em qualquer caso, o culto imoral dos mórmons. Mas se, com fundamento na restrição indicada, os comunistas ou protestantes quiserem impedir a prática da Religião Católica mediante a alegação de que suas leis privadas consideram um crime a celebração da Santa Missa, estarão falseando o sistema e tornando-o inexeqüível para os católicos. Como se vê, uma certa noção de moral natural, e uma certa retidão de propósitos são a base de toda a estrutura prevista na alocução pontifícia.
Note-se que não se trata de aprovação, mas de mera tolerância. A este respeito, a alocução não deixa margem à menor dúvida. Pois nenhum Estado católico pode propriamente autorizar a prática do erro: "Antes de tudo, cumpre afirmar claramente que nenhuma autoridade humana, nenhum Estado, nenhuma Comunidade de Estados, seja qual for o seu caráter religioso, pode dar um mandato positivo ou uma autorização positiva para ensinar ou fazer o que seria contrário à verdade religiosa ou ao bem moral. Um mandato ou uma autorização desse gênero não teriam força obrigatória e permaneceriam ineficazes. Nenhuma autoridade poderia dá-los, pois é contra a natureza obrigar o espírito e a vontade do homem ao erro e ao mal ou a considerar um e outro como indiferentes. Nem Deus sequer poderia dar tal mandado positivo ou tal autorização positiva, porque estariam em contradição com sua absoluta veracidade e santidade". E mais adiante acrescenta: "Com isto se esclarecem os dois princípios dos quais se deve deduzir nos casos concretos a resposta para a gravíssima questão referente à atitude do jurista, do homem político e do Estado soberano católico ante uma fórmula de tolerância religiosa e moral do conteúdo supra indicado, fórmula esta a tomar-se em consideração para a Comunidade dos Estados. Primeiro: o que não corresponde à verdade e à norma moral não tem objetivamente direito algum, nem à existência, nem à propaganda, nem à ação. Segundo: o não impedí-lo por meio de leis estatais e disposições coercitivas pode, não obstante, ser justificado no interesse de um bem superior e mais vasto".
A Alocução pontifícia fala de "exercício das próprias crenças e práticas éticas e religiosas". É óbvio que essas palavras se referem ao exercício individual da religião e da moral. Elas incluem o proselitismo? A pergunta pode formular-se. Pois, se de um lado a prática individual de uma religião não é a mesma coisa que a propaganda dessa religião, de outro lado quase todos os sistemas de moral com base religiosa incluem o proselitismo entre seus mais graves princípios. A tolerância religiosa se referirá só aos súditos estrangeiros, ou também aos nacionais? A primeira hipótese nos parece mais consentânea com os termos da alocução. Mas a segunda não nos parece indefensável. A tolerância se referirá também ao proselitismo ateu? Um Estado católico será obrigado, por exemplo, a tolerar propaganda atéia desenvolvida em seu território por súditos russos? A questão nasceria do fato de que a alocução prevê expressamente a participação de Estados ateus na sociedade internacional constituenda, o que faria prever que esses Estados não concederiam liberdade à propaganda católica em seus territórios sem que reciprocamente se tolerasse a propaganda atéia nos Estados católicos. Questão delicada, por certo, a cuja solução não pode ser indiferente a seguinte observação: o Santo Padre fala, em sua alocução, acerca de tolerância de religiões falsas, mas não se refere uma só vez à tolerância do ateísmo.
À vista da alocução pontifícia, poderia quiçá algum inter-confessionalista imaginar que uma liga das diversas religiões completaria harmoniosamente a Comunidade dos Estados, máxime se esta vier a abranger todos os povos da terra. A paz entre os povos, e sua concatenação em uma só entidade internacional, acentua muito o anseio de uma concórdia religiosa geral, e da concatenação de todas as Religiões num grande modus vivendi que elimine todas as disputas entre elas. Pois a unidade política se completa harmoniosamente com a unidade religiosa. Tal modus vivendi poderia basear-se num acordo. Cada religião renuncia a fazer proselitismo nos países em que está em minoria. As maiorias religiosas de cada país se absterão de uma ação ideológica militante em relação às minorias dissidentes. É preciso dizer que esta hipótese não é compatível, nem com a doutrina católica genericamente considerada, nem com o texto da alocução. A Igreja recebeu de Nosso Senhor Jesus Cristo seu Divino Fundador, a missão de ensinar a todos os povos, em todos os tempos. Nunca aceitará Ela uma combinação que implique na renúncia definitiva ao direito de evangelizar este ou aquele povo, ou de combater heresias neste ou naquele lugar. Aliás, quando a alocução lembra que "nenhuma autoridade humana, nenhum Estado, nenhuma Comunidade de Estados, seja qual for o seu caráter religioso, pode dar um mandado positivo ou uma autorização positiva para ensinar ou fazer o que seria contrário à verdade religiosa ou ao bem moral", afirma implicitamente a nulidade de qualquer tratado, acordo, convênio, decreto ou edito que tivesse como conseqüência impedir a Igreja - na pessoa de seus Hierarcas ou de seus auxiliares no apostolado, os simples fiéis - de trabalhar pela salvação das almas, "a fim de que haja um só rebanho e um só Pastor". Ninguém deseja, mais do que a Igreja, a paz e a unidade religiosa do mundo. Mas sobre a pedra angular, que é Jesus Cristo, que são os Papas.
A comunidade das nações nascerá assim sob o signo da neutralidade religiosa. Vimos que o Sumo Pontífice considera preferível a existência de uma Comunidade religiosamente neutra, ao prolongamento do regime de caos internacional em que vivemos. Quer isto dizer que um coração católico deva considerar sem pesar e sem apreensão - sem um pesar muito profundo e uma apreensão muito viva - os efeitos que tal neutralidade religiosa exercerá no novel organismo internacional? Para entender bem a posição católica neste assunto, é preciso apelar para os princípios, e especialmente para a Encíclica "Quas primas", de Pio XI, sobre o Reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo, Encíclica esta que tem tido nos documentos de Pio XII tão luminosos desenvolvimentos. O Reinado de Jesus Cristo é para todas as sociedades humanas desde a família, passando pelos grupos intermediários, e até o Estado, a única situação inteiramente normal. Este reinado se realiza pela profissão pública e oficial da Fé católica pelas nações, e pela conformidade das leis e dos atos das coletividades humanas com a Lei de Deus. Como a Lei de Deus está nos Mandamentos, é mister que as famílias, as corporações, os Estados cumpram estes Mandamentos quanto em si esteja. E como faz parte das obrigações do católico defender a verdade e o bem, e combater o erro e o mal, o Estado em que Nosso Senhor Jesus Cristo seja Rei se entregará - dentro de sua esfera - à nobre tarefa de auxiliar a Igreja na dilatação da Fé e extirpação das heresias, no fomento da virtude e na repressão do vício. Assim procedendo, as nações católicas chegarão ao ápice de seu bem-estar, de sua dignidade, de sua glória. E isto por dois motivos. A Providência protege necessariamente os povos que lhe são fiéis. A observância da Lei de Deus traz necessariamente ao seio das sociedades humanas a ordem e a paz. Este último ponto merece uma explanação. Os Mandamentos contém em si toda a ordem natural. Ora, um ente se desenvolve tanto mais, e tanto melhor, quanto mais as suas ações sejam conformes à sua própria natureza. Desde que todos os homens procedam de acordo com os Mandamentos, reinará na sociedade a ordem natural, e por isto mesmo a sociedade chegará a seu fastígio. Eis a razão por que Santo Agostinho proclamou que a Igreja Católica, fundada para levar os homens ao Céu, entretanto influencia de modo tão profundo, tão forte, tão suave, tão benéfico a sociedade humana, que parece ter sido constituída só para o bem da vida terrena. Pois bem. Esta ordem natural que a Igreja ensina, fora dela não pode ser inteiramente conhecida nem praticada. Com efeito, em conseqüência do pecado original a tendência para o erro e para o mal impede que as sociedades pelos meros recursos naturais conheçam em toda a sua extensão, e pratiquem em sua integridade, os princípios da lei natural. É preciso para tal o auxílio da Revelação e da graça. Revelação que só a Igreja tem missão de ensinar, graça que Deus não nega a homem algum, mas só nela se encontra na abundância torrencial que conhecemos. De sorte que, fora da Igreja, as sociedades humanas não podem viver segundo as suas próprias leis naturais constitutivas. Vimos o que decorreu no passado, para as nações pagãs do fato de não conhecerem a Jesus Cristo. Muitas delas foram dotadas de um engenho que ainda hoje nos assombra. Formaram impérios que encheram o mundo de terror. Legaram obras de cultura e arte admiráveis. Mas se desfizeram em pó. É que traziam em si o germe da morte: não conheciam Jesus Cristo. Vimos depois a que fastígio se elevaram as nações cristãs. Sua derrocada começou quando romperam com a Igreja de Jesus Cristo. E hoje estão a dois passos da catástrofe. Sua salvação, é claro, só pode provir de uma volta ao Divino Rei. Se assim é, o que se poderia esperar da conjunção desses Estados, enquanto não se operar seu feliz retorno ao reino de Nosso Senhor Jesus Cristo?
Entretanto, cumpre não simplificar. Alguns rudimentos da lei natural, o homem os pode conhecer e praticar ainda quando caminhe fora das Veredas da Igreja. A Teologia o ensina, e a História o confirma. A grandeza de Roma veio-lhe exatamente deste fato. Ora, um Papa não pode ser indiferente a que, num momento de bom senso, os povos extraviados se reúnam a fim de concertar esforços para praticar nas suas mútuas relações os rudimentos da lei natural. Nem pode ser indiferente ao bem que daí pode provir. Ainda que, nas terríveis dificuldades de nossos dias, esse bem signifique apenas um hiato ou uma pausa no processus de desagregação do mundo hodierno, será o caso de alongar este hiato, de dilatar esta pausa. E será apenas esse o bem? Quem conhece o dia de amanhã? Um hiato destes não será o momento escolhido pela Providência para operar alguma grande maravilha, e tocar os corações dos homens? É neste pensamento, que não comporta ilusões mas também não se fecha a toda a esperança, que devem ser vistas as perspectivas de futuro que o eventual organismo internacional pode abrir.
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